Por: Rangel Alves da Costa(*)
ALCINO, MEU
PAI: RETRATO INACABADO - IV
Durante as
três ocasiões em que foi prefeito de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo
(1966/1970 – 1973/1977 – 1982/1988), Alcino Alves Costa jamais mudou sua
postura de homem comum, pessoa simples, acessível aos irmãos de sol, sertanejo
igual aos demais.
Sempre levando
nos pés a inseparável havaiana, costumeiramente de camisa de malha fechada,
listrada tantas vezes, deitada ao ombro, nem parecia líder político, prefeito,
primeiro mandatário do lugar. Altas horas da noite, quando a lua grande
brilhava intensa e o silêncio se alongava pelas plagas matutas, lá ia Alcino
com sua radiola, discos debaixo do braço, para a pracinha da matriz. Sem
cantar, era o seresteiro da noite, o eterno apaixonado pela plangência da
melodia caipira.
De sorriso
largo, tez morena, mantinha sua liderança política como se convivesse em meio a
uma grande família. Fato curioso que não era apenas prefeito, mas tantas vezes
o farmacêutico do lugar, pois mantinha uma verdadeira farmácia com aqueles
medicamentos sempre indicados em casos de dor de cabeça, de dente, diarréia e
coisa e tal.
E não poderia
ser diferente, ao assumir a prefeitura em 66, mesmo sendo territorialmente o
maior município de Sergipe, Poço Redondo era totalmente esquecido pelos
poderes, abandonado à sua sorte, sobrevivendo da luta do seu povo. Com as
estiagens constantes, a pobreza se alastrando, a miséria gritando em todo
canto, qualquer auxílio que chegasse para minorar o sofrimento do povo era uma
dádiva de Deus.
Nessa época, e
mesmo até muito tempo depois, não havia hospital ou maternidade, sequer uma
casa de parto. As velhas parteiras tinham de dar conta do recado à luz do
candeeiro. Somente depois surgiu um posto da Fundação SESP e um posto médico
construído e mantido pelo próprio município. E com atendimento médico somente
aos sábados, sob os auspícios do Dr. Jaime, figura humana considerável que
marcou época no atendimento à população.
Contudo, as
consultas eram poucas e as enfermidades multiplicadas. A extensão do município
e o acesso às unidades de saúde mais distantes implicavam num problema grave
para a população, e que caberia ao prefeito resolver. Por isso mesmo que Alcino
mantinha remédios de utilidade geral sempre ao dispor, de modo que no meio da
noite ninguém ficasse sem, por exemplo, um Anador.
Mesmo
meninote, lembro bem da constância em que pessoas, nas altas horas da noite ou
já madrugada, chegavam batendo à porta: “Chega Alcino, arranje um carro que
fulana de tal tá com dor de parir e é coisa que só hospital dá jeito”, “Acuda
Alcino, que num sei quem deu uma dor no pé da barriga que tá em tempo de se
acabar”, “Socorro, Alcino arrume um carro pelo amor de Deus que sicrana tá com
uma dor de correr doida”. E chega, chega, chega, era tudo um aperreio danado.
Tudo longe
demais, estradas de chão, sem nem pensar em ambulância naqueles idos, carros
caindo os pedaços, então era realmente uma situação muito difícil para o
prefeito resolver. E quando alguém falecia a despesa com o caixão artesanal,
feito ali mesmo na serraria, era responsabilidade da prefeitura. Tantas vezes
do próprio prefeito.
E um costume
que se alastrou e sucedeu até o seu último mandato, já no final dos anos 80,
merece ser citado, principalmente porque através dele se pode dimensionar a
pobreza que se abatia – e continua assim – sobre inúmeras famílias. Eis que
todo dia de feira, e mesmo noutros dias, Alcino pagava do próprio bolso dezenas
de pequenas cestas de alimentos. Quilo disso e daquilo, mas tudo essencial,
cada um garantia seu alimento de poucos dias.
Num tempo de
bodegas e mercearias, pequenas vendas de balcão e de um tudo, caderninhos eram
especialmente mantidos nas gavetas com o nome de Alcino. As pessoas iam lá,
diziam a mando de quem tinham ido para receber o alimento, e depois tudo era
anotado com a letra quase sempre ilegível do vendedor de pouca leitura. Só não
errava nos números. Assim era na bodega de Missiinha, de Dom, de Zé Preto, na
mercearia de Seu João e assim por diante.
