Por Raul Meneleu
O sertanejo
plantava milho no dia 19 de março, dia dedicado a São José. Logo depois,
plantava o feijão. Plantava também algodão que vendiam ao coronel que tinha uma
descaroçadora, e o restante, era usado pelas mulheres da casa, com seus teares
rudimentares onde faziam mantas ou tecidos grossos para fazer redes. Havia
sempre, ou quase, uma ou algumas vacas e cabras, criadas para o leite diário e
vez em quando para a carne da mesa, juntamente com a macaxeira e o cuscuz.
Pois bem,
nesse cenário, encontrava-se a propriedade da família Ferreira, pequena, de
onde tiravam o sustento. Nessa família nasceu aquele que iria revolucionar o
sertão, não pelo social, para trazer melhorias para a população sertaneja tão
maltratada pela seca e pelas autoridades, que não forneciam a contra partida de
investimentos com os impostos pagos pela população, mas revolucionar a
metodologia criada por homens que pegaram em armas e juntaram grupos de
cangaceiros para atacar a fazendeiros e transeuntes nas estradas, roubando-os.
"Virgulino*
era um destemido jovem, bom vaqueiro, inflexível na perseguição de uma rês
barbatão, onde penetrava na caatinga, mato fechado, onde reinavam o
xique-xique, a faveleira, o pião, o juazeiro. Era exímio e admirado. Nas festas
populares era também admirado por todas as mocinhas, que reviravam os olhos e
suspiravam na sua passagem. Dançarino dos bons tanto no xaxado quanto no forró.
Tocava sanfona e era afamado repentista. Virgulino era um rapaz cheio de
entusiasmo e participava de todas as festas da região.
Fora das
festas, era um excelente profissional do couro e do comércio. Trabalhou em
almocrevia para seu pai e foi arrieiro do Dr. Delmiro Gouveia, onde conduzia
cargas de couro em mulas e burros, de Pedra (atual Delmiro Gouveia, no estado
de Alagoas) para Bom Conselho e Garanhuns, no agreste pernambucano, região que
conhecia detalhadamente e palco de grandes combates entre cangaceiros e as
forças oficiais.
A sua família
não era abastada como as dos seus antecessores Silvino e Sinhô Pereira. Pode-se
dizer que era remediada. Vivia da criação e da agricultura. Seu pai, José
Ferreira dos Santos, era pequeno proprietário rural. Não era pobre,
"arrebentado", tinha recursos para prover regularmente a
família.
O fato
histórico que registra o ingresso de Virgulino e de seus irmãos Livino e
Antônio no cangaço, prende-se à inimizade alimentada entre os Ferreira e os
Barros, apelidados de Saturninos*. Estes, com mais recursos e parentes
influentes na política local, deram início a esbulhos no sítio pertencente a
José Ferreira, de nome "Serra Vermelha".
José Alves de
Barros, vulgo Zé de Saturnino, e seu sogro João Nogueira, proprietários do
sítio "Pedreiras", confinante com o dos Ferreira, acusavam os filhos
de José Ferreira de lhe maltratarem animais e de furtarem chocalhos das suas
cabras, avisando-os de se manterem afastados dos seus domínios, sob pena de
sérias represálias. As rusgas entre as famílias começaram praticamente em
1916.
Houve um dia
em que Virgulino e seu irmão Livino passavam com o gado por um pasto de
propriedade de Saturnino, e foi o bastante para serem admoestados pelos
agregados do sítio Pedreiras, iniciando-se encarniçado tiroteio, do qual saiu
vítima de morte um jagunço de Saturnino, e Antônio Ferreira, alvejado na coxa.
Para apurar responsabilidade foi instaurado inquérito em 7 de dezembro daquele
ano, cujo feito depois teve tramitação pelo Cartório do 12 ofício de Serra
Talhada, em Pernambuco. O procedimento instaurado com o objetivo de apurar a
autoria da infração à lei penal, foi arquivado.
Os Saturnino,
influentes econômica e politicamente, tiveram melhor tratamento pelas
autoridades locais. As instituições, no sertão nordestino, eram fracas. As
autoridades policiais eram nomeadas por indicação do chefe político regional,
instrumentos dóceis aos seus caprichos.
O Ministério
Público era uma ficção jurídica: quando não desempenhadas as suas funções por
leigos, ligados à política do lugar, os seus titulares recusavam abrir luta com
os mandões da terra — os famosos "coronéis" — visto nela serem
fatalmente derrotados com a remoção do promotor e a permanência da chefia
situacionista. Melhor era contemporizar, não despertando processos que a
polícia sabiamente adormecia...
O júri,
dominado pelas paixões da politicagem local, era fator preponderante de
clamorosas injustiças, e os próprios juízes togados não tinham força de
requisitar um soldado de polícia para o cumprimento de uma diligência. Viam-se,
às vezes, na contingência de organizar bandos para o cumprimento das suas decisões.
