Virgulino e seus quatro, logo após a fuga do comissário, voltaram para casa, quase sem munição. No dia seguinte, valeram-se os irmãos do prestígio dos amigos para a liberdade do prisioneiro. Virgulino, entretanto, enviou um ultimatum ao delegado: “Se até à boca da noite meu irmão não chegar, vou buscar ele de qualquer modo”.
Às cinco da tarde, João foi solto. Pela estrada vinha ele correndo como podia, aperriado e trôpego nos disconformes dos passos, apavorado com o esgüelamento sofrido durante horas, a cabeça zanzando, a goela ardendo de sede, a barriga torcendo de fome, o corpo moído dos maus-tratos. Passara ele trinta e quatro horas preso, injustamente e cruelmente maltratado, sem comer nem beber. E teve a sorte de não ter sido sangrado por um soldado de sorriso insosso e maligno que lambia a faca na sua frente!...
À boca da noite, resolveu José Ferreira mudar-se para a fazenda denominada Engenho. Já havia ele falado com o proprietário, o velho Fragoso, e conseguido uma casa desocupada de morador. Verdade é que ficava perto, mas tinha a vantagem de ser em outro município, Mata Grande, cujo delegado era amigo.
Em 21 de maio de 1920, ainda madrugada, entre o primeiro e o segundo canto dos galos, reuniu José Ferreira a família e seus haveres, tão poucos! - uma pequena trouxa para cada um. Assim partiram, de mudança pela terceira vez os Proscritos! No arrasto da vida e do destino escuros, quiném aquela noite impenetrável, arrastava José Ferreira a família e a miséria. Caminhava devagar como vagaroso era o seu maginar e raciocinar diante da prepotência do destino nos enigmas das ditriminações divinas.
Já perto de chegar, voltou-se consolador para sua esposa e disse com resignação e fé: “Maria, é preciso aceitar a vontade de Deus!”. Ela continuava sempre amurrinhada, desacabando a saúde e a vida. Não se adomava a natureza sua a uma vida assim acuada por toda parte. Sentia-se desinfeliz, sem poder viver. Inda ali não chegara e já as perseguições já recomeçavam. Não tinha vindo para ali fugida delas? E ei-las de novo! Sempre injustas e agora grumitadas pela “autoridade”.
Nessas aflições todas, teve D. Maria Lopes durante o dia dois passamentos.
Botaram-lhe até vela na mão, maldando tivesse nas últimas e não resistisse
mais. José Ferreira, também agoniado, com as mãos apertando a cabeça e sem
encontrar canto para aquietar o juízo, exclamava: “Não! Não é possível viver
aqui! Não passo mais um dia nessa terra. Vou falar com o delegado de Mata
Grande, que é meu amigo, para poder ficar por lá”.
Diante da melhora, súbita e surpreendente, da esposa, andando embora devagarinho, comendo e conversando alegre – não sabia ninguém que era a “visita da saúde” precedendo a morte! – resolveu José Ferreira, de madrugada, selar dois burros e com seu filho João ir logo à Mata Grande trazer remédios e falar com o delegado, seu amigo. Os três filhos mais velhos continuavam ocultos no mato por causa da polícia.
Aproveitando a manhã, alegre e de esperança, daquele dia 22 de maio, conduziram as filhas a mãe para fora, no terreiro da frente da casa, a modo de ela despairecer, tomar um arzinho e uns esquentes do sol brando. Não demorou muito tempo, deu-lhe nela inexplicável cansaço seguido de sonolência. Naquele momento instante, as três filhas notaram que a mãe, de repente, pendia a cabeça de lado e virava os olhos para cima, enquanto o queixo afrouxava entreabrindo a boca. Compreenderam a evidência do desenlace... Num sufragante, Virtuosa segurou a mãe pelas costas, levantando-a um pouco para Angélica tirar a cadeira. Ali mesmo foi ela deitada. Ezequiel e Anália agarraram-se ao regaço da mãe, chorando e chamando: “Mamãe! Querida mamãe!”
Talvez para sua consolação, nesse instante derradeiro, tenha ela ouvido dos lábios infantis de seus caçulas essa doce palavra que traduzia inteiramente tudo o que ela fora na vida: mãe!
O semblante sereno, o olhar fugidio para a eternidade, tendo diante de si a imagem do Senhor Crucificado apresentado por Angélica, que a custo repetia entre soluços: “Meu Jesus, misericórdia”, entregou seu espírito ao Criador. “Sem o mínimo estremeço a modo de um passarim!”.
Mocinha apagou a vela. Soprava uma aragem macia e refrescante aliviando aqueles corações transpassados de dor... Uma poeira de luz emoldurava aquele quadro de tragédia em terra estranha e de exílio.
Lá para o meio-dia chegaram José Ferreira e João, simultaneamente com os três chamados de seus esconderijos. Encontraram a morta deitada numa cama de vento, amortalhada, com os lábios sorrindo para a morte, de vez que há muito deixara de sorrir para a vida!...
