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terça-feira, 13 de agosto de 2024

JOÃO BEZERRA FALOU AO 'O GLOBO' EM 26 DE JUNHO DE 1957 “CANGACEIROS TENTARAM FUGIR, QUANDO AS PRIMEIRAS CABEÇAS ROLARAM”

 

 Para “restabelecer a verdade histórica”, o coronel João Bezerra descreve, quase vinte anos depois, com detalhes impressionantes, a carnificina que marcou o fim de Lampião e seu bando sinistro – “suspense” em plena caatinga, numa madrugada chuvosa de Julho de 1938 – “o degolamento foi uma medida acertada e não me provocou remorso”, diz a “o globo” o oficial da força pública de Alagoas, hoje reformado e fazendeiro

MACEIÓ, junho (De Ivan Alves, enviado especial de O GLOBO) – Assegurando que o degolamento de Lampião foi “uma medida acertada” – pois, se não houvesse ocorrido, muita gente no sertão não acreditaria que ele tivesse sido eliminado – e que o célebre cangaceiro não era o “cabra” mais valente e o melhor estrategista do seu grupo, o coronel João Bezerra, que combateu, também, contra o Sr. Luiz Carlos Prestes e serviu sob as ordens do general Góis Monteiro e do então major Eduardo Gomes, encontrando-se, hoje, na reserva da Força Pública do Estado, acedeu em falar a este repórter, rompendo um silêncio de vários anos, sobre a chacina desenrolada, sob seu comando, há quase duas décadas, em Angico, às margens do São Francisco.

O coronel João Bezerra, que conta atualmente 52 anos de idade e é um tranquilo fazendeiro no interior das Alagoas, nega, porém, tenha mandado decapitar o mais famoso chefe do cangaço, revelando ainda que pretende figurar, em breve, como ator, num filme do deputado Tenório Cavalcanti, em torno da vida e da morte do homem cuja série de crimes interrompeu numa manhã chuvosa de outubro de 1938, “para desafogo e alegria das caatingas nordestinas, que amanheciam e anoiteciam sob a alça de mira dos trabucos de Virgulino Ferreira”, como hoje relembra, friamente, ante a memória da sangueira celebrada em prosa e em verso, e em tom legendário, por todo o Brasil.

CAPITÃO, NÃO: CORONEL

Tipo clássico de caboclo, grosso e atarracado, cabelos e bigodes grisalhados pela ação do tempo e das lutas na caatinga, olhos brilhantes, mas sempre ressumbrando desconfiança, o dizimador do mais terrível conjunto de cangaceiros que já atuou no árido Nordeste avistou-se com a reportagem no saguão do principal hotel da capital alagoana.

“É ao capitão João Bezerra que temos o prazer de nos dirigir?” – perquirimos. E o nosso interlocutor, erguendo-se da poltrona: “Não. É ao coronel João Bezerra”. Tentando contornar o equívoco, observamos: “Creio que seria dispensável dizer que seu nome é conhecido em todo o País”. E ele, fitando o repórter ainda sem muita identificação: “Parece que sim.”

Vencido o constrangimento inicial, provocado pelo engano relativo à patente, o coronel João Bezerra dispôs-se a falar fluentemente, sem peias. Mais adiante, chegaria a confidenciar ao major Ataíde, assistente-militar do Governador do Estado e coordenador da entrevista, que gostara do repórter, que se lhe afigurara “um bom cabra perguntador”, salientando, ademais, que demonstráramos grande confiança em sua narrativa.

SAUDADE DOS PÉS DE ÁRVORE

Perguntamos ao coronel João Bezerra como e onde vive, atualmente. E completamos:
- Sente saudades daqueles tempos árduos de militança na Força Pública estadual?

O coronel João Bezerra prendeu no lábio um tênue sorriso que se insinuava e afirmou:
- Trago no peito a nostalgia da minha Polícia Militar e mais até dos pés de árvore, a cuja sombra eu descansava durante os dez anos que combati.

 Contou-nos, a seguir, que se reformou há seis meses, no posto de coronel. Quando liquidou o bando de Lampião era um simples tenente, de 33 anos de idade, nascido em Afogado das Ingazeiras, município de Pernambuco, nos lindes desse Estado com a Paraíba. “A comuna divide-se na serra”, explicou melhor. Abeirando-se dos cinquenta anos, passou a se dedicar por completo à fazenda Aquidabã, de sua propriedade, localizada no distrito de Ibateguara, município de São José de Lajes, em Alagoas.

