*Rangel Alves da Costa
Aceitar a moldura. Aceitar a face e a feição. Aceitar o retrato tão humanamente entranhado em mim. E nada além disso. Nada de querer ser mais do que o que sou.
Não adianta dizer que terra é água ou que o sol é lua. Ou a realidade ou nada. A invenção do irreal acaba em mentira e falsidade. E ao homem não cabe ser o inverso de seu próprio verso.
Ser apenas o que sou. E apenas isso. Ser minha própria imagem e semelhança. Ser apenas o que gosto de ser, o que gosto de fazer, o que me traz praz e contentamento.
Eu bem que poderia estar pisando no asfalto, passeando pelos shoppings ou pelos calçadões, mas eu estou aqui.
Eu bem que poderia ser adorador do terno e da gravata, devoto do anel no dedo, abnegado ao termo “doutor”, mas eu estou aqui do jeito que você é e como você está.
Eu bem que poderia chegar, fazer o que eu tenho a fazer, e depois simplesmente partir, mas eu vou onde você está.
Eu bem que poderia simplesmente passar por você, fazer que nem lhe reconheço mais e seguir adiante, mas eu lhe conheço sim, falo sim, abraço sim.
Eu bem que poderia caminhar pelas rodas de um carro, avistar o mundo atrás de um vidro fumê, sequer buzinar perante sua presença, mas eu vou caminhando e sorridente até onde você estiver.
Eu bem que poderia não me esforçar para lembrar o seu nome, mas sinto necessidade de lhe chamar como é conhecido e relembrar sobre tudo o que sei.
Eu bem que poderia não ir além do centro da cidade, não adentrar em ruelas, não visitar o chão batido, não avistar a pobreza, mas de nada disso eu sou distante.
Eu bem que poderia dizer além do que sou, subir estrelas em pedestais, mas bem sei que à escada sobe-se através do chão.
Eu bem que poderia não ser como sou e forjar ser outro, mas outro eu não sei ser. E principalmente ser diferente daquele em mim tanto gosta de povo, gente, de terra e de chão.
Eu bem que poderia negar minhas origens, omitir minhas raízes, ocultar de onde vem e por onde escorre o meu sangue, mas meu orgulho é ser sertanejo.
Eu bem que poderia aprender a dizer sempre não, mas não sei, mas não sei fazer assim, e tudo faço para dizer sempre sim.
Eu bem que poderia não estender minha mão à mão calejada de luta, fingir que não conheço o de roupa rasgada ou de pés descalço, fazer de conta que não é do meu mundo aquele mais desvalido, mas eu já não seria eu, e em mim eu já não estaria.
Eu bem que poderia pedir cardápios, conhecer as cartas de vinhos, mas prefiro o sabor e o prazer de uma comida de cozinha simples, principalmente se feita em panela de barro e saboreada na gulodice.
Eu bem que poderia escolher um perfume importado, de nome difícil, mas sei que o seu aroma não se compara ao cheiro da pele do jeito que a pele é.
Eu bem que poderia não ter muito tempo nem para a lua nem para o sol, bem como não dar muita atenção às flores dos beirais das estradas e aos calangos em cima das pedras, mas converso e dialogo com tudo isso.
Eu bem que poderia meter os pés pelas mãos e me fazer de rei do mundo, ou de um mundo imaginário. Mas que rei eu seria se o meu castelo é apenas onde o meu passo encontra guarida?
Mas talvez eu seja mesmo muito diferente. Raramente as pessoas se reconhecem em si mesmas e aceitam ser aquilo que verdadeiramente são. E eu me contento apenas em ser o que sou, e nem um tiquinho além disso.
Eu bem que poderia ser diferente. Mas eu sou apenas eu. E um igual a você.
Escritor
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