Na verdade, a
família Ferreira começou a sofrer pressões, face ao comportamento de Virgulino
e de seus irmãos Antônio e Livino, que eram fustigados pelo invejoso Zé
Saturnino que se punha como vítima, sendo ele o motor de partida para assanhar
a fera adormecida que existia no peito de Virgulino e de seus irmãos. A famíla
foi sendo obrigada a transferir-se para o lugar conhecido por Nazaré, no
município de Floresta, pouco distante de Serra Talhada.
Com a
efetivação da mudança, firmou-se entre a família Saturnino e a Ferreira um
pacto, objetivando fossem cessadas as hostilidades entre elas. Pelo acordo, os
Saturnino não circulariam por Nazaré e suas imediações e os Ferreira não iriam
mais a Serra Talhada, evitando-se conseqüentemente um confronto que, na opinião
de amigos comuns, seria sangrento, diante das antigas desavenças e constantes
hostilidades. Entretanto, Zé de Saturnino e Nogueira, aliados, não cumpriram a
parte que lhes tocava na convenção e passaram a frequentar com alguns cabras a
feira semanal de Nazaré, amedrontando evidentemente os Ferreira.
O fato é que
certo dia Virgulino e seu tio Manuel Lopes trocaram tiros com Zé de Saturnino e
Nogueira. A partir daí não se teve mais sossego. A falta de segurança da
família era total, tendo em vista que a polícia passou a proteger o pessoal de
Saturnino. Foi até destacado um soldado especialmente para essa tutela, uma vez
que Ferreira, como era conhecido no início Virgulino, e seus irmãos estavam
aterrorizando a localidade e causando sensíveis prejuízos ao comércio daquelas
paragens.
A essa altura
já andavam armados e começavam a ter fama de valentes. Caracterizavam-se como
cangaceiros: roupas de mescla, chapéus de couro com as abas viradas, lenços
vermelhos no pescoço, punhais e facas, cartucheiras e rifles "papo
amarelo" ou mosquetões. Virgulino já usava um punhal de cinqüenta
centímetros de comprimento, com o qual sangraria mais tarde inimigos, delatores
e estupradores.
De Nazaré, os
Ferreira mudaram-se para Água Branca, em Alagoas, localidade próxima ao atual
município de Delmiro Gouveia, não muito distante da cachoeira de Paulo Afonso.
Com as finanças abaladas e sofrendo ainda perseguições dos antigos inimigos
pernambucanos, os Ferreira estabeleceram-se num lugar chamado Olho d'Agua, em
um sítio arrendado, extraindo da terra os recursos necessários à subsistência,
auxiliados por comboios de peles e de cereais que faziam para a Zona da Mata. A
esse tempo, Virgulino e seus irmãos já haviam aderido ao cangaço, acompanhavam
Sinhô Pereira e Luís Padre. A alcunha de Lampião ele a ostentaria até a morte.
Dizem que existem três versões relacionadas à origem do epíteto.
A primeira dá
conta de que, quando atuava como almocreve na condução de comboios de peles, ao
entrar em Água Branca, uma de suas mulas esbarrou em um dos lampiões da
iluminação pública, pondo-o abaixo. Foi o bastante para que entre os próprios
camaradas, nascesse o apelido.
A segunda e
mais precisa talvez surgiu na sua iniciação no bando de Sinhô Pereira, em um
combate com a polícia em Buíque, Pernambuco. Para demonstrar ao seu comandante
que tinha habilidade com o rifle, Virgulino empenhou-se bastante na peleja.
Depois, comentando a luta com Luiz Padre, outro componente do grupo e primo de
Sinhô, expressou:
— O meu rifle,
no pega desta noite, não deixou de ter clarão!
Sinhô Pereira aproximava-se
dos cabras, interferiu na conversa e sentenciou:
— Home, se é
assim, o rifle deste menino é que nem um lampião!
Na boca dos
violeiros, entretanto, circula uma outra versão, fantasiosa inclusive, cuja
veracidade é muito discutida.
— Até aí
Lampião
Se chamava
Virgulino.
Porém num fogo
de noite
O seu amigo
Sabino
Perdeu na
escuridão
Um cigarro, em
aflição,
Que tomara de
Ponto-Fino.
Então disse
Virgulino:
— Compadre,
preste atenção,
Meu fuzil o
alumia,
Você acha no
clarão...
Sabino,
olhando no barro
Em procura do
cigarro Disse:
— Acende,
Lampião".
E assim foi
batizado,
Seu nome foi
Lampião
Se caía num
lugá,
Queimava a
população;
De longe ele
alumiava,
Mas, quando
perto chegava,
Incendiava o
sertão.