ONDE O ARADO SUBSTITUI A ESPINGARDA

- Na minha propriedade rural – informa o entrevistado, com indisfarçável orgulho – desenvolve-se uma apreciável criação de gado. Demais disso, planto café, cana de açúcar e cereais. Raramente, em consequência, venho à capital do Estado.
O repórter indaga se ele se enquadrou no novo regime. A resposta vem, sem titubeio:
- Integrei-me perfeitamente na qualidade de fazendeiro, após os meus trinta e quatro anos de farda.
E quando o repórter comenta que, assim, o arado está substituindo a espingarda, ele contravém, reticencioso:

- Mais ou menos...

ALGUMAS “BRIGUINHAS” EM 1930

Já mais à vontade com o jornalista, o coronel João Bezerra adianta que sua primeira filha se formou recentemente em comércio; outra está terminando o curso ginasial em São José de Lajes, enquanto o terceiro filho, de apenas seis anos de idade, ainda não se afastou da fazenda para estudar. E, reportando-se a um aspecto pouco vulgarizado de sua vida, acrescentou:
- Fiz todas as campanhas contra o banditismo organizado e ofereci combate ao Sr. Luiz Carlos Prestes. Como sargento, em 1926, incorporei-me à 6ª Companhia de Alagoas. Em 1930, fiz excursão deste Estado ao Rio de Janeiro. Viajei três meses, enquanto durou aquela questão, a saber, as briguinhas que então surgiram no País.

RECORDANDO GÓIS E O BRIGADEIRO

O coronel João Bezerra acaricia gostosamente uma faca – e o fotógrafo opera a chapa. O entrevistado larga o instrumento e pede a repetição da fotografia. É atendido e agradece:

- Agora, eu fiquei mais bonito...
Retoma, então, o fio do relato:


 - Em 1932, participei da Revolução Constitucionalista de São Paulo. Estive sob o comando do general Pedro Aurélio de Gois Monteiro (Foto ao lado) de quem fui amigo e a quem sempre considerei um extraordinário tático.

Fui aproveitado, outrossim, como chefe da tropa de vigilância no Campo de Aviação de Rezende, dirigido, inicialmente, pelo então capitão Dyott Fonte nele e, em seguida, pelo então major Eduardo Gomes. Servi, também, com o “Melo Maluco”.

PRIMEIROS ELOGIOS NAS FOLHAS

O vento ligeiro de Maceió – réplica nordestina do minuano dos pampas – arremessa-se com violência de encontro à janela, junto à qual se desenrolava a entrevista. Perguntamos ao coronel João Bezerra se o vento o estava importunando. E ele:
- Deixa ficar, que não dá pra derrubar nenhum cabra de raça.

O nosso entrevistado é homem de memória realmente excepcional: afiança que um graveto que tenha estalado sob sua bota nas longas andanças pelos sertões atormentados do Nordeste certamente será lembrado, caso se faça necessário. Voltando a discorrer sobre o movimento de 1932, acrescenta:
- Ainda hoje, lamento tenha sido desmoronada uma tropa nossa em Bocaina, onde se travaram diversos combates machos. Os jornais referiram-se elogiosamente à minha atuação, por eu ter tomado a vanguarda da porfia.

LUIZ PEDRO, SUPERIOR A LAMPIÃO

A janela, a pedido de um amigo comum, se fecha. Oferecemos um copo de água mineral ao entrevistado e ele recusa: “Por ora, não”. Em sequência, entrando propriamente no objeto da reportagem garante:

- Homem, o bandido que criou nome foi Lampião, mas no grupo dele havia estrategistas mais hábeis, como Luiz Pedro, que também era mais valente e mais esperto do que o chefe.

O coronel João Bezerra percebe o nosso espanto e adita:

- Todavia, Lampião também era um cabra valente da peste.

DETALHES INÉDITOS SOBRE O FIM DO BANDOLEIRO

O repórter solicita ao coronel João Bezerra que focalize a morte do famigerado Virgulino Ferreira, comissionado como capitão por decreto do Governo Bernardes. O entrevistado parece comprazer-se com a solicitação:
- Está certo: vou devassar para vocês passagens que nunca pude devassar sobre os meus passos para chegar a Lampião.
E, segurando o braço do repórter:
- Reconstituirei a verdade histórica, que alguns tentam vulnerar.