Entretanto,
não significa que agindo assim Alcino tenha estabelecido aquilo que
sociologicamente se chama assistencialismo. E não porque ele não prestava tanta
assistência aos seus munícipes objetivando manter currais eleitorais ou fazendo
da assistência uma forma de submissão e atrelamento à sua liderança política.
Fazia, isto sim, porque conhecedor profundo das carências, das necessidades
absolutas do povo, da face horrenda da miséria.
Ora, ele não
fazia pouso nem descanso no seu gabinete, não tinha antessala para receber
pessoas, não burocratizava as relações com os seus. Alcino vivia nas ruas, nos
becos, nas distâncias, em Sítios Novos, em Santa Rosa, em Curralinho, em
Bonsucesso, nas Areias, nas Queimadas, na Guia, em todo lugar onde precisasse
sentir como a população estava passando e quais as necessidades mais prementes.
Quando
prefeito pela primeira vez, a partir de 66, já era casado, e com três filhos,
Nagel, nascido em 62, Rangel em 63 e Ustane em 66. Casou ainda na curva do ano
de 1959, com menos de vinte anos, com a moça mais bonita do lugar, Maria do
Perpétuo Alves, filha de Teotônio Alves China e Marieta Alves de Sá, família de
reconhecido quilate em toda a região sertaneja.
Seu China do
Poço, assim conhecido, era um pequeno comerciante, bodegueiro de venda ao lado
da moradia, mas cuja influência prosperava através dos amigos que recebia em sua
casa para repasto e repouso. Tanto Lampião como Padre Arthur Passos recebiam
acolhida do amigo e lambiam os beiços com os pratos sertanejos deliciosos
preparados por Dona Marieta.
Acerca da
amizade entre aquele que mais tarde viria a ser o sogro de Alcino e o Capitão
Lampião, certa feita escrevi:
“Quando estava
nos arredores do lugarejo mandava logo um coiteiro avisar ao meu avô materno
Teotônio Alves China, o China, um respeitado comerciante do lugarejo, que
providenciasse comida que em tal dia e tal hora ele chegaria por lá. Se não
confiasse, se não fosse realmente amigo, jamais mandaria avisar ode estava e
quando faria uma visita.
E Dona
Marieta, coitada, minha avó, colocava as mãos na cabeça e ficava em tempo de
endoidar. "Mai o que foi Marieta, só pruque o cumpade Lampião vem aqui
você fica assim, e ói qui aqui ele nunca foi um estranho pra nóis não, pelo
cuntraro. É nosso amigo e bom amigo. Entonce deixe de avexamento e vá arrumar
os cabrito". Então minha avó respondia: "Mai num é isso não China, o poblema
é qui o Pade Artur vai tá aqui na merma data qui o Capitão chegar. E cuma vai
ser, Deus e o diabo numa casa só?".
E o encontro
realmente aconteceu. Os donos da casa com nervos à flor da pele, mas tudo foi
resolvido da melhor maneira possível. Nem Lampião quis afrontar o da igreja
quando chegou à residência e ficou sabendo de sua presença num dos aposentos,
providencialmente tirando uma soneca, nem este se levantou cheio de ira
querendo exorcizar o cangaceiro.
Sem demonstrar
receios nem olho feio de lado a outro, mais tarde estavam dividindo a mesma
mesa e comendo gulosamente a carne de bode, a buchada, a galinha de capoeira e
tudo que havia sido preparado com esmero e muito tempero por Dona Marieta.
Mesmo na calma tão implorada aos céus, a dona da casa bambeava as pernas finas
de tanta preocupação. A hóstia e o sangue olhando olho no olho era difícil
demais de acreditar.
E dizem os
pesquisadores que nesta oportunidade Lampião perguntou ao padre se ele e seu
bando poderiam assistir a missa de agosto em comemoração a Nossa Senhora da
Conceição, padroeira do lugar. E recebeu resposta positiva, desde que deixassem
as armas do lado de fora. Certamente só foram emparelhadas externamente o
armamento pesado, vez que cangaceiro algum iria ficar desarmado por um só
instante, ainda que assistindo missa, dentro da igrejinha.
Continua...
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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