Por: Rangel Alves da Costa(*)
ALCINO,
MEU PAI: RETRATO INACABADO
Quem vê meu
pai agora, doente e entristecido por não poder mais cortar de chinelo no pé as
estradas e ruas do seu sertão, de sua querida Nossa Senhora da Conceição do
Poço Redondo, nem imagina o que ele já foi, o que ele já fez. E certamente
ainda faria se a saúde lhe permitisse um reencontro com as forças.
Sertanejo de
raiz e pedra, de feição trigueira e tez curtida de sol, da lavra de Dona
Emeliana e Seu Ermerindo, meu pai, Alcino Alves Costa, se fez homem ainda
rapazote, quase menino. Nascido em 1940, naqueles tempos não havia muito tempo
para a criancice. Ou o trabalho na terra ou o estudo em terras distantes. Mas
nem um nem outro.
Alcino Alves Costa
Cresceu
autodidata, de pouco estudo, mas dotado da peculiaridade que caracteriza alguns
sertanejos: não acomodar perante os mesmos dias e as mesmas noites, buscando
sempre horizontes melhores para sobreviver e sonhar. Então o rapaz se fez
sonhador, mas sempre ele mesmo um príncipe de imaginário chapéu de couro,
calçado em roló, vivenciando a dura realidade sertaneja, suas guerras, suas
vinditas de sangue.
Daí se
apaixonar logo cedo pelas histórias de beatos e curandeiros, missionários e
profetas das distâncias matutas, guerrilheiros da terra do sol, cangaceiros,
coiteiros, jagunços, coronéis. E como pano de fundo toda uma nefasta política
de compadrio, assistencialismo e injustiças. Enxergou o Nordeste nu, sem os
enfeites da cidade, sem as distorções de quem vive distante, para se debruçar
sobre o grão de espinho e a rachadura ressequida da terra.
Lançou,
então, o olhar principalmente sobre o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o
Lampião. Mas por trás do maior dos cangaceiros, avistou também todo um contexto
que mais tarde esmiuçaria nos seus estudos e publicações sobre o fenômeno
cangaço. Se grande parte dos pesquisadores preocupava-se apenas em delimitar os
lados herói e bandido do Capitão, para Alcino o consenso estava em compreender
o homem perante o seu meio, e não por um feito ou outro.
Mas não se
voltou apenas para as pesquisas e análises do cangaço. Sua paixão pelas raízes
sertanejas, seus heróis e bandidos, suas gestas e parições, surgiu ladeada por
um interesse e gosto desmedidos pela autêntica música caipira, aquela vinda da
viola de pinho, das duplas caipiras, nos ritmos cheirando a terra e desventuras
amorosas do homem comum. A cada melodia uma história, sinfonia de cobre
envelhecido refletindo um jeito de ser tão sertão.
Então se
tornou incondicionalmente apaixonado pelos cururus, guarânias, cateretês,
músicas de rancharia. Mas em todos os ritmos a luz do luar sertanejo, a terra
sendo semeada, a flor da raiz de um povo. Da velha radiola – que era azul por
sinal, trazida do sul como presente por um primo - tantas vezes colocada no
banco da pracinha da matriz em noites de lua grande, ecoavam as vozes de
Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Belmonte e Amaraí, Cascatinha e Inhana.
Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Belmonte e Amaraí, Cascatinha e Inhana.
Com cerca de
vinte e oito anos, estando certa feita jogando bola no outro lado do riachinho,
foi chamado com urgência por um emissário com ordem de seu pai, o Seu
Ermerindo, para que corresse até a residência para trato de assunto urgente.
Naquela boca da noite Alcino era lançado à política, escolhido por um dos
grupos para ser o candidato a prefeito. Saiu vitorioso contra um ex-prefeito e
daí em diante se firmou como forte liderança em toda a região sertaneja.
Sempre eleito
com ampla maioria, assumiu por três vezes o destino do município de Nossa
Senhora da Conceição do Poço Redondo, na região mais seca do semiárido
sergipano. Era um político atípico, distante das perseguições e das intrigas
maldosas, de modo a ter como auxiliar na prefeitura o candidato derrotado.