PROCURANDO LOCALIZAR A “GANG”

O coronel João Bezerra, ereto na cadeira e policiando todas as anotações do repórter, reconta, então, desde o seu início, a caçada que, desencadeando-se na hinterlândia das Alagoas e de Pernambuco, mobilizou a atenção nacional. Seu tom de voz, agora, torna-se mais duro:

- Fortemente apoiado pelas autoridades, comecei por efetuar sindicâncias para a localização do grupo. Numa diligência que eu fizera, quando eles passaram no município de Palmeira dos Índios, eu soube que ali haviam tiroteado com o sargento Porfírio, em Craibeiras. Eu me achava em Olho D’Água das Flores, de ordem superior, por acreditarmos que eles procurariam aquele centro. Encontrava-me, dessarte, na boca da barra, mas lá eles não compareceram.

REMUNICIANDO O CONTINGENTE

Deduzimos que a primeira tentativa fora frustrada. E o coronel João Bezerra, ajeitando o laço da gravata, sem maior convicção:

- Homem, cangaceiro, como mosca, a gente não derruba com o primeiro tapa.

E continuou:

- Somente depois do tiroteio, já mencionado, entre os facínoras e a Força Pública, ocasião em que, confirmando o adágio, entre mortos e feridos se salvaram todos, segui para Santana de Ipanema, em caminhão, onde apanhei munição suficiente para reabastecer a tropa, que demandaria o homizio dos cangaceiros. Chegando a um povoado de nome Tiririca, embosquei casas de caboclos – alguns prisioneiros do grupo – e, às 8 horas do dia seguinte, eu os peguei, assombrados, obrigando-os a orientar a tropa até o sítio onde haviam deixado o grupo, que era nas caatingas fechadas, onde havia numerosas macambiras.

LAMPIÃO DÁ TAPA, EM LUGAR DE ESMOLA

- Lobrigando algumas macambiras com folhas quebradas, interroguei um ex-prisioneiro do bando. Ele me asseverou que fora ele que ali caíra. Ao pedir uma esmola a Virgulino Ferreira, deste recebeu violento tapa, projetando-o ao solo. Dispensei o prisioneiro, porquanto já levantara todos os vestígios da passagem dos delinquentes, e ative-me aos seus rastros durante doze dias, perdendo-os nas caatingas de Guaribas, perto da vila de São Domingos, município de Buíque, Pernambuco.

MAIS DE DUZENTOS QUILÔMETROS ENTRE ESPINHOS

A um quesito do repórter, o entrevistado esclarece:

- Cumpri, aproximadamente, nesse percurso, quarenta léguas, com as voltas e revoltas da caatinga. Eis os lugares que me lembro de ter percorrido, na pista dos cangaceiros, nessa viagem: Lagoa do Jirau, Riacho do Mel, Riacho de Traipu, Serra dos Tocos, Poço do Cosme, Lagoa da Camisa, Serra do Uruçu, Serra das Antas, Currais Novos, Serra de São Pedro, Sete Lagoas, Uamaro. Saí de lá emplastrado de espinhos.

DESENHA-SE O DESÂNIMO

- Em face do ‘escondimento’ dos rastros dos criminosos, verifiquei que eles se iam acampar ocultamente, porém já na proteção de alguém, no povoado. Distante cerca de quinhentas braças do local, escolhi entre os 95 homens 20 soldados dos mais carrancudos – que mais facilmente se poderiam assemelhar com os marginais – para poder fazer investigações diretas. Percebendo que nas maiores casas de negócios havia um aspecto de indignação, abordei um comerciante sobre a existência ou passagem de cangaceiros por ali.

Ele redarguiu que ignorava totalmente o fato. Sondei os demais, mas nenhuma informação obtive a respeito. Meu ato subsequente foi retornar ao seio da tropa, no acampamento. Um leve desânimo desenhou-se em mau espírito.

ABATE DE BODES CRIA UMA PISTA

- Chegando ao acantonamento, vi que já haviam abatido quinze bodes. Inquirindo de quem era a criação, responderam-me que parecia ser do subdelegado local. Mandei chamá-lo, apresentando-se ele imediatamente para cobrar a despesa. Fê-lo, porém, a preço exorbitante.

Chamei-lhe a atenção, frisando que não deveria deslembrar-se do convênio sobre o custo de gado e de bode para tropas volantes. Ele concordou e eu ainda o interpelei com certo rigor, acentuando que quem não era amigo dos soldados passava a sê-lo dos cangaceiros.

