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terça-feira, 12 de março de 2019

DIVAGAÇÕES DA PALAVRA

*Rangel Alves da Costa

Não sei quem escondeu minha folha de papel e meu lápis. Gosto da máquina não. Gostava de sentir cada letra sendo rabiscada pela mão. Também sumiu meu cavalo de pau, meu boizinho de barro, meu carro-pipa de lata de óleo. Eu tinha uma peteca baleadeira e um jogador de botão. Eu tinha dinheiro de papel de cigarro e também uma fazenda de ponta de vaca. Como dizia Drummond, hoje só tenho um retrato na parede. E como dói. Dói não avistar mais varal no quintal. Dói não ter bolo nem cafuné de minha avó. Meu avô me dava nica e eu ficava contente. Um dia, ainda criança - imaginem -, eu me apaixonei por uma moça do circo. Tinha as pernas grossas, creio que até gordas demais para uma rumbeira. Mas me apaixonei e só vivia por lá. Até que ela me deu um frasquinho de perfume, uma coisita pequenininha, mas tão cheiroso que fiquei encantado. Naquela noite dormi todo perfumado. Mas sonhei sendo o atirador de facas. E sem querer matei meu amor. 
Eu gostava muito de passar pelos quintais por diversos motivos. Logicamente que eu nem pensava duas vezes em pular uma cerca para afanar fruta madura, já caída no chão. Evitava aqueles quintais com porta do fundo sempre aberta e com cachorro sempre em prontidão. Mas eu gostava mesmo - ainda mais que a fruta docinha caída - era de avistar os varais e suas roupas e panos estendidos. Não sei bem por que, mas eu sempre gostei de estar diante dos varais e imaginando mil coisas sobre aqueles braços estendidos, aquelas saias querendo voar, aquelas vestimentas secando ao sol e ao vento. Eu também pensava que a gente bem que podia ficar estendido em varal depois de chorar ou mesmo enquanto a lágrima escorria. Do mesmo jeito da roupa, os olhos também podiam secar e a alegria voltar. Contudo, fato interessante diz respeito às calcinhas avistadas no varal. Sim, havia um quintal preferido para avistar calcinhas, pois todas de uma só dona. E parecia que ela só tinha calcinha vermelha e rendada. Eu me apaixonava com aquela visão. Até que um dia me senti no direito de tirar uma miudinha do varal para colocar bem diante o meu olhar. Depois beijei a calcinha. Beijei duas vezes, mais e mais. Aí foi quando a porta do quintal foi aberta e a dona da calcinha apareceu. Sabe o que ela fez? Sorriu, pediu a calcinha, depois tirou a que estava usando - também vermelha - e me deu. Não só deu como pediu para que eu a cheirasse e beijasse. E depois. Deixe pra lá...
Por falar em calcinha, na infância eu tinha um grande amigo que outra coisa não fazia senão sair pelas calçadas para avistar calcinhas das mocinhas que estivessem sentadas. Levando sempre uma bola de gude, assim que avistava uma logo se abaixava como se fosse jogar a bola sobre a terra. Um dia ele me chamou pra acompanhá-lo nas visões do paraíso e eu aceitei. Visões do paraíso por que, segundo ele, avistar uma calcinha entre as coxas de uma donzela era a coisa mais bela que podia existir. Então o acompanhei. Mais adiante, logo ele se abaixou para insinuar o arremesso da bola de gude. Abaixou-se, olhou, olhou e continuou olhando. Estranhei tudo aquilo. Cheguei junto e perguntei se já tinha visto e por que se demorava tanto. Então ele me disse: olhe. Abaixei para o arremesso e virei o olhar para o entrepernas. Olhei, olhei, e não vi calcinha alguma. A mocinha estava nua na parte de baixo. E foi por isso que nunca brincamos tanto de bola de gude como naquele dia. Dois meninotes e suas visões do paraíso. E que paraíso perante aqueles olhares de infantis malícias.

Escritor
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