Por: Fernando
Soares Campos
Lampião, o rei
do cangaço, e Corisco, o diabo loiro, tinham por companheiras Maria Bonita e
Dadá (é bom que se diga "respectivamente", porque naquela época
certas liberalidades de hoje eram tidas como libertinagens, sem-vergonhices que
os homens do cangaço não adotavam). Lampião morreu em combate em 1938,
quando ele e Maria Bonita foram decapitados (ela capturada viva) e suas cabeças
foram exibidas na feira livre de Santana do Ipanema, minha cidade natal, no
sertão alagoano. Corisco e Dadá continuaram a luta. Em 1940 ele também tombou,
e sua cabeça foi juntar-se à de Lampião no Museu Nina Rodrigues, em Salvador,
onde ficaram expostas, até 1969, como troféus das forças de repressão. Dadá,
atingida por um tiro no pé direito, sofreu processo gangrenoso que lhe custou amputação da perna.
Os bandos de
cangaceiros certamente não eram formados por indivíduos santificados,
entretanto muitas histórias que contam sobre eles não passam de fantasias ou
mesmo difamações propositadamente plantadas nos tempos em que o presidente
Getúlio Vargas pediu as cabeças dos cangaceiros, que haviam criado a ilusão de
mudarem o status de "bandoleiros" para "revolucionários".
Foi quando Lampião decidiu autoproclamar-se "governador dos sertões
nordestinos".
A indústria
cinematográfica também não fez por menos, em muitos casos sempre preferiu
caracterizar os homens do cangaço através de uma exagerada ferocidade, um
comportamento praticamente instintivo, movido a sexo, cachaça e xaxado, sem
qualquer sinal de racionalidade. A cinematografia comercial não se interessa
por uma abordagem sobre as verdadeiras causas do cangaço; portanto, na maioria
dos filmes que tratam da saga dos cangaceiros, predomina a caricatura do
"cabra da peste", cujos sentimentos parecem limitados à revolta pessoal,
à vingança contra o rico fazendeiro, o coronel dominador, senhor de currais
humanos (feudos dos sertões nordestinos). Os relatos sobre as atrocidades
imputadas aos cangaceiros apenas transferem a maldade do tirano, senhor da vida
e da morte, para o "oprimido que queria ser opressor".
Desde os
tempos de criança, nos anos 50, li e ouvi muitas histórias de terror atribuído
aos cangaceiros. Falavam que eles se divertiam atirando crianças recém-nascidas
para o alto e aparando os bebês na ponta de seus punhais; diziam que os bandos
botavam fogo nas fazendas