COMUNICAÇÃO COM AUTORIDADES PERNAMBUCANAS

O coronel João Bezerra relata, adiante:

- O subdelegado demonstrou, então, que já tinha estabelecido contato com os cangaceiros, naquele dia. Compreendendo que eles se achavam perto, talvez escondidos pelo próprio subdelegado e temeroso de argui-lo sozinho, porque no “aperto” ele poderia morrer, daí surgindo más consequências e aborrecimentos entre unidades federadas, resolvi telegrafar ao Comandante Optato Gueiros, que se encontrava em Águas Belas, nos seguintes termos:

 Optato Gueiros

“Venha urgente para tratarmos do plano para a campanha, pois, desta feita, obteremos os melhores resultados de toda a ofensiva contra o banditismo”. Não quis ser mais explícito, visto como, naquela época, os telegrafistas eram quem mais prevenia os cangaceiros. Obtive, pouco depois, a resposta que transcrevo: “Deixo de atender ao vosso chamado, por motivo de os veículos se acharem em reparos. Opino, entretanto, por uma batida nas caatingas dos Guaribas”. Diante do exposto, deliberei pegar o subdelegado, desse no que desse. Mandei buscá-lo, mas ele se evadira, ganhando o mato. Esperei mais três dias, mas ele não regressou.

TENTANDO DESPISTAR

- Aproveitei a boa vontade do sargento Domingos Cururu e ordenei-lhe que, regressando o subdelegado, ele lhe batesse duro. Retirei-me, pois com a minha presença ele não tornaria. Segui, então, para Águas Belas, onde o comandante Optato Gueiros me aguardava. Lá, trocamos ideias a respeito da questão em lide, tendo eu rumado, a seguir, para Santana, a fim de prestar contas da diligência de quatorze dias ao coronel Lucena, de quem obtive oito dias para descansar. Transcorrido esse período, fui cientificado pelo próprio coronel Lucena, comandante-chefe das tropas volantes com sede em Santana, de que circulavam boatos segundo os quais Lampião atravessara a fronteira de Pernambuco, entrando em Alagoas, pela zona de Pilão do Gado, já município de Mata Grande. Tocando num lugarejo circunvizinho, tomou umas cargas de rapadura dos matutos, fazendo com que estes o ouvissem anunciar que ia direto a Moxotó. Compreendi logo que era justamente o contrário, pensando o coronel Lucena como eu.

NO COMANDO DA TROPA

- Segui imediatamente com a tropa, tendo convidado, por telegrama, o coronel Lucena, a fim de nos juntarmos no Barro Branco. Acertamos aí o esquema da ação policial, com o coronel Lucena passando-me o comando de toda a tropa em manobra, determinando, ainda, que eu fosse para Mata Grande com o aspirante Ferreira, que ele, três dias após, iria levar nossos vencimentos e ultimar providências porventura não assentadas até àquele instante. Vencido o prazo, chegando o coronel Lucena ao local, eu já havia ordenado as buscas em Moxotó, verificando-se a existência de vestígio de bandidos na região.

Combinei com o mesmo coronel Lucena telegrafar ao comandante Optato Gueiros, em Aguas Belas, chamando-o a Maravilha, com o objetivo de acertarmos o envio de tropa pernambucana para Moxotó, enquanto eu pegaria a pista da “gang” de Lampião, para saber o local em que se havia homiziado. Providenciei a mudança de comando da tropa em Mata Grande, deixando elementos de minha absoluta confiança sob a liderança do então sargento Aniceto, segui ribeira abaixo, onde, com quatro léguas, peguei a pista, deixando-os na Serra da Cachoeira, entre Pão de Açúcar e Piranhas.

APROXIMANDO-SE DO GRUPO

O coronel João Bezerra sorve rapidamente um cafezinho, assiná-la que as minúcias que nos está dando nunca foram antes enunciadas, e ajunta:

- Verifiquei, então, que no rumo por eles escolhido iriam diretamente à Serra do São Francisco, que estava próxima, às margens do rio do mesmo nome. Propus-me demandar Piranhas, objetivando abastecer a tropa e, como era dia de feira, estudar psicologicamente a fisionomia de cada um dos coiteiros que por ali aparecessem, o que foi feito com precisão.

POR TRÁS DOS ÓCULOS ESCUROS

- Na ocasião em que o mercado estava reunido, sentei-me em uma cadeira de loja cujo dono era o maior coiteiro da zona, do lugar onde desembocavam os caminhos vindos das caatingas onde se achavam os bandidos. Eu usava óculos escuros, para esconder minhas reações. Elementos procedentes daquelas bandas – aproximadamente uns vinte – quando batiam com os olhos em mim passava no intimo de cada um deles, fui ao telégrafo e passei um telegrama a mim mesmo, assim redigido: “Tenente João Bezerra. Piranhas, venha urgente. Lampião está com todo o grupo em Moxotó. Capitão Elpidio. Delegado de Polícia”. O despacho fora feito falsamente como sendo de Mata Grande. Com isso, visava a bigodear os coiteiros e verificar a sua reação. Entreguei o documento ao estafeta, depois de carimbado, e retornei à minha cadeira.

