Por: Rangel Alves da Costa(*)
ALCINO,
MEU PAI: RETRATO INACABADO
Como afirmado
em linhas pretéritas, antes mesmo de enveredar pelos caminhos das pesquisas
cangaceiras Alcino já era devotado, verdadeiramente apaixonado, pela autêntica
música caipira. De Tonico e Tinoco então, o mais deslumbrado que possa existir.
Ainda menino,
mas já de ouvido atento para coisa boa, eu me encantava quando pelos quatro
cantos da moradia começava a ecoar a contagiante melodia caipira, na radiola ou
no velho rádio ao entardecer. Naquela época Alcino já era um colecionador voraz
de long-plays sertanejos, discos que cuidava com o maior zelo do mundo.
Eram centenas
de discos em vinil, ainda hoje existentes e em quantidade ainda maior, mas se
desse falta de algum então o mundo virava até se lembrar se havia doado ou
emprestado a alguém. Ao lado desses discos, a coisa que mais gostava certamente
era de sua pequena radiola, de cor azul, ainda lembro, portátil, pequenina
mesmo, que lhe fora presenteada por um parente.
Há uns dois
anos escrevi um texto intitulado “Uma radiola ao luar”, onde mencionava o
cotidiano entre Alcino e o seu inseparável toca-discos. Eis parte do que
escrevi:
“Sertão é
assim mesmo, seu moço! Bicho e poesia, cantiga e lamentação, bom dia e inté
mais se ver, boa sorte e que Deus lhe ajude! E pelos caminhos que cortam a
vida, os barracos se espalhando feito galinha no terreiro, bicho no berreiro,
qualquer coisa no cercadinho e o prazer imenso de dizer isso é meu. Não tem
nada não, seu moço, mas tudo é dele. É dele porque o sertão é dele e ele é o
sertão em pessoa.
Meu pai nasceu
num lugar assim, nessa vastidão sertaneja onde tudo mundo era feliz e não
sabia. Somente mais tarde, quando o filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo
ouviu pela primeira vez uma autêntica cantiga sertaneja, um legítimo violar
caipira, é que começou a juntar a letra da moda de viola com a terra que pisava
e a realidade vivida e decisivamente concluiu que as belezas do sertão são
melodias de se caminhar e pegar com a mão.
Foi nesse
momento que a viola caipira de Tonico e Tinoco entrou melodiosamente no coração
de Alcino. Aquele rapaz, já político e prefeito do lugar, logo ao amanhecer
escurecido ligava seu velho e potente rádio Philips, de quase meio metro de
diâmetro, e sintonizava nas emissoras paulistanas onde sabia que não demoraria
muito para ouvir a voz inconfundível da dupla coração do Brasil.
Sou filho - e
por isso mesmo posso falar - que o rapaz já casado ainda assim era um
inveterado namorador. Todo mundo sabe disso até hoje. Assim, quando um dia um
primo seu chegado do sul lhe trouxe de presente uma radiola portátil novinha,
pequenininha e azul, todas as noites, e sempre já em altas horas, Alcino seguia
em direção à praça da matriz, colocava seu toca-discos em cima de um banco e ia
escolhendo a dedo as músicas de Tonico e Tinoco.
Muitos dizem
que ele fazia serenata louvando as belezas do luarar sertanejo, outros afirmam
que era serenata mesmo, mas com outras motivações apaixonadas. De qualquer
sorte, invariavelmente se ouvia todas as noites “Tristeza do Jeca”, “Eu e a
lua” e “Pé de ipê” nas doces e inconfundíveis vozes de Tonico e Tinoco.
E se ouvia na
“Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão singelo/ minha bela, meu amor/ pra você
quero contar/ o meu sofrer e a minha dor/ Eu sô igual a um sabiá/ quando canta
é só tristeza/ desde um galho onde ele está/ nesta viola eu canto e gemo de
verdade/ cada toada representa uma saudade...”.