Amigos, apenas de convicções partidárias diferentes, ele não relutava em
convidá-los para ser secretários ou assumir cargos de grande relevo na
administração municipal. Assim aconteceu com dois de seus adversários.
Político,
sempre vitorioso, mas sempre mantendo a humildade e simplicidade que sempre o
caracterizaram. Só vestia terno para tomar posse, depois disso a veste pomposa
ficava aos cuidados da naftalina. Inimigo feroz de sapatos, gravatas, qualquer
coisa que o impedisse de andar, muitas vezes, com a camisa deitada no ombro.
Tinha a estranha mania de andar pelas ruas mordendo uma ponta da camisa que se
estendia dobrada no corpo.
Mas amigo da
havaiana sem igual. Na capital sergipana, depois de um encontro político
importante, chegava estropiado pelos sapatos, sentindo o maior alívio do mundo
quando calçava seu velho chinelo de dedo. Também não demorava nada na capital.
Após resolver o problema seguia avexado rumo ao seu sertão.
E ao chegar,
fosse ao entardecer ou noite fechada, o alívio se completava quando colocava na
vitrola um disco de música sertaneja, principalmente de Tonico e Tinoco. O
maior fã dessa dupla que possa existir. A melodia ecoando e ele acompanhando
feito maestro matuto o “Pé de Ipê”, “Tristeza do Jeca”, “Couro de Boi”,
“Saudades de Minha Terra”.
Foi prefeito
por quatorze anos, em duas administrações de quatro anos e a última de seis,
esta lá pelos idos dos anos 80. A essa época, ao lado da música caipira,
aumentava o seu interesse pelo mundo cangaceiro, ainda refletindo tão
fortemente na região. E não se deve esquecer que as terras de Poço Redondo
foram importantíssimo celeiro de cangaceiros, com cerca de trinta mocinhas e
rapazinhos que enveredaram pelos caminhos do sol sangrento. E não apenas isto.
Foi lá nas
ribanceiras do lugar, ao lado do leito do riacho Tamanduá, na Gruta do Angico,
às margens do Velho Chico, que o cangaço deu seu último canto, ou seu último
suspiro. Eis que na madrugada de 28 de julho de 1938, vinda da cidade alagoana
de Piranhas, a volante comandada pelo Capitão João Bezerra atravessou
silenciosamente o rio para dizimar o maior dos bandos cangaceiros, ocasião em
que morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove de seus cabras.
Esta e outras
histórias foram causando grande impacto em Alcino, de modo a resolver
investigar com maior profundidade suas causas, motivações, percursos e,
principalmente, passar a limpo muita falácia que circulava em torno do fenômeno
cangaço. Tarefa difícil, mas fácil ao mesmo tempo, eis que ainda podia
encontrar ex-cangaceiros, ex-volantes e ex-coiteiros, bem como fazer pesquisa
de campo em locais próximos e que foram palcos de épicas batalhas cangaceiras.
Tornou-se
amigo íntimo de Adília, Sila,
Mané Félix e Adauto Félix, dentre outros. Além de
ser principal opositor político de um famoso ex-coiteiro, e mais tarde prefeito
do município,
Durval Rodrigues Rosa, irmão daquele que é tido por muitos como
traidor de Lampião: Pedro de Cândido.
(Coiteiro
Pedro de Cândido é o da esquerda o da direita é um comerciante de Piranhas)
Em certa época os dois rivais políticos
se uniram para vencer ameaças forasteiras e tornar prefeito um filho de Seu
Durval.
O cangaceiro Canário em 1936
Adília, mulher
do cangaceiro Canário, que menina ainda foi levada pela mão amorosa para o
bando de Lampião, era, a um só tempo, grande amiga e protegida de Alcino.
Proteção no sentido de amparo, de ajuda para sobreviver, vez que pessoa carente
demais de meios de subsistência. Ainda meninote, muitas vezes eu encontrava a
ex-cangaceira em casa, numa amizade singela com minha mãe, Dona Peta.
E
inocentemente brincava com ela, subia-lhe no colo e perguntava como tinha
aparecido aquele buraquinho na perna. Adília apenas sorria. Somente depois
fiquei sabendo da bala varando o osso, do grito de dor nas caatingas
sertanejas.
Continua...
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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