O coronel João Bezerra faz um parêntesis para sublinhar:
- Eu nunca disse essas coisas a nenhum repórter.

Agradecemos a deferência e ele narra:

- Chegou o estafeta, entregou o telegrama e passei o recibo. Comentei, então, em tom provocativo: “Cangaceiro não é qualidade de gente!” Li, a seguir, o telegrama em voz alta e grande número de coiteiros se acercou para ouvir-me melhor. Através dos óculos escuros, vi que eles estavam mangando de mim...

COM A NOTA DE LAMPIÃO NO BOLSO

O coronel João Bezerra toma o quarto cafezinho da entrevista, que foi escrita entre 19h10m e 23h20m, e descreve:

- Assim foi que o notório coiteiro Pedro de Cândido, que viera fazer feira para o próprio grupo, foi quem mais me olhou e mais riu, uma vez que se achava com a nota da despesa de Lampião no bolso e Cr$ 2 500,00 em espécie, quantia essa pertencente ao bandido. Depois de lido o despacho, mandei tocar “reunir”, embarquei a tropa num caminhão e propalei que me dirigia a Moxotó, onde consoante o telegrama, se achavam os cangaceiros.

A VOLTA INESPERADA (Para os Coiteiros)

Dezenove anos passados, o coronel João Bezerra parece feliz com sua estratégia. Sorri com certo entono ao referi-la:

- Chegando a Pedra, estacionei, aguardando a noite para voltar, o que fiz, reforçando a tropa. Às 18h30m, eu estava em Piranhas, onde, evidentemente, ninguém me esperava. Os meus agentes tinham notícias mais frescas, declarando-me que o Pedro de Cândido há três dias havia passado na beira da roça de um cidadão, nas caatingas, com duas bandas de bode nas costas, rumo à Serra de São Francisco, onde eu suspeitava achar-se o grupo.

PRENDER PEDRO DE CÂNDIDO, EIS A QUESTÃO

- Inferi logo que, detendo Pedro de Cândido, estaria tudo resolvido, o que logrei às 2 horas da madrugada. Com três canoas pequenas, atreladas umas às outras, por não dispor de canoa grande, e sob os maiores perigos de naufrágio, cheguei ao local de nome Remanso, distante do povoado de Entremontes, onde morava o coiteiro.

Mandei bater na porta e fazer o sinal de tropa, dizendo-lhe que eu queria falar-lhe. Pedro de Cândido, ao ver o miliciano, apavorou-se, conseguindo ludibriá-lo. Deixou de comparecer, pretextando que um boiadeiro da Bahia poderia descobrir que ele estava tendo entendimento com a milícia estadual e isto lhe seria fatal.

SINAL DE CANGACEIRO ABRE A PORTA DE COITEIRO

- Indignei-me com a recusa e determinei ao soldado insistisse, trazendo Pedro de Cândido de qualquer maneira, ainda mesmo disparando-lhe o parabélum, o que foi cumprido dentro de dez minutos, comparecendo Pedro de Cândido à minha presença. O soldado usou de estratégia, fazendo o sinal de cangaceiro, o que levou Pedro de Cândido a abrir a porta da frente, quando já se aprestava a fugir pela de trás. Ao ver, então, o soldado, exclamou: “Você voltou para me matar?” Ao que o praça retrucou: “O tenente me ordenou que, se não pudesse trazê-lo, eu o matasse, aqui mesmo”. Pedro de Cândido resolveu comparecer.

BEM PERTO DOS MALFEITORES

- De posse desse achado, peguei Pedro de Cândido na abertura da camisa e, com pequeno gesto com o joelho, o coiteiro caiu ao chão. Fiz-lhe, na oportunidade, um susto gostoso, puxando o punhal e colocando-o abaixo de sua costela mindinha. Perguntei-lhe se estava disposto a mostrar os assaltantes. Ele concordou, contando-me, ainda, a mangação que fizera, supondo que eu estava, mesmo, em Moxotó. E, sem mais preâmbulos, atravessamos o rio na mesma embarcação, sem rumor, pois estávamos bem perto do grupo.

