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terça-feira, 22 de maio de 2012

A memória da juventude no cangaço - Sila, a cangaceira

Por: Eleuda de Carvalho
A cangaceira Sila (1919-2005) e Daniel Lins, psicanalista, sociólogo e psicólogo: livro escrito escrito a dois

NordesteWeb.Com 1998-2005

A memória da juventude no cangaço. O balanço de uma vida. Sila, comadre de Lampião e Maria Bonita, contou sua história ao filósofo Daniel Lins

A mulher alta e elegante acomodou-se na cadeira de balanço. Pediu para fechar os olhos e abriu o coração. Despejou, por dias a fio, nos ouvidos atentos do confidente, o rosário de sua história. Uma epopéia de sangue, morte, coragem e sobrevivência na caatinga áspera e empedrada que cruza as fronteiras do Nordeste, a terra onde reinou, um dia, o bando de Lampião e Maria Bonita. A narrativa, pontuada pelo filósofo, sociólogo e psicanalista Daniel Lins, resultou no livro Sila, uma cangaceira no divã, que será lançado no próximo dia 7, no Teatro Boca Rica, com exibição de vídeos e exposições temáticas.

Ilda Ribeiro de Souza nasceu no dia 26 de outubro de 1919 na localidade de Poço Redondo, Sergipe. Viveu dois anos no cangaço, ao lado de Zé Sereno, com quem teve quatro filhos. Durante muitos anos, já em São Paulo, Sila - como era chamada desde a infância - trabalhou de costureira na TV Bandeirantes (e fez até figuração, na novela ''Os Imigrantes'', da emissora), costurou roupas para as dançarinas do Chacrinha, foi camareira das atrizes Regina Duarte e Fernanda Montenegro. Desde as filmagens da minissérie Lampião, da Globo, anos 80, que a fez regressar ao palco de sua tragédia, Sila começou a viajar, dar palestras e resgatar a epopéia do cangaço, que ela viveu na carne.

Sila morreu em 15 de fevereiro deste ano, sem ver o livro pronto. Mas ouviu-o, no leito do hospital. ''Confesso, não tive coragem de ver aquela mulher linda, cheirosa, elegante, forte, morrendo. Maria da Glória Feitosa Freitas, uma aluna minha, foi lá e leu o livro todinho pra ela'', conta, emocionado, Daniel Lins. ''Este é um livro escrito por nós dois. Começamos no ano 2000 e terminamos em 2002. Ela me obrigou a entrar na história dela'', conta Daniel Lins, pernambucano de Canhotinho, casado com a francesa Sylvie Delacours, pai de Fabien e Térence. Lins conheceu a cangaceira Sila há dez anos, quando seus estudos e pesquisas sobre o tema amiudaram.

Parte substancial do livro foi feita durante os três meses em que a cangaceira viveu com os Lins. Ela mesma deu fé na cadeira de balanço, fez dela o divã. Disse ao interlocutor: ''Eu queria que você não me visse... Posso fechar os olhos? Ela fechava os olhos e ia embora'', relembra Daniel. ''Ela transformou a coisa numa relação intimista, mas guardando a devida distância''.

O livro está organizado em duas partes. A primeira, diz Lins, é ''muito intimista. Ela vai falar de coisas que nunca falou antes''. A segunda parte é um ''abecedário'', uma das formas poéticas populares mais conhecidas dos folhetos e cantorias, na qual se cantam temas iniciados pelas letras do alfabeto. Algumas escolhidas por Sila foram descobertas recentes, da convivência com a família de intelectuais. ''Utopia. Ela achava linda, esta palavra. Outra que ela gostava muito era parênteses''.

Durante a estada, Sila, setentã, viveu um derradeiro amor. ''Um jovem, que ficará anônimo, me telefonou. O sonho dele era conhecer uma cangaceira. E aí começou o inferno, esta mulher a tremer de paixão. O menino sumiu... Ela não admitia ser infeliz. Me dizia, infelicidade é coisa de gente preguiçosa''. As conversas no divã improvisado eram costuradas por música. Uma, virou obsessão de Sila, instigava seus sentimentos eróticos. ''Escutava direto L' Aventura, de Renato Russo, dia e noite, da gente ficar louco! Um dia, ela ouviu 22 vezes seguidas''. Também gostou de ouvir Lobão, e se emocionou deveras com a cantora lírica Maria Callas. Criou intimidades, lembra Daniel Lins: ''Bota aí a música da Maria, a 3!'' - era a ária da ópera Norma, de Bellini.

Nunca uma mulher mansa. ''Ela nos dava ordens. Esta casa ficou uma doideira'', ri-se o anfitrião. ''Ela não pedia. Dava ordens. Cangaceiro uma vez, cangaceiro pra sempre''. Senhora luxenta. ''Todo dia tinha que ter um prato diferente, e francês! Mas queria também feijão. Ela impôs o feijão aqui em casa. Dizia pra mim, venha cá - olha o dedo - que história é essa de não comer feijão?''. Dava falta de outro ingrediente familiar. ''Gente, não tem uma farinhazinha aí não? Ô, povo ingrato!''.

Daniel Lins extravasa paixão quando relembra a amiga. Uma mulher corajosa, elegante, consciente de sua importância na história do país, que manteve até o final da vida os códigos de ética aprendidos no sertão e amolados no cangaço. ''É ótimo visitar as pessoas, sobretudo quando se tem uma casa para voltar. Voltar pra nossa casa é o que há de melhor'', dizia Sila. Por isso, partiu. 

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