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terça-feira, 30 de outubro de 2012

ALCINO, MEU PAI: RETRATO INACABADO - III (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

ALCINO, MEU PAI: RETRATO INACABADO

Como afirmado em linhas pretéritas, antes mesmo de enveredar pelos caminhos das pesquisas cangaceiras Alcino já era devotado, verdadeiramente apaixonado, pela autêntica música caipira. De Tonico e Tinoco então, o mais deslumbrado que possa existir.

Ainda menino, mas já de ouvido atento para coisa boa, eu me encantava quando pelos quatro cantos da moradia começava a ecoar a contagiante melodia caipira, na radiola ou no velho rádio ao entardecer. Naquela época Alcino já era um colecionador voraz de long-plays sertanejos, discos que cuidava com o maior zelo do mundo.


Eram centenas de discos em vinil, ainda hoje existentes e em quantidade ainda maior, mas se desse falta de algum então o mundo virava até se lembrar se havia doado ou emprestado a alguém. Ao lado desses discos, a coisa que mais gostava certamente era de sua pequena radiola, de cor azul, ainda lembro, portátil, pequenina mesmo, que lhe fora presenteada por um parente.

Há uns dois anos escrevi um texto intitulado “Uma radiola ao luar”, onde mencionava o cotidiano entre Alcino e o seu inseparável toca-discos. Eis parte do que escrevi:

“Sertão é assim mesmo, seu moço! Bicho e poesia, cantiga e lamentação, bom dia e inté mais se ver, boa sorte e que Deus lhe ajude! E pelos caminhos que cortam a vida, os barracos se espalhando feito galinha no terreiro, bicho no berreiro, qualquer coisa no cercadinho e o prazer imenso de dizer isso é meu. Não tem nada não, seu moço, mas tudo é dele. É dele porque o sertão é dele e ele é o sertão em pessoa.

Meu pai nasceu num lugar assim, nessa vastidão sertaneja onde tudo mundo era feliz e não sabia. Somente mais tarde, quando o filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo ouviu pela primeira vez uma autêntica cantiga sertaneja, um legítimo violar caipira, é que começou a juntar a letra da moda de viola com a terra que pisava e a realidade vivida e decisivamente concluiu que as belezas do sertão são melodias de se caminhar e pegar com a mão.

Foi nesse momento que a viola caipira de Tonico e Tinoco entrou melodiosamente no coração de Alcino. Aquele rapaz, já político e prefeito do lugar, logo ao amanhecer escurecido ligava seu velho e potente rádio Philips, de quase meio metro de diâmetro, e sintonizava nas emissoras paulistanas onde sabia que não demoraria muito para ouvir a voz inconfundível da dupla coração do Brasil.

Sou filho - e por isso mesmo posso falar - que o rapaz já casado ainda assim era um inveterado namorador. Todo mundo sabe disso até hoje. Assim, quando um dia um primo seu chegado do sul lhe trouxe de presente uma radiola portátil novinha, pequenininha e azul, todas as noites, e sempre já em altas horas, Alcino seguia em direção à praça da matriz, colocava seu toca-discos em cima de um banco e ia escolhendo a dedo as músicas de Tonico e Tinoco.

Muitos dizem que ele fazia serenata louvando as belezas do luarar sertanejo, outros afirmam que era serenata mesmo, mas com outras motivações apaixonadas. De qualquer sorte, invariavelmente se ouvia todas as noites “Tristeza do Jeca”, “Eu e a lua” e “Pé de ipê” nas doces e inconfundíveis vozes de Tonico e Tinoco.

E se ouvia na “Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão singelo/ minha bela, meu amor/ pra você quero contar/ o meu sofrer e a minha dor/ Eu sô igual a um sabiá/ quando canta é só tristeza/ desde um galho onde ele está/ nesta viola eu canto e gemo de verdade/ cada toada representa uma saudade...”.