UM “INTERMEZZO” SENTIMENTAL

- Quando saltamos do barco, Pedro de Cândido me requereu, em prantos, que eu assentisse em que ele fosse tomar a benção à sua mão, cuja residência era ali próximo, como apontou com o dedo. Consenti. O aspirante Ferreira e eu o acompanhamos de perto, enquanto as minhas forças gozavam uma trégua.

Eram 3 horas da madrugada e chovia torrencialmente. Ao passar por debaixo de duas quixabeiras frondosas, nas proximidades do domicílio, Pedro de Cândido parou repentinamente e assinalou: “Seu tenente, o senhor deveria ter trazido mais soldados. Cangaceiro é a peste! Talvez a minha casa esteja cheinha deles”. Revoltei-me: “Por que não me advertiu antes, miserável, mas só agora?”

UM ALVO BRANCO SE RECORTA NO NEGRUME DA NOITE

A expectativa dos que ouvem as palavras do coronel João Bezerra é inocultável. Ele, porém, não denota qualquer exaltação:

- Nesse momento, ordenei ao aspirante que destravasse a metralhadora e se colocasse atrás da residência. Quanto a mim, coloquei o pente de cinquenta tiros na minha metralhadora possante e recomendei a Pedro de Cândido que batesse na porta, fazendo o sinal de cangaceiro, e chamasse o irmão. O irmão respondeu logo: “Pedro?” E este: “Venha cá!” Imediatamente, abriu-se a porta e o irmão de Pedro de Cândido saiu com uma camisa muito branca, que se recortava bem na escuridão. Olhou bem pertinho da minha cara e espantou-se: “Uai! Já está aqui?” Ao que Pedro de Cândido aconselhou: “Meu irmão, conte logo tudo, que nós vamos morrer por causa dos cangaceiros e eu já sofri o diabo”.

FORNECENDO A PISTA DEFINITIVA

- Aí eu perguntei: “Os cangaceiros estão por aqui?” Ele, antes de proferir qualquer frase, olhou para o irmão, que o encorajou: “Diga tudo, meu irmão, senão nós vamos se acabar!” Ele virou-se, então, para mim e se abriu: “Estão, sim, seu tenente. Os cangaceiros estão lá”. E eu: “Como é que você sabe que estão lá?” E ele, rápido: “Porque eu estive lá, na boquinha da noite, para ver uma máquina de costura que o capitão (Lampião) me prometeu, mas dona Maria (Maria Bonita) estava cosendo e ele me disse que eu fosse buscá-la bem cedinho, devendo eu, então, procurá-la no pé da pedra, debaixo das macambiras, onde ele, se não estivesse mais lá, deixaria o aparelho escondido”.

Sorri: “Então vamos ver logo, senão você perde a sua máquina”. E o cabra, tremendo: “Ave Maria! Nesse caso, eu preferia perder!” Fiquei, por motivos óbvios, com esse coiteiro, entregando seu irmão ao aspirante. Sentenciei, logo depois: “A camisa é branca; se correr, é um bom alvo”.

PREPARANDO A TROPA PARA O COMBATE

Perguntamos ao coronel João Bezerra qual era o seu estado de espírito, naquele momento. Ele nos olha de lado: “Nenhum nervosismo. Eu tinha a tranquilidade de quem vai para um batizado de cabra que acaba de nascer”. Reintegra-se na história:

- Voltamos para junto da tropa: clareando-os com uma pilha elétrica, acordei os praças que já dormiam: “Vamos embora”. Subimos a margem do São Francisco, num lugar muito íngreme, pelo lado, justamente, em que não esperavam a tropa, pois me julgavam já em Moxotó. Na chegada, esperei todo o contingente, que vinha em coluna por um, e, após reuni-lo, em círculo, 3h30m da madrugada, dei-lhes ciência de que, se Deus ajudasse, dentro de mais trinta minutos, se decidiria a parada entre a força e os cangaceiros. Grande parte dos presentes respondeu, de uma só vez: “Já andamos desesperançados de brigar; essas pestes são encantadas”. E num segundo tempo: “E porventura qual é o grupo a que o senhor se refere?” E eu, lacônico: “O de Lampião”. Ao que eles se admiraram: “É o cego?” Confirmei: “Ele mesmo”.

EM MARCHA RASTEJANTE

- O coronel João Bezerra poderia mencionar o número de homens que tinha a seu dispor, naquela noite? – indagamos.
- Eu tinha45 homens.