Na “Eu e a
lua”: “Eu me desperto em arta madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom
profundo lamento em meu pinho/ Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir
ingrata quem deixou de amar/ Somente a lua no céu estrelado/ Está a meu lado,
surgiu num clarão/ E tu querida nem abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha
canção/ Tu foi aquela muié sem coração...”.
E “Pé de ipê”:
“Eu bem sei que adivinhava/ quando as veiz eu ti chamava/ de muié sem coração/
Minha vóiz assim queixosa/ vancê é a mais formosa/ das cobocra do sertão/ Certa
veiz tive um desejo/ de prová ao meno um beijo/ da boquinha de vancê/ Lá no
trio da baixada/ pertinho da encruziada/ debaixo de um pé de ipê...”.
Até hoje, já
aos 70 anos, Alcino continua ainda mais apaixonado pela autêntica música
caipira. Naqueles idos suas paixões eram muitas e até dizem que muitas eram as
mocinhas que choravam nos travesseiros ou pertinho das janelas, com os apertos
nos corações que sempre chegam altas horas da noite e com a serenata sertaneja
de Alcino”.
Mas hoje
Alcino já chegou aos 72 anos e se não fossem as contínuas enfermidades que lhe
afligem certamente ainda colaboraria muito com a cultura e a história
nordestina. É possuidor de um verdadeiro acervo de obras inacabadas, livros que
estão prestes a serem publicados, poemas matutos para serem transformados em
canções. E sonhos, muitos sonhos.
O seu primeiro
sucesso como compositor ocorreu pelos idos da década de 70, quando ainda era
mais político do que qualquer outra coisa. Contudo, foi a política que o
aproximou de grandes artistas nordestinos, de sanfoneiros da melhor qualidade,
possibilitando que fizesse chegar aos rincões semiáridos de Nossa Senhora da
Conceição do Poço Redondo a musicalidade que tinha a feição do seu povo.
Quando
prefeito, Alcino acostumou a todo final de ano oferecer ao seu povo uma
festança diferenciada, com grandes nomes sertanejos e forró da melhor
qualidade. Assim, a rua da prefeitura, no centro da cidade, era fechada de
canto a outro e num dos lados um caminhão servia de palco para as
apresentações. E por lá passaram Pedro Sertanejo, Elino Julião, João do Pífano,
Gérson Filho, Clemilda, Abdias, Messias Holanda e tantos outros.
Mantinha uma
amizade muito próxima com o grande forrozeiro Gérson Filho e sua esposa
Clemilda. E foi esta que gravou, no ano de 1973, um verdadeiro hino sertanejo
de sua lavra, chamado “Seca Desalmada”, que deu nome ao disco da forrozeira
alagoana/sergipana e despontou como o maior sucesso daquele período. A letra,
cuidando da fé e da religiosidade do povo sertanejo, dizia assim:
“Visitei o
Juazeiro que fica lá no sertão/ Havia muito romeiro escutando um sermão/ Eu
também fui escutar/ Prestei bastante atenção/ Perguntei quem era o padre/ Meu
Padim Frei Damião que vinha da eternidade/ Pra salvar o meu sertão/ O sertão
está passando uma grande provação/ É a seca desalmada acabando com o cristão/
Mas temos um defensor/ Meu Padim Frei Damião/ Padim Ciço Foi embora/ Para o céu
Deus o levou/ O romeiro do sertão de tristeza até chorou/ Mas agora vive
alegre/ O santo Padre voltou”.