Na “Eu e a lua”: “Eu me desperto em arta madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom profundo lamento em meu pinho/ Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir ingrata quem deixou de amar/ Somente a lua no céu estrelado/ Está a meu lado, surgiu num clarão/ E tu querida nem abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha canção/ Tu foi aquela muié sem coração...”.

E “Pé de ipê”: “Eu bem sei que adivinhava/ quando as veiz eu ti chamava/ de muié sem coração/ Minha vóiz assim queixosa/ vancê é a mais formosa/ das cobocra do sertão/ Certa veiz tive um desejo/ de prová ao meno um beijo/ da boquinha de vancê/ Lá no trio da baixada/ pertinho da encruziada/ debaixo de um pé de ipê...”.

Até hoje, já aos 70 anos, Alcino continua ainda mais apaixonado pela autêntica música caipira. Naqueles idos suas paixões eram muitas e até dizem que muitas eram as mocinhas que choravam nos travesseiros ou pertinho das janelas, com os apertos nos corações que sempre chegam altas horas da noite e com a serenata sertaneja de Alcino”.

Mas hoje Alcino já chegou aos 72 anos e se não fossem as contínuas enfermidades que lhe afligem certamente ainda colaboraria muito com a cultura e a história nordestina. É possuidor de um verdadeiro acervo de obras inacabadas, livros que estão prestes a serem publicados, poemas matutos para serem transformados em canções. E sonhos, muitos sonhos.
O seu primeiro sucesso como compositor ocorreu pelos idos da década de 70, quando ainda era mais político do que qualquer outra coisa. Contudo, foi a política que o aproximou de grandes artistas nordestinos, de sanfoneiros da melhor qualidade, possibilitando que fizesse chegar aos rincões semiáridos de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo a musicalidade que tinha a feição do seu povo.


Quando prefeito, Alcino acostumou a todo final de ano oferecer ao seu povo uma festança diferenciada, com grandes nomes sertanejos e forró da melhor qualidade. Assim, a rua da prefeitura, no centro da cidade, era fechada de canto a outro e num dos lados um caminhão servia de palco para as apresentações. E por lá passaram Pedro Sertanejo, Elino Julião, João do Pífano, Gérson Filho, Clemilda, Abdias, Messias Holanda e tantos outros.

Mantinha uma amizade muito próxima com o grande forrozeiro Gérson Filho e sua esposa Clemilda. E foi esta que gravou, no ano de 1973, um verdadeiro hino sertanejo de sua lavra, chamado “Seca Desalmada”, que deu nome ao disco da forrozeira alagoana/sergipana e despontou como o maior sucesso daquele período. A letra, cuidando da fé e da religiosidade do povo sertanejo, dizia assim:

“Visitei o Juazeiro que fica lá no sertão/ Havia muito romeiro escutando um sermão/ Eu também fui escutar/ Prestei bastante atenção/ Perguntei quem era o padre/ Meu Padim Frei Damião que vinha da eternidade/ Pra salvar o meu sertão/ O sertão está passando uma grande provação/ É a seca desalmada acabando com o cristão/ Mas temos um defensor/ Meu Padim Frei Damião/ Padim Ciço Foi embora/ Para o céu Deus o levou/ O romeiro do sertão de tristeza até chorou/ Mas agora vive alegre/ O santo Padre voltou”.

Muitas outras canções compostas por Alcino foram sendo gravadas por duplas caipiras ao longo dos anos. Contudo, duas especialmente, e gravadas mais recentemente, alcançaram grande sucesso no sul do país. A primeira, registrada por Dino Franco e Mouraí no CD Presente de Deus, é um cateretê intitulado “Garça Branca da Serra”, cuja letra diz:

