Por José Mendes Pereira
O CANGACEIRO “DESOBEDIÊNCIA” ESCREVE PARA O PAI.
Lá no cangaço
ninguém tinha uma vida boa. O que existia ali e desejada era simplesmente a
influência dos jovens entrarem naquela maldita empresa de cangaceiros do
perverso e sanguinário capitão Lampião e usarem aquelas vestes coloridas, armas
e chapéus enfeitados com moedas, ouro e pratas. Um mundo conhecido por quem lá
já estava, mas totalmente desconhecido por aqueles que queriam participar dele.
Muitos que entraram era como se tivessem feito um concurso para concorrerem uma
vaga naquela empresa de facínoras, e os que conseguiam, de início, era como se
ganhassem um valioso troféu. E na verdade, ganhavam mesmo! Um inferno quase sem
volta.
O jovem que
pedisse para sair daquele inferno estava sujeito a ser morto pelos seus amigos,
a mando do chefe maior, que era o capitão Lampião. Ele não admitia sujeitos que
fossem admitidos na sua "Empresa de Cangaceiros Lampiônica e Cia", e
dias depois, pedia para ser demitido.
Aquele que
adquiria a sua vaga se sentia feliz, porque, mesmo sabendo que a partir daquele
momento, deixaria de ser um homem honesto, mas o orgulho estava presente na sua
face, que seria admirado por todos os outros que almejavam um cantinho ali.
E o jovem que
ainda não tinha chegado a sua oportunidade aguardava qualquer dia ser mais um
daquele grupo de cangaceiros. O melhor para entrar nela era ficar contra as
volantes policiais da época, que segundo os pesquisadores, maltratavam os
sertanejos para que entregassem os bandidos de qualquer jeito, e dizem que elas
eram mais violentas do que os próprios cangaceiros. Elas mataram sertanejos,
incendiaram currais e mataram animais no pasto, na intenção de criminar mais
ainda o próprio capitão Lampião.
Com estes
feitos tristes, e muitas vezes, eram mortos sertanejos pelas volantes
policiais, tentando fazer os sertanejos ficarem contra os cangaceiros. Mas que
na verdade, nem todos os acontecimentos tristes eram praticados pelo grupo de
cangaceiros do capitão Lampião.
O cangaceiro
“Desobediência” desejoso para usar aquelas vestes e sem muito esforço, entrou
na empresa de cangaceiros do capitão. Mas com o passar dos dias,
“Desobediência” viu que se enganara. Tantos conselhos recebera do velho seu pai
e da sua mãe, que não se cansaram de alertá-lo, que aquela vida de malfeitor
não era para ele. Eram pobres, mas muito honestos. O mundo do cangaço nada mais
tinha do que decepções, mortes, roubos, estupros, vinganças injustas, combates
a todo momento, e, principalmente ele, participar daquele inferno, quando não
tinha a mínima coragem para matar uma peçonhenta caranguejeira.
Mas o
“Desobediência” não importou com os conselhos do pai e da mãe, e dias depois,
era mais um que por onde passava tirava a tranquilidade dos sertanejos. Por
último, sem condições de desistir daquele inferno “Desobediência” resolveu
escrever uma cartinha para os pais, e informá-los como estava arrependido da
sua desobediência. E para que a carta chegasse até às mãos dos amados pais, ela
foi entregue a um dos coiteiros do capitão Lampião, para que ele fizesse chegar
até lá. E em mãos, dias depois, ela foi entregue aos velhos sofridos pais do
"Desobediência".
"Queridos
pais:
Aqui dentro
das caatingas não há como datar esta carta, porque não tenho a mínima ideia em
qual Estado do Brasil eu estou. Nós vivemos constantemente saltando de lugar
para outro, e geralmente é em correria, porque as forças volantes não nos dão
trégua. Antes de deixar esta vida terrena, porque quem entra na empresa do
capitão Lampião, não tem muita esperança de um dia voltar para abraçar os seus
amados e queridos pais, irmãos e amigos, quero pedir desculpas ao senhor e a
mamãe pela minha desobediência. Não sei se quando esta carta chegar aí, eu
ainda esteja vivo.
Pai, o velho
ditado diz que: "o risco que corre o pau, corre o machado". Está
comprovado que é mais do que verdade pai, porque o que eu vi nos poucos
combates que tenho participado como empregado da Empresa de Cangaceiros
Lampiônica e Cia, os perigos são para ambas as partes. O grupo de
cangaceiros está mais para uma alcateia de lobos sanguinários do que para facínoras. Todos são iguais, com as mesmas naturezas, malvados e perversos ao
estremo.
Tenho visto
amigos sendo tragicamente atingidos por balas lançadas pelas volantes
policiais, e ali mesmo morrem, porque não há como socorrê-los. As volantes
policiais não nos dão uma pequena chance para um possível socorro aos nossos
amigos cangaceiros feridos.
