Por: Rangel Alves
da Costa(*)
CANGAÇO, UMA MEMÓRIA PERMANENTE
Ainda que vez
por outra os livros de História omitam acerca do fenômeno cangaço ou tratem com
poucas ou inadequadas informações esta grandiosa gesta nordestina, outra
realidade existe que permite concluir que a preocupação com o conhecimento da
luta cangaceira, principalmente aquela comandada por Lampião, está cada vez
mais viva e florescente. Daí a certeza de que o cangaço se tornou num fenômeno
de memória permanente.
Memória
permanente no sentido de ter alçado um patamar de incontestável importância na
história brasileira e além fronteiras. Por mais que se deturpem as ações
cangaceiras e qualifiquem os bandos como grupos de vorazes criminosos, ainda
assim há de reconhecer seu primado enquanto movimento social. Os seus
defensores, por outro lado, possuem motivos de sobra para buscar nas suas
trilhas as aventuras quase míticas daqueles nordestinos banhados de lua e sol.
Os
acontecimentos em si já são de grande significação no contexto histórico.
Quando os primeiros grupos cangaceiros surgiram ainda no século XIX e
percorreram as matas agrestinas até os anos 40 do século passado, ocasião em
que parte do bando de Lampião foi dizimado e o cangaço passou a sobreviver
apenas com o desgarrado Corisco, que morreria em 1940, daí em diante os
episódios foram historicamente reconstruídos para a posteridade.
Dadá e Corisco
Contudo, nada
fácil de acontecer assim, considerando-se principalmente que o tradicionalismo
da historiografia sempre tendeu a apagar dos seus anais aquilo que não se tenha
como confirmação do sentimento nativista mais enobrecedor. E o cangaço, como se
sabe, gestou e trilhou como rebeldia ao poder e a dominação então existentes,
ainda que bebesse dessas fontes, principalmente através do coronelismo, para sobreviver
por tanto tempo.
A
historiografia não conseguiu apagar nada daquele percurso de lutas, violências
e sonhos impossíveis simplesmente porque o cangaço foi acolhido e preservado
como uma das chamas maiores daquilo que se tem por nordestinidade. Ou seja, o
próprio povo nordestino cuida de heroicizar seus conterrâneos, delimitar aquilo
que seja importante como fenômeno histórico ou cultural, proporcionar a devida
valorização àquilo que tenha sua identidade. Padre Cícero e Antônio Conselheiro
são outros exemplos.
Tal escolha,
porém, bem poderia ser diferente, pois não seria contrassenso caracterizar o
cangaço como mera feição do mais vil banditismo e, por consequência, negá-lo e
relegá-lo ao esquecimento. Mas não, vez que - se deseje reconhecer assim ou não
- os ideais de luta cangaceira sempre foram os mesmos ideais do povo
nordestino, na grande maioria padecente e sofrendo na pele, no prato e na
dignidade as atrocidades impostas pelo poder, tanto político quanto econômico.
Desse modo,
foram a defesa intransigente do povo nordestino e a imposição de respeito à sua
história e seus personagens que sempre mantiveram o cangaço como fenômeno de
grande importância e objeto continuado de pesquisas sobre suas
causas, meandros e uma série de possibilidades históricas. Ademais, foi com
essa busca de preservação, repasse do conhecimento e disseminação da história
cangaceira, que autores nordestinos deram início a uma literatura toda voltado
para a análise do fenômeno.
Uma vez
conhecido e prestigiado, tal contexto se confirmaria e ganharia pujança na
historiografia nordestina e nacional. E foi pelas razões acima que permaneceu
como objeto de estudo, sem esquecer as diversas análises desenvolvidas por
brasilianistas e que redundaram em obras de fundamental importância para o
desvendamento do banditismo social em terras brasileiras. Sobressai-se
principalmente o livro “Lampião, o rei dos cangaceiros”, de Billy Jaynes Chandler,
um relato biográfico do Capitão como pano de fundo para uma análise maior do
cangaço.
Internamente,
desde o período próximo ao fim do cangaço que começaram a surgir os primeiros
estudos, baseados principalmente em livros de memórias, tendo por exemplo “Como
dei cabo de Lampião”, de autoria de João Bezerra, o mesmo comandante da volante
que na madrugada de 28 de julho de 38, após silenciosamente atravessar o Velho
Chico, chacinaria o negligente e desprotegido bando na Gruta do Angico.
Muitos outros
livros foram sendo publicados e que hoje servem de fonte primordial para outros
pesquisadores, vez que escritos quase na visão da luta, do zunido dos tiros
varando pessoas e mandacarus, do cheiro perfumado do suor impregnado do sangue
derramado. Nesse passo, as pesquisas foram se avolumando e o cangaço
indubitavelmente se tornou no fenômeno nordestino mais analisado através de
publicações.
Tem-se, pois,
que desde muito a saga cangaceira deixou de ser objeto de pesquisas de apenas
um grupo reduzido de estudiosos para se tornar alvo de interesse geral, de
pessoas cuja curiosidade acaba transformando-as em persistentes pesquisadoras.
Verdade é que hoje foram criados grupos de estudos, seminários permanentes e
até grupos de discussão nas redes sociais. Os fãs são cada vez mais numerosos e
os eventos cangaceiristas também, não importando mais discussões pontuais sobre
a feição heróica ou bandida de Lampião nem se o cangaço foi movimento social ou
mero banditismo.
O cangaço em
si, com suas múltiplas explicações e questionamentos, é o que mais interessa. E
voltam-se avidamente em busca do seu conhecimento como se tivessem um nobre
dever de também comungar com parte daqueles ideais. Principalmente hoje, quando
a criminalidade abjeta parece pretender santificar Lampião.
Rangel Alves
da Costa, nascido em 1963, é natural de Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano
do São Francisco. É advogado e escritor, e reside em Aracaju. Já publicou os
seguintes livros: Estórias dos Quatro Ventos (crônicas), Memória Cativa – O
Sertão em Prosa e Verso, Sertão - Poesia e Prosa, Tempestade (romance), Ilha
das Flores (romance), Evangelho Segundo a Solidão (romance), Desconhecidos
(romance), Todo Inverso (poesias), Já Outono (poesias), Poesia Artesã
(poesias), Andante (poesias), O Livro das Palavras Tristes (crônicas), Crônicas
Sertanejas (crônicas), Crônicas de Sol Chovendo (crônicas), Três Contos de
Avoar (contos), A Solidão e a Árvore e outros contos (contos), Poço Redondo –
Relatos Sobre o Refúgio do Sol, Da Arte da Sobrevivência no Sertão, Estudos
Para Cordel (prosa rimada sobre o cordel). Participou também da coletânea
Gandavos - Contando outras histórias. Possui outros livros prontos para
publicação, dentre os quais Nas mãos de Deus: um romance de injustiça e Entre a
Ficção e a História - O Cangaço Imaginário. Colabora com artigos para o Jornal
do Dia, de Aracaju. Diversos sites também publicam seus textos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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