“Naquela serra do norte o sol nascendo dourado/ Lindos raios vão surgindo naquele reino encantado/ Ao longe a serra azul formando um manto sagrado/ A garça branca da serra tem ali o seu reinado/ Bem pertinho da cascata/ E perto da verde mata daquele sertão amado/ É obra da natureza o mundo da passarada/ A serra desponta bela no final daquela estrada/ A garça branca da serra fez ali sua morada/ Quando chega a tardinha ela volta pra pousada/ Com seu porte de rainha/ A plumagem é branquinha parece deusa sagrada/ Também tenho a minha garça, garça linda meu senhor/ Ela não mora na serra e também nunca voou/ É uma bela morena com um olhar encantador/ E a mulher que eu amo que o destino me enviou/ Ela vive em meu ranchinho/ É a garça do meu ninho, um bem que Deus me deixou”.


Já a segunda, “Desencanto da Natureza”, foi gravada por Dino Franco e Fandangueiro e se constitui num verdadeiro grito ambientalista, cuja preocupação maior é apontar as atrocidades do homem perante a fauna e a flora, a natureza enfim. Eis a letra:

“Eu vejo lá bem distante os papagaios voando/ Cada vez indo pra longe, o sertão estão deixando/ Fugindo da mão do homem, outro habitat procando/ Periquitos e araras também vão se retirando/ A raposa espreita tudo desconfiada olhando/ E o homem sem piedade cruelmente vai matando/ Caçador, caçador, com você estou falando/ Não mate a fauna e a flora, quero vê-las procriando/ Muito triste a mata chora a morte da passarada/ Os campos virando cinza com a fúria da queimada/ Na sombra da quixabeira não se vê onça pintada/ Caititu se retirou pra bem longe da baixada/ Galho seco despencando, caindo lá da ramada/ O homem cortando tudo em medonha derrubada/ Roçador, roçador não pegue mais empreitada.

Encoste a foice e o machado, evite fazer queimada/ O sertão é um paraíso, paraíso de esplendor/ Mata virgem, céu azul e canário dobrador/ Inhambu piando triste quando a tarde furta-cor/ Os bichos todos fugindo da mira do caçador/ O riacho ainda chora a mata cheia de flor/ E o homem destruindo as obras do Criador/ Predador, predador, olhai para o que restou/ Predador, predador, não mate o que Deus criou/ Não mate o que Deus criou”.

Entretanto, não duvido que a música que ele mais admira é uma composição sua em parceria com Dino Franco, cujo título “Sertão, viola e amor” é o mesmo do programa que manteve por muitos anos na Rádio Xingó Fm, de Canindé do São Francisco. Todas as tardes de sábado, com todos os radinhos sertanejos ligados, muitas vezes juntinhos ao ouvido, começavam ouvir a música de abertura do programa:

 “No nordeste brasileiro/ Uma onda se espalhou/ Na voz da Rádio Xingó/ Com seu apresentador/ Foi uma benção divina/ A um povo sofredor/ O violeiro cantando/ Sertão, viola e amor/ O cavaquinho do samba/ Num canto se encostou/ O tamborim fez silêncio/ Pra longe se retirou/ A natureza sorriu/ Ouvindo seu trovador/ No rádio leu-se a mensagem/ Sertão, viola e amor/ Cantigas e mais cantigas/ De um tempo que já passou/ As trovas apaixonadas/ Do poeta cantador/ Histórias de vaquejadas/ Maravilhas, sim senhor/ Me alegra quando ouço/ Sertão, viola e amor/ No nordeste, leste, oeste/ O povo se admirou/ Ouvindo a Rádio Xingó/ E seus poemas de amor/ Canta, canta minha gente/ Pois violeiro também sou/ O Brasil todo conhece/ Sertão, viola e amor”.

Na Rádio Xingó declamava os seus versos, falava aquilo que o sertanejo tanto gosta de ouvir, e entremeava seus diálogos cheirando a terra com a melhor música caipira, escolhida a dedo, oferecida com o coração. Eis o Alcino, o caipira de Poço Redondo, com o seu viver tão marcante.
Continua...

Biografia do autor:

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com




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