Na dor e na lágrima lamentaram por demais a desdita. Os três filhos perseguidos, às pressas colheram cravos amarelos e bugaris, enfeitaram o leito da mãe defunta e se esconderam de novo. Não podiam ficar velando. Somente de madrugada, assim mesmo cismados e precavidos, voltariam para o velório. A família e vizinhos entre soluços inteiraram a noite fazendo sentinela com os cânticos lúgubres das incelenças e o ofício das almas. No dia seguinte domingo, pela manhã, conduzida numa rede pelos filhos, que se revezavam, foi feito o enterro, estrada a fora rezando, e sepultada numa cova do cemitério do povoado de Santa Cruz do Deserto, após lhe terem o esposo e filhos beijado o rosto frio. Três coroas, lembranças do esposo, dos filhos e dos parentes, além de muitos buquês levados pelos acompanhantes, floriam a sepultura, que mais parecia um canteiro de festa e de vida.
O pobre José Ferreira, com tanta coisa amarga e trágica sem trégua se sucedendo, ficou desatinado, abatido, sem gosto pra nada na vida, curtindo os penares da dor e da saudade e os sobressaltos de uma desgraça ameaçadora e iminente.
No dia 28 de junho de 1920 chamou os três filhos que continuavam ocultos, e lhes disse: “Vocês aqui não podem mais ficar. Vão para Pernambuco que depois eu tomo o mesmo caminho”. Não podia, de súbito, se afastar de perto da sepultura da finada esposa.
Seguiram os três filhos para Espírito Santo do Moxotó, onde ficaram trabalhando na propriedade de seu Terto. José Ferreira vendeu os dois burros para comprar roupa de luto para todos de casa...
Cartas do delegado de Água Branca – comprado por Zé Saturnino – ao Chefe de polícia de Alagoas, falseando e carregando nas tintas os assucedidos mais recentes sobre os “perigosos bandidos” que cometeram “muitos crimes” alarmou o Governo que resolveu cortar pela raiz aqueles males. Para tal, determinou ao delegado, 2º Tenente José Lucena, famoso por excessos de severidade, fazer uma diligência por aquelas bandas conflitadas.
Na casa de José Ferreira, só tristeza. Tinha ele ido ao cemitério e não compreendia por que desta vez chorara muito mais do que das anteriores. Revelara aos filhos o que dissera à falecida, já na cova enterrada, que não havia mais sentido para ele continuar a viver. Queria ir para de junto dela. Repassou, de minúcia, os bons tempos de antanho, de paz e ternura. Recordou particularmente a última festa, do Senhor São João, há dois anos atrás, em que a finada, tão bonita e saudável, tão vistosa e alegre, dançara com ele... Hoje, era ele mais morto do que ela morta!
No dia seguinte, precisamente 38 dias depois da morte de D. Maria Lopes, de manhãzinha, ele com mais João e as três meninas fora adjutorar, como alugados, os trabalhos de um roçado vizinho, a modo de trazer para casa alguma coisa de ganho para o de-comer carecente. Voltara logo José Ferreira para casa, cansado e escanchado em Condave, trazendo dependurados de cada lado das ancas do velho burro, dois sacos contendo quatro mãos de milho. Ao chegar no terreiro de frente da casa, bem perto do lugar em que a esposa falecera, apeiou-se. Correram pressurosos e choramingando de fome os dois menores e lhe tomaram a bênção. Abraçou-os o pai, afetuoso e longamente, acarinhando e beijando. Em seguida tirou os sacos e derramou as espigas num balaio e de cócoras começou a tirar a palha para facilitar o trabalho das meninas de prepararem o angu, o qual, dessa vez não seria comido puro. Tinha ele comprado um bom taco de carne de bode e um litro de farinha. O almoço seria sustancioso.
Estava José Ferreira dessa maneira entretido quando, de repente, viu sua casa cercada de soldados. A uma distância de três braças gritou Lucena para o velho José Ferreira: “Cadê os seus três filhos bandidos?”
Ferido em seus brios e honra, José Ferreira retrucou, com todo desassombro e altivez, alto, firme e pausadamente: “Não, sinhô! Bandidos, não! Meus filhos não são bandidos. Querem forçar eles a ser. Mas eles são é home!”...
“É assim que se responde a um oficial, velho malcriado, cachorro da mulesta” – revidou furioso Lucena. E sem mais, descarregou ele próprio a pistola no peito daquele pobre velho, pacífico e indefeso, que caiu, de chofre e de bruços, por estranha coincidência, ali, no mesmo chão onde falecera sua esposa.
Ao tomarem conhecimento, todos da família, da tragédia naquele quadro desumano de miséria e barbaridade, reuniram-se em casa, e sentaram-se os filhos naquele mesmo chão fatídico do terreiro. João e as irmãs relataram o drama. Todos choraram muito. E depois de permaneceram bastante tempo em silêncio, Virgulino falou:
- “Bem, nada mais nos resta a perder. O único bem que a gente tinha, e o mais precioso de todos, os nossos pais, foram assassinados, ela de choque, ele de bala: os dois no coração!”
Silenciou um momento. Levantou-se. E, de repente, traduzindo, num assombro inesperado e imprevisível de atitude, os processos íntimos de uma grande decisão, elaborada daquela situação, desvestiu os dois irmãozinhos de suas roupas de luto e pediu a João e irmãs que tirassem e lhe entregassem as roupas de preto e pesar que vestiam. De tudo fez uma ruma no terreiro e tocou fogo. Os irmãos estarrecidos!
CONTINUA...
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