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domingo, 15 de janeiro de 2012

ESSE ENGENHO DE FLORES (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

ESSE ENGENHO DE FLORES


Verdadeiramente, se existe uma música que mexe comigo, me aflora tudo ao mesmo tempo, esta se chama Engenho de Flores. Ao irromper a melodia, o ritmo contagiante, é como se saíssem dos sons zabumbas, chocalhos, violas, caixas, pandeiros e um povo enfeitado de fitas rodando ao redor, cantando o boi, pisando festeiro.

Cantiga bonita, que viaja nas veredas do nosso espírito. Cantiga diferente, com cheiro de gente e de festança popular. Por isso mesmo nem de longe se trata de uma canção romântica, com melodia de cadência apaixonante, ou daquelas páginas musicais, também chamadas de clássicas, inesquecíveis no percurso da vivência. Nada disso. Engenho de Flores é apenas um buquê de sentimentos.

Composta pelo cantor e compositor maranhense Josias Sobrinho e gravada com grande sucesso por Diana Pequeno, é mais raiz, mais gente, mais suor e povo do que propriamente música. Se for possível uma definição, diria que é um bailado popular, à moda da cantoria de boi. E ao ouvir a pessoa também se enfeita todo, coloca o seu colorido de roda, se enfeita de fita e de chapeu, começa a rodar atrás do povo em cantoria.

Contudo, passada a euforia do ritmo, nas entrelinhas da cantiga se encontra um verdadeiro hino à liberdade, uma bandeira do pobre trabalhador sendo libertado da submissão diária na labuta diária no engenho ou nos latifúndios, uma luz que se acende para chegar um novo dia de canto e alegria.

Um rápido olhar sobre a letra e logo se imagina o povo na sua luta diária para sobreviver, no desvão da vida que faz pingar sangue no lugar do suor. E lá vai o corpo cansado ainda de ontem para a labuta do dia, pois a empreitada chama; a foice, o facão e a enxada chamam. Mas quer dizer muito mais, pois é exatamente para mostrar o momento em que o povo não tem mais que suportar tantas agruras nas mãos dos carrascos empregadores.

E na letra, lá pelos seus escondidos, ouvem-se o barulho da máquina, o apito do trem, as dores nos corpos que se dobram em sacrifício; da ventania que sopra um lamento. E sente-se o cheiro da palha, da palha da cana, da fumaça do engenho, do suor endurecido, da terra queimando, do sol escaldando e esturricando tudo.

E é como se avistasse nas feições desse povo humilde uma junção de sacrifício e fé, de sofrimento pela realidade vivida e religiosidade exacerbada, de inconformismo e alegria por estar sobrevivendo para continuar na luta. E o que seria então o Engenho de Flores cantado na música senão a dor na sublimazia da vida? Ou seria a fronteira entre a dor e a liberdade festeira? Tudo.

Engenho de Flores que poderia também se chamar sacrifício e esperança; Engenho de Flores que poderia também ser denominado o imenso usurpador diante do pequenino que lhe dá valia e enriquecimento; Engenho de Flores que também é verdadeiro Engenho de Flores, com suas riquezas tiradas do sacrifício dos pobres e humildes trabalhadores. E todos os dias, ao apito da alma que não mais se assusta, levantam e vão fiar mais um traçado de sua sina.

Não há que se duvidar de nada disso porque o trem apita, a letra diz; porque chama o povo trabalhador, a letra diz; porque o povo vai virar fumaça e cinza, a letra diz; porque o povo só suporta a ingrata sorte pela fé que possui em São João, Cosme e Damião, como a letra diz. E que bela letra, que síntese melodiosa das fascinantes aflições dos humildes rumo à sua libertação:

“Ê, alumiô, toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Ê, alumiô, toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/ Cosme e Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra trabalhar/ Ê, alumiô, toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/ Cosme e Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra trabalhar/ Ê, alumiô, toda terra e mar/ Eu vi Fortaleza falar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar...”.

Daí, o que se tem é um verdadeiro grito de liberdade de um povo que não se submete mais ao apito do trem chamando para a sina do Engenho de Flores. E em nome desse forjado destino a usurpação, a submissão, a escravidão na plantação e no corte da cana, na juntada, nos afazeres da moenda, nas fornalhas queimando e soltando fumaça com cheiro de gente.
Como diz a letra, nesse tempo de alumiar sobre toda terra e mar não haverá mais o apito do trem do Engenho de Flores chamando para o sacrifício de vidas. E nesse alumiar surgido não haverá mais chicote nem açoite, nem grito nem imposição, muito menos a queimação de couro de gente.

Ou seria o Engenho de Flores uma metáfora? O engenho como um tempo de dor, e flores como um tempo de liberdade. Nada disso importa, se o mais importante é que não haverá mais couro de gente pra queimar.


Rangel Alves da Costa* 
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Parabéns, Rangel, pela escolha da música, objeto de suas observações e pela crônica. Já vi e ouvi também o Saulo Laranjeira cantando essa mesma composição; com o mesmo brilho da Diana. Para mim é sempre uma iluminação ou alumiação esse hino popular.
    Rangel, uma sugestão: que tal viajar na cantiga "Riacho de Areia"? Ela evoca também imagens, cheiros e sabores do que há de mais sublime no cancioneiro popular. Ela corre como extensão das vozes das lavadeiras do rio jequitinhonha tanto quanto corre o próprio rio.
    Abraço.

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