Por Pamela Malva
Bando de Virgínio Fortunato da Silva, o Moderno, em 1936 - Wikimedia Commons.
Com um humor ácido e uma
descrição romântica, o autor narrou o estilo de vida e as injustiças no sertão
nordestino na década de 1930.
A escrita de Graciliano Ramos é
conhecida por transformar até o menor grão de areia em pura poesia. Muitas vezes
usando do humor, da zombaria e da ironia, o autor transpôs gerações, narrando
diversos cenários e histórias.
Em várias de suas produções,
Graciliano deu seu melhor ponto de vista sobre o cangaço da década de 1930 e a vida no sertão
nordestino — um dos maiores exemplos, claro, é Vidas Secas. Foi pensando nisso
que dois entusiastas da vida do autor tiveram uma ideia.
Em 2014, Ieda Lebensztayn e
Thiago Mio Salla organizaram o livro Cangaços, composto por diversos textos de
Graciliano em torno do tema. Nele, é possível perceber como o romancista
enxergava os bandoleiros e seu estilo de vida.
Através dos textos, Graciliano se
demonstrava indignado com a influência da desigualdade, da corrupção e da
crueldade presentes no sertão nordestino — coisas que ele sentiu na própria
pele, quando foi preso durante dez meses, aos 43 anos, pela polícia de Vargas,
em 1936.
Bando de Lampião junto do
fotógrafo Benjamin Abrahão Botto / Crédito: Wikimedia Commons
Quase humanista, Graciliano tirou
um tempo para descrever Lampião e sua ferocidade. Em texto publicado na revista
Novidade, de Maceió, em 1931, o autor narra que o Rei do Cangaço nasceu muito
antes, em todos os estados do Nordeste.
“Não falo, está claro, no
indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco
interessante”, escreveu. “Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o
salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda,
chamboqueiro, dá impressão má. Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se
seguem é conveniente que o leitor veja alusões a um homem só”.
O trecho, que está presente no
livro, é acompanhado de uma descrição intrínseca típica do romancista: "O
que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver”, determinou
Graciliano. “Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas
quando viu o alastrado e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos,
quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de
couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira.
Lá está como bicho do mato montado."
Virgulino Ferreira da Silva, o
Lampião / Crédito: Wikimedia Commons
Enquanto, durante aquele período,
Lampião e seus bandos se expandiam pelo Nordeste, conquistando, roubando e
botando medo, Graciliano escrevia para a revista Novidade. Em uma de suas 24
edições, a redação publicou uma entrevista imaginária com Lampião, em 1931.
Para Ieda, a entrevista e os
textos de Graciliano se aproximam de forma estilística, deixando claro que o
bate-bola foi escrito pelo romancista. Segundo ela, “a preceptiva poética de
que é preciso conhecer o sertão para se falar dele” presente no texto da
Novidade corrobora com essa teoria.
O livro de 2014 não poderia
deixar o romance de maior sucesso do autor escapar e inclui dois capítulos de
Vidas Secas que falam do cangaço. Nos trechos, Graciliano narra dois cangaços
distintos, um do passado, de caráter social, e outro do presente, motivado pela
economia.
Bando de Lampião em Mossoró /
Crédito: Wikimedia Commons
Esta foto foi feita em Limoeiro do Norte-CE e não em Mossoró no RN.
O romancista ainda alinha a
narrativa dos textos aos chefes do cangaço, passando por Jesuíno Brilhante,
Antônio Silvino, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e Cristino Gomes da
Silva Cleto, o Corisco. De todos eles, apenas Silvino não foi assassinado — mas
preso entre 1914 e 1937.
Na posição de jornalista,
Graciliano fez o perfil de Silvino para O Jornal, do Rio, em 1938, No texto,
ele descreveu: "Na catinga imensa, perseguido, queimado pela seca, Silvino
teve sempre os modos de um grande senhor, muitas vezes mostrou-se generoso e
caprichou em aparecer como uma espécie de cavaleiro andante, protetor dos
pobres e das moças desencaminhadas”.
No romance Angústia, o autor
comenta sobre o episódio em que Cirilo de Engrácia, comparsa de Lampião, foi
pregado de pé em uma tábua, em 1935. O livro Cangaços traz a foto tirada no
dia, junto do comentário de Graciliano: "Pensei em Cirilo de Engrácia,
visto dias antes em fotografia um cangaceiro morto, amarrado a uma árvore.
Parecia vivo e era medonho. O que tinha de morto eram os pés, suspensos, com os
dedos quase tocando o chão”.
As cabeças de Lampião, Maria
Bonita e mais dez cangaceiros em Maceió / Crédito: Wikimedia Commons
As mortes de Lampião e Maria Bonita também foram abrangidas na obra, com a
descrição de Ricardo Ramos, filho de Graciliano, em uma das epígrafes do livro.
Ele narra a cena das cabeças dos 12 cangaceiros expostas em Maceió, após a
emboscada que os matou, em 1938. “Sonhos assombrados, semanas de pesadelo”,
conta.
Sobre o episódio, Graciliano
comentou no artigo Cabeças, publicado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro,
em outubro de 1938. Com humor e ironia, ele escreveu: "Existem pessoas
demasiado sensíveis que estremecem vendo a fotografia de cabeças fora dos corpos.
Essas pessoas necessitam uma explicação. Cortar cabeças nem sempre é uma
barbaridade”.
Com ainda mais escárnio, o
romancista continua, demonstrando sua indignação: “Cortá-las (as cabeças) no
interior da África, e sem discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa,
a machado e com discurso, não é barbaridade. O discurso nos aproxima da
Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos
progredindo, não somos bárbaros, graças a Deus".
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