Depois de atuar
no grupo de Sinhô Pereira, em algumas incursões perigosas contra as volantes,
não só as do estado de Pernambuco, como as de Alagoas, Lampião pretendeu
retornar ao seio da família, reintegrando-se, socialmente. Voltou para Água
Branca, mas já estava sendo procurado pela polícia alagoana, notadamente pelo
sargento José Lucena e os seus soldados. A sua família já não tinha sossego,
sendo forçada a mudar-se mais uma vez.
Foi então que
se juntou a Antônio Matildes e a Antônio e Manuel Porcino. Seu pai, já em
estado de viuvez, dispersou os filhos e foi viver sob a proteção de Sinhô
Fragoso, fazendeiro em Mata Grande. Os filhos João, Ezequiel, que viria a ser o
famoso Ponto-Fino, e Angélica seguiram para Bom Conselho e passaram a viver
amparados pelo "coronel" José Abílio, que os sustentou por mais de
quatro anos, até quando João Ferreira veio estabelecer-se no comércio de
Propriá em Sergipe.
Iniciando a
sua vida de bandido destacado, Virgulino e os seus novos chefes fizeram um
ataque a Pariconhas, no estado de Alagoas. Logo após o ataque àquela povoação
do semi-árido alagoano, o bando teve no seu encalço a volante do sargento José
Lucena, da polícia de Alagoas. A volante esteve à procura dos bandidos por toda
parte e foi até a fazenda onde morava o pai de Lampião, na suposição de que
encontraria o bando. Os soldados cercaram a casa e começaram a atirar, matando
José Ferreira e Fragoso, proprietário da fazenda.
A morte de
José Ferreira foi uma das maiores tragédias na vida de Virgulino. Tinha sido
pai amoroso, consciente dos seus deveres, bom amigo. Morreu antes de completar
cinqüenta anos de idade. Na retirada para Pernambuco, onde se achavam mais
seguros, os bandidos atearam fogo no interior de Alagoas, sob a voz austera de
Lampião:
— Baixem o
facho nas casas. Alagoas vai ficá de sentimento.
A atividade
dos bandidos endurecia a vida dos sertanejos, como endurecia, também, o cerco
que as volantes faziam aos malfeitores. Matildes abandonou o grupo, seguindo
para a Paraíba, tendo assumido a chefia Antônio Porcino. Tempos depois, os
Porcino deixavam o banditismo e embrenharam-se na Bahia. Lampião tornou-se, por
isso, chefe do grupo de bandoleiros, posto supremo em que se manteve até à
morte.
Reuniu, logo
após agosto de 1922, os ex-cabras de Sinhô Pereira: Antônio Rosa, Meia-Noite,
Joaquim Coqueiro, Plínio, Bem-te-vi, Patrício, Raimundo Agostinho, João
Genoveva, Pedrão, Zé Dedé, José Melão, Laurindo, João e Antônio Mariano. O
apoio logístico dispensado a Lampião foi o mais notável durante toda a época da
existência do banditismo.
O "grito
do mateu" era a senha anunciadora da sua presença, transmiti-da de ouvido
a ouvido do coiteiro. O coiteiro era o sertanejo que dava asilo ou protegia os
cangaceiros. Havia coiteiros por sugestão, ou imitação, simpatizantes ou
admiradores do bandoleiro, frutos do mesmo meio, vítimas do mesmo mal de
crescimento social ou jurídico, impulsionados pelos mesmos fatores, sujeitos,
portanto, à mesma prevenção ou repressão dada aos protegidos. Havia, porém, os
coiteiros por interesse, traficantes do crime, cúmplices do cálculo, que
auxiliavam os bandidos, visando lucros e vantagens.
Por outro
lado, existiam coiteiros coagidos, os que, reconhecendo a impossibilidade de
obterem auxilio das autoridades legais, ajudavam os bandidos para não perderem
a vida ou a propriedade. Nessa última classificação figuraram inúmeros
vaqueiros, que, por sinal, foram os mais eficientes coiteiros de Lampião:
roceiros, pequenos e médios proprietários rurais, comerciantes, caixeiros-viajantes.
João Barroso,
por exemplo, coiteiro de grande prestígio junto a Lampião, que tinha atuação em
Alagoas, certa ocasião, num rasgo de coragem, desabafou:
— O governo
não pode com Lampião! Nós matutos não podemos. Nem as cobras podem com ele.
Quem é o grande? Lampião! Então, eu vou ficar com ele."
* Veja o
comentário abaixo.
** Com quase
certeza, isso fez que Zé Saturnino, sentisse inveja de Virgulino.
Fonte: pequena
parte em aspas, do livro de José Anderson Nascimento, CANGACEIROS, COITEIROS E
VOLANTES.
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