E adivinhando o nosso quesito seguinte:

- Lampião tinha 48 homens. A minha tropa, eu a dividi em quatro grupos: três de 10 homens e um de 15, sendo este o meu, pois dele partiria o ataque. Assim foi que ao grupo capitaneado por Ferreira de Melo eu ordenei que seguisse com o coiteiro Pedro de Cândido, que conhecia toda a disposição do adversário, e rumasse em direção ao riacho, onde se achava o sentinela, colocando-se entre o mesmo e o grupo. Em sequência, seguiria ainda riacho acima, em marcha rastejante, até avistar os cangaceiros, que dormiam ao ar livre. Ali deveriam aguardar o aviso da minha metralhadora.

CANGACEIROS EM PILHÉRIAS

- Segui margeando o riacho pela direita – chovia ainda torrencialmente e, meia centena de metros adiante, mandei descer outro grupo de 10, para ficar à direita de Ferreira de Melo, aguardando as mesmas ordens. Segui com 25 homens, realizando prodígios de equilíbrio, pelos bicos das pedras, e abaixando-me pelos matos. Aí eu já batia com a testa em celas dos cangaceiros, as quais, juntamente com as dos coiteiros que com eles foram ter, estavam dependuradas.

Lembro-me que um cavalo, que se achava apeado e tinha um grande chocalho ao pescoço, espantou-se com a tropa e deu um formidável sopro pelas narinas. Tive que recuar quase uns trinta metros para que o animal não corresse, espavorido, balançando o chocalho. Os cangaceiros já estavam acordados, pilheriando uns com os outros, falando em trocar o bornal e reclamavam contra o café, que estava frio. O ataque de surpresa já iria desencadear-se.

DEFLAGRA-SE O COMBATE

O coronel João Bezerra chega ao ponto culminante da entrevista:

- Disposta toda a tropa, quando eu me preparava para transpor uma pedra comprida, da altura de 1 metro, ouvi diversos disparos pelo lado em que colocara a tropa do aspirante e outros tentos para o nosso lado. Recebi, nesse momento, uma pancada na perna e outra na mão: vi o sangue descer, o que provava que eu tinha recebido umas balinhas. Porém, quando me levantei, fazendo força na perna, constatei que o osso estava íntegro. Olhando para a direita, vi sair fogo de quatorze fuzis, cadenciadamente, na altura de metro abaixo. Gritei, então: “Avancem!” Cinco minutos depois, notei, com satisfação, que a tropa se misturava com os cangaceiros, que, desse modo, tiveram que passar a lutar em várias frentes.

PISANDO SOBRE CADÁVERES

O coronel João Bezerra ainda alisa a lâmina da faca, mas tem os olhos postados sobre as notas do repórter. Acompanhemo-lo:

- Fui passando, então, por cima dos cangaceiros mortos, cujas vestes estavam ensopadas de sangue e de água de chuva. Lembro, também, que um soldado meu, de nome Adriano, exclamou: “Estou baleado, tenente!” E, antes que eu pudesse auxiliá-lo, ele estava com a barba serenada.

- Que significa barba serenada, coronel?

- Morto. Logo a seguir, outro soldado, Antônio Jacó, me preveniu: “Seu tenente, o cabra lhe mata!” E, de fato, o cabra atirou, mas, como o mosquetão estava descalibrado, a bala foi alojar-se num toco de catingueira, ao meu lado. Apontei a metralhadora para ele, mas logo o vi caindo por cima das macambiras, pois Antônio Jacó – cuja pontaria parecia uma olhada de machado – já o havia alvejado.

O GRITO DE VITÓRIA: “O CEGO MORREU!”


Luis Pedro do Retiro
O chão e as macambiras cobriam-se de sangue. Luiz Pedro, cabra valente pra danar, vinha ao nosso encontro, sem nos ver. Fui, de dentro do riacho, enquadrando-o na mira da metralhadora, até 10 metros. Quando me preparava para matá-lo, vi, com tristeza, que um soldado atirou primeiro.

Com mais vinte metros, vimos quatro cangaceiros caídos. Junto a eles, um soldado gritava: “O cego morreu!” Eu respondi que o cego (Lampião) não morreria assim. E ele, convicto: “Se este não for Lampião, quero ser cabra da peste, pois eu fui coiteiro dele durante dois anos”. E eu, ainda desconfiado: “Verifiquei se o olho direito dele é cego”.

Ao que ratificou o praça: “É cego, sim, tenente”. Mandei trazer o cangaceiro, no caso Lampião, mas o praça trouxe a cabeça. Alguns cabras, entrementes, conseguiam escafeder-se, enquanto as cabeças de seus comparsas rolavam pelo barro.