Muitas outras
canções compostas por Alcino foram sendo gravadas por duplas caipiras ao longo
dos anos. Contudo, duas especialmente, e gravadas mais recentemente, alcançaram
grande sucesso no sul do país. A primeira, registrada por Dino Franco e Mouraí
no CD Presente de Deus, é um cateretê intitulado “Garça Branca da Serra”, cuja
letra diz:
“Naquela serra
do norte o sol nascendo dourado/ Lindos raios vão surgindo naquele reino
encantado/ Ao longe a serra azul formando um manto sagrado/ A garça branca da
serra tem ali o seu reinado/ Bem pertinho da cascata/ E perto da verde mata
daquele sertão amado/ É obra da natureza o mundo da passarada/ A serra desponta
bela no final daquela estrada/ A garça branca da serra fez ali sua morada/
Quando chega a tardinha ela volta pra pousada/ Com seu porte de rainha/ A
plumagem é branquinha parece deusa sagrada/ Também tenho a minha garça, garça
linda meu senhor/ Ela não mora na serra e também nunca voou/ É uma bela morena
com um olhar encantador/ E a mulher que eu amo que o destino me enviou/ Ela
vive em meu ranchinho/ É a garça do meu ninho, um bem que Deus me deixou”.
Já a segunda,
“Desencanto da Natureza”, foi gravada por Dino Franco e Fandangueiro e se
constitui num verdadeiro grito ambientalista, cuja preocupação maior é apontar
as atrocidades do homem perante a fauna e a flora, a natureza enfim. Eis a
letra:
“Eu vejo lá
bem distante os papagaios voando/ Cada vez indo pra longe, o sertão estão
deixando/ Fugindo da mão do homem, outro habitat procando/ Periquitos e araras
também vão se retirando/ A raposa espreita tudo desconfiada olhando/ E o homem
sem piedade cruelmente vai matando/ Caçador, caçador, com você estou falando/
Não mate a fauna e a flora, quero vê-las procriando/ Muito triste a mata chora
a morte da passarada/ Os campos virando cinza com a fúria da queimada/ Na
sombra da quixabeira não se vê onça pintada/ Caititu se retirou pra bem longe
da baixada/ Galho seco despencando, caindo lá da ramada/ O homem cortando tudo
em medonha derrubada/ Roçador, roçador não pegue mais empreitada.
Encoste a
foice e o machado, evite fazer queimada/ O sertão é um paraíso, paraíso de
esplendor/ Mata virgem, céu azul e canário dobrador/ Inhambu piando triste
quando a tarde furta-cor/ Os bichos todos fugindo da mira do caçador/ O riacho
ainda chora a mata cheia de flor/ E o homem destruindo as obras do Criador/
Predador, predador, olhai para o que restou/ Predador, predador, não mate o que
Deus criou/ Não mate o que Deus criou”.
Entretanto,
não duvido que a música que ele mais admira é uma composição sua em parceria
com Dino Franco, cujo título “Sertão, viola e amor” é o mesmo do programa que
manteve por muitos anos na Rádio Xingó Fm, de Canindé do São Francisco. Todas
as tardes de sábado, com todos os radinhos sertanejos ligados, muitas vezes
juntinhos ao ouvido, começavam ouvir a música de abertura do programa:
“No
nordeste brasileiro/ Uma onda se espalhou/ Na voz da Rádio Xingó/ Com seu
apresentador/ Foi uma benção divina/ A um povo sofredor/ O violeiro cantando/
Sertão, viola e amor/ O cavaquinho do samba/ Num canto se encostou/ O tamborim
fez silêncio/ Pra longe se retirou/ A natureza sorriu/ Ouvindo seu trovador/ No
rádio leu-se a mensagem/ Sertão, viola e amor/ Cantigas e mais cantigas/ De um
tempo que já passou/ As trovas apaixonadas/ Do poeta cantador/ Histórias de
vaquejadas/ Maravilhas, sim senhor/ Me alegra quando ouço/ Sertão, viola e
amor/ No nordeste, leste, oeste/ O povo se admirou/ Ouvindo a Rádio Xingó/ E
seus poemas de amor/ Canta, canta minha gente/ Pois violeiro também sou/ O
Brasil todo conhece/ Sertão, viola e amor”.
Na Rádio Xingó
declamava os seus versos, falava aquilo que o sertanejo tanto gosta de ouvir, e
entremeava seus diálogos cheirando a terra com a melhor música caipira,
escolhida a dedo, oferecida com o coração. Eis o Alcino, o caipira de Poço
Redondo, com o seu viver tão marcante.
Continua...
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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