Nos momentos
dos ataques aos policiais sempre estou ao lado do capitão Lampião, mas fico um
pouco distante, e por ele ser cego do olho direito, sempre faço o fogo para os
ares, porque como vocês sabem muito bem, eu não tenho coragem para matar
ninguém, e enquanto o capitão não perceber a minha astúcia de não atirar em
direção ao alvo, eu vou atirando para cima.
Meu amado pai,
todas as noites lembro muito daí. Vejo a minha mãe na cozinha fazendo o jantar
do senhor, enquanto pegas uma bacia com água, uma toalha e a põe no ombro e vai
para o terreiro da frente da casa, lavar os seus pés encardidos do barro
vermelho que rodeia a nossa pequena fazenda.
Vejo as minhas
irmãs, todas de cabisbaixas, como se estivessem com muita saudade de mim Vejo
os nossos amigos chegando em nossa casa, para no terreiro da frente,
palestrarem em rodas, ou até mesmo falando dos animais, das lavouras.
Tenho saudade
daquele lugar na sala da frente da nossa casa que eu armava a minha rede para
dormir tranquilo a noite toda. Aqui não existe isso. Tenho que dormir em
qualquer lugar do coito nessa caatinga, no chão, cheio de pedregulhos,
misturado com insetos que hão de aparecer no decorrer da noite. Lembro que ao
entardecer, em nossa fazenda, eu saía para campear o gado graúdo, e o senhor se
encarregava de campear o gado miúdo, tangendo-o para o chiqueiro.
Meu pai, aqui
neste inferno que eu escolhi por decisão própria, assim que o sol se prepara
para ir se deitar, e a escuridão da noite começa, apodero-me de um tédio
invencível, por saber que talvez nunca mais terei a liberdade que eu tinha por
aí, participando das festas, passeando pelas casas onde por lá vivem as
donzelas que tanto me admiravam. As brincadeiras entre amigos, o jogo com bolas
feitas de meias e enchidas com retalhos de tecidos que minha mãe sempre me
arranjava. Os banhos nos rios e lagoas, as pescarias, as corridas em montarias,
as caças aos pássaros com estilingues, as perseguições aos tatus e pebas com
espingardas... Aqui, se não for para comer, ninguém mata pássaros e caças,
porque toda munição é poupada para atirar nas volantes policiais, e a alguns
sertanejos que estão marcados para morrerem, determinados pelo capitão Lampião.
Desde o dia em
que eu vim para esta maldita empresa de cangaceiros a vida deixou de me ver com
bons olhos. Arrependo-me de não ter tomado os seus importantes conselhos, e
lembro-me muito bem, que no alpendre da nossa humilde casinhola, o senhor me
aconselhava e relatava sobre a vergonha que iria ter de mim, porque a partir
daquele dia, eu passaria a ser um jovem considerado como ladrão, e
principalmente, discriminado por toda vizinhança.
Pai, o mundo
do cangaço não é para qualquer um. No primeiro dia que cheguei à empresa do
capitão Lampião presenciei uma briga de dois cangaceiros, que deste cedo, eles
se desentenderam. Todo coito estava atento às suas discussões. Enquanto
discutiam verbalmente, tudo ia bem, até o capitão também assistia, parado,
quase irado, como se estivesse engasgado, mas quando ambos preferiram armas, o
capitão que os observava, levantou-se do lugar que estava e deu um grito tão
forte dizendo-lhes:
- Ei, ei, ei
seus cabras da peste! Soltem as armas, suas duas pestes safadas! Não têm
vergonha de brigarem por coisas banais?
E de imediato,
eles desistiram das armas com medo da suçuarana humana.
Ele enfrentou
os dois sem nenhuma arma na mão. Pai, imagina bem se um deles matasse o capitão
Lampião e o inferno que sugeria dentro do coito, hein? Os amigos do capitão
querendo vingar, ou também poderia ser ao contrário. A confusão seria pelo
bornal do capitão, pois era nele que estavam as suas riquezas. Tenho certeza
que se isso tivesse acontecido eu entrava nas matas em busca de casa para nunca
mais voltar a este inferno mundo.
Vi também
certa noite quando o cachorro do capitão foi ferido por um amigo do coiteiro de
Lampião chamado Adalto. Lampião havia convidado o ourives Messias para fazer
uma reparo geral nas riquezas (joias) de toda cangaceirada. Como o Messias não
quis ir só ao reino da majestade porque era noite, convidou o coiteiro Manoel
Félix para acompanhá-lo. Este se deu pronto, e de imediato chamou o seu irmão,
o Adauto, para juntos irem até a corte do respeitado rei.