MEDIDA ACERTADA

O coronel João Bezerra observa que a lembrança do degolamento de Lampião e de seus sequazes ainda constitui um impacto. Elucida, por isso:

- O degolamento se enquadrou perfeitamente num processo antigo. Demais disso, não poderíamos trazer todas as cabeças. Quando os meus subordinados cortaram as cabeças, não protestei também por um outro motivo: uma falange de dedos amputada não modificaria uma fisionomia. Determinei fosse feito o reconhecimento dos cadáveres, mandando respeitar os mortos.

E repisou o entrevistado:

- O degolamento foi uma medida acertada. Se não tivesse ocorrido, muita gente, até hoje, não acreditaria na morte de Lampião.


VERSÕES QUE DIVERGEM

O nosso entrevistado vai além.

- Um dos ex-combatentes da época, coronel Manuel Neto, da Polícia de Pernambuco, e ex-prefeito de Irajá, escreveu, levantando dúvidas quanto às reais circunstâncias que rodearam o fim de Lampião.
Forçou, com isto, os meus colegas das Alagoas a censurá-lo e levou-me igualmente, a lhe escrever uma carta, que dizia, a certa altura, mais ou menos o seguinte: “Deixe, meu bom colega, que os paisanos venham em cima de nós, militares, com seu despeito, sua inveja, não um velho militar, nas suas condições, que, muitas vezes, imitando-me ou tentando imitar-me, se amparou no seu mosquetão, aguardando o pronunciamento da Justiça.

 Manoel Neto em destaque à esquerda

Você sabe bem, está bem lembrado, de quando lhe telegrafei, chamando-o, e que você, em lugar de comparecer, para me ajudar, mandou o sargento Davi Surubeba (que ainda hoje é vivo e está lembrado), que chegou retardado, encontrando-me nas mãos de dois médicos, que me pensavam dos ferimentos recebidos no combate meia hora antes.

E Davi Jurubeba e o sargento Odilon Flor, de saudosa memória, pegaram as cabeças dos cangaceiros, tendo o primeiro, ao erguer a de Lampião, asseverado, chorando: “Queria que fosse eu que tivesse morto Lampião. Mas foi o meu amigo, tenente João Bezerra, quem o matou”.

MEMÓRIAS EM TERCEIRA EDIÇÃO

Perguntamos ao coronel João Bezerra sobre Volta Seca, atualmente no Rio de Janeiro, onde até se iniciou como cantor. A resposta é áspera: “É um cachorro!” Narra-nos, então, um episódio, impublicável, marcado pela maior brutalidade, cujo protagonista principal foi aquele ex-integrante do grupo de Lampião.

E arremata o entrevistado, após acentuar que a fita “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi uma pantomima, sem guardar qualquer relação com a verdade histórica, e que pretende figurar, em breve, como ator, num filme sobre a vida e a morte de Lampião, produzido pelo seu amigo, deputado, Tenório Cavalcanti.

- Dessa forma é que vou publicar a terceira edição do livro sob o título “Como dei cabo de Lampião”, com capítulos interessantes para o momento, inclusive o desmentido a algumas notas escritas irrefletidamente por pessoas inescrupulosas.

Terminara a entrevista, quatro horas e dez minutos após se haver iniciado. Conduzimos o entrevistado até à porta do hotel. “Não lhe ficou, portanto, qualquer remorso da liquidação de Lampião e seu bando?” – ré-inquirimos. E o coronel João Bezerra, firme:

- Nenhum remorso. O degolamento enquadrou-se, como já disse, num processo histórico. Depois, era mais cômodo trazer as cabeças que os corpos, dada a distância em que nos encontrávamos. Trazer os corpos seria impraticável.

O coronel João Bezerra pede que lhe enviemos exemplares do número de O GLOBO em que foi publicada a entrevista. Quando apertava a mão do repórter, um hóspede do hotel, identificando-o, comentou com o companheiro:
- Olhe o degolador de Lampião...

E o coronel João Bezerra, já ganhando a calçada:

- Aí começa a lenda. A verdade termina no que lhe contei. Foram feitas as despedidas e o coronel João Bezerra afastou-se, tranquilo, como se estivesse na santa paz dos céus, sem que lhe angustiassem o espírito aquelas cabeças que rolaram, um dia, pelo chão calcinado dos sertões, há quase duas décadas. Certamente os espectros não transpõem a porteira da sua fazenda, onde se erguem as sombras dos cafezais e dos canaviais e onde o gado muge as suas mágoas – as únicas existentes na queda fazenda Aquidabã.

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