*Rangel Alves da Costa
Que este meu olhar, que certamente será meu último olhar, tenha conseguido avistar o que de belo no mundo ainda há, pois entre sombras e névoas, a esperança reside em ao menos imaginar o que teria valido se pudesse ser visto. Assim disse o velho mestre.
Que estas palavras desfolhadas agora, que foram minhas últimas palavras, ecoem pelos portais dos tempos e repousem perante aqueles que ainda tenham olhos para ver e ouvidos para ouvir a verdade da vida. Disse o velho mestre ao seu discípulo, antes de ter as pálpebras fechadas para a eternidade.
Dois dias e duas noites em cima da montanha. O jovem discípulo saciando a fome e a sede nas palavras do velho amigo, e este, o mestre, se alimentando apenas da vontade em realizar seu último esforço sobre a terra: deixar, através de palavras, uma carta a todos aqueles que estivessem nos arredores e muito além da montanha. Todos os povos do mundo.
Da memória do velho não cuidou seu discípulo, não coube a este, ao modo dos aprendizes gregos da filosofia, guardar na mente as palavras e repassá-las para a posteridade, mas sim à própria natureza. Folhas ao vento, as pedras espalhadas no cume, a própria ventania que passava recolhendo o perfume, além do invisível papiro do tempo, foram os instrumentos onde as palavras foram inscritas e espalhadas pela vida afora, chegando aos tempos de hoje.
Eis as palavras do velho mestre, lições de antigamente, mas que ainda ecoam como se direcionadas às realidades eternas, de ontem, hoje e até amanhã. E assim está escrito por todo lugar:
“Meu olhar vai muito além do horizonte e de mais adiante, alcançando o primeiro grão de areia da primeira estrada de tudo. Lá, onde tudo começou, eu estava. E o que sou agora é também o que já fui desde aquele primeiro passo. Eis que sou fruto de seres que são frutos de outros seres, desde o que sou e serei ao primeiro; desde o que sou ao que foi o meu pai e todos aqueles que antes dele vieram.
Por isso tenho nome e sobrenome que não dizem nada. Tudo falso e tudo ilusão, pois talvez o homem seja esquecido se o seu nome não for lembrado. Por isso que meu nome é sangue, é raiz, é linhagem, é ancestral, é hereditariedade, é passado. Ninguém pode tirar do ser aquilo que está na sua alma, no seu espírito, na sua ancestralidade. Por consequência, a morte jamais será fim de alguém. E ninguém morreu desde aquele primeiro passo naquele primeiro grão de areia.
Então, que digam ao homem que ele faz parte de família maior do que poderia imaginar. Digam ao homem que sou seu sangue, vim da mesma raiz, que sou seu irmão, que viemos do mesmo lar um dia aumentado com a chegada de tantos outros irmãos. E muitos ainda virão. Digam ao homem que assim como sou seu irmão, aquele outro desconhecido também o é. O rico e o pobre são seus irmãos, o sadio e o enfermo também, todos, igualitária e indistintamente.
E creio não ser da normalidade humana, de seres que pensam, raciocinam, sabem distinguir o bem e o mal, a verdade e a mentira, e tudo o mais que os diferencia dos irracionais e loucos, o desconhecimento e a desvalorização do seu irmão. E são tantos e são todos irmãos. Irmãos desde aquele primeiro grão no primeiro passo, e que continuam unidos pelos laços da hereditariedade no tempo e do parentesco vindo daquele primeiro pai.
Vai de encontro à vida, ao sentido da existência, que o menosprezo ao próximo, e que é seu irmão, tantas vezes se transforme em ódio, em ameaça, em violência. Quando um irmão tira sangue de outro está derramando o sangue de si mesmo, do próprio corpo. Quando um irmão quer ou tenta destruir o outro, estará fazendo desabar sobre si o seu próprio castelo. E quantos egoísmos, vaidades, arrogâncias, brutalidades, situações que sempre acabam fazendo o caminho inverso. Ao erguer a mão implorando ajuda, os outros irmãos temerão, por medo, qualquer aproximação.
Mas eis a força do tempo e das transformações. Haverá o dia do desconhecimento, do esquecimento, mas também chegarão os tempos do arrependimento e da remissão. E aquele que olha pra trás e consegue enxergar sua casa e sua família naquele tempo primeiro, também conseguirá avistar todos os seus irmãos ao redor. E jamais viverá na solidão ou no sofrimento”.
Assim falou o velho mestre. Ao menos assim é que ainda ouço ecoando no vento.
Escritor
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