E assim que o
cangaceiro Juriti viu o ourives e os dois irmãos tomou-lhes a frente, fazendo
graça e se requebrando. Adauto tentando ultrapassar para se desviar dele, uma
bolsa que no momento conduzia em uma de suas mãos atingiu a cabeça do cachorro
de Lampião, ferindo-o de imediato. O cão ficou uivando como se estivesse
pedindo a Lampião que vingasse aquela maldade feita contra ele. E seringadas de
sangue saíam por uma das suas orelhas. Temendo ser justiçado por Lampião,
Juriti gritou que tinha sido o Adauto que ferira o cachorro. E como uma fera,
Lampião agarrou o seu amado e perverso mosquetão e partiu para cima do pobre
homem. O coitado esmoreceu de repente, e não sabia o que fazer.
Maria Bonita,
como sempre, protetora dos inocentes, agarrou-o, implorando que tivesse
paciência, pois não se matava um homem só porque tinha ferido um cachorro. E
ainda lhe dizia que ele parecia que tinha enlouquecido.
Maria Bonita
foi a grande sossega leão de Lampião, pedindo-lhe que não fizesse tantas
maldades contra as pessoas. Algumas vezes, ele ficava nervoso com coisas
banais, e com essa fúria, além do normal, ela estava sempre ao seu redor para
evitar tamanha atrocidade. Ela sabia que muitas vezes, as suas maldades eram
justas. Mas outras, praticava pela natureza cruel que ele era dono. Se ela não
tomasse as dores de alguém para si Lampião se tornaria um bandido sem causa e
sem ética.
Assim que
Lampião violentou Adauto o seu amigo e fiel companheiro, o Luiz Pedro, correu e
o colocou sobre sua proteção, amparando-o em suas costas. E de lá, ficou
acalmando a suçuarana humana, pedindo-lhe que não se estressasse, deixasse o
rapaz aos seus cuidados. E ainda lhe dizia: “-Não faça isto compadre! não faça
isto!...”. Mas Lampião estava fora de si. Queria matá-lo por ter ferido o seu
cachorro, que para ele, era como se fosse um amado filho. E ainda dizia: “-
Olhe o sangue Maria! Olhe o sangue Maria, no bichinho!”.
Um outro fato
engraçado pai, foi certo dia o capitão dormia no chão apenas protegido por um
pedaço de lona. E pouco tempo, chegou o cangaceiro Zé Sereno com um bode às
costas que havia pego na mata para que ele fosse morto e preparado para o
jantar de toda cabroeira. Ele não calculou o tamanho da corda que estava presa
ao pescoço do animal. E assim que ele desceu das suas costas o bode fez
carreira em busca do capitão fazendo com que ele acordasse assustado.Ele
levantou do chão com uma ira dos diabo e partiu para cima de Zé Sereno
dizendo-lhe:
- Solte esta
peste, sua égua! - Disse isso o capitão no mais alto grito.
Meu pai, tenho
plena certeza que o capitão Lampião é o marginal mais valente que já existiu no
mundo. Simplesmente porque, não tem ninguém por ele no cangaço, somente a Maria
Bonita. Alguns cangaceiros têm irmãos, tios e primos no bando, e o capitão é
somente ele, e além do mais, autoridade só quem tem é ele. Isto poderá irritar
algum cangaceiro. Maria Bonita é a sua esposa, e se algum cangaceiro matar o
seu companheiro, ela como mulher, nada poderá fazer. Também não é sangue dela.
Pai, e não
será nunca difícil que isto possa acontecer no grupo de cangaceiros do capitão
Lampião para tentarem matá-lo, porque ele é tão rico que carrega
consigo um bornal, que dentro dele, eu calculo que tenha aproximadamente 5
quilos de ouro. Isto em joias. E o senhor sabe, a ganância é o chapéu do diabo.
Quem sabe, se algum dia alguns cangaceiros organizem este plano de matar o
capitão Lampião, só para roubarem as suas riquezas?
Vou findar por
aqui, pai! Lembranças e um abraço bem forte na minha querida mãezinha, e diz
pra ela que se seu filho escapar por aqui, um dia fugirá e vai dar-lhe uma
abraço bem apertado.
Lembranças às
minhas irmãs e alerta a elas que não entreguem as suas virgindades a certos
malandros daí, principalmente ao filho da puta do Zé de Nequim, porque ele não
merece ser esposo de nenhuma delas. E se eu consegui sair deste inferno e se
ele tiver mexido no que não deve de algumas das minhas irmãs eu vou fazer igual
o que Lampião fez com o Batatinha, capá-lo.
Seu amado
filho Desobediência".
Informação ao
leitor: Sobre o bode e o cachorro de Lampião não é criação minha, eu escrevi
baseado no que conta Alcindo Alves Costa em seu livro "Lampião Além da
Versão - Mentiras e Mistérios de Angico". Para você adquiri-lo entre em
contato através deste e-mail: franpelima@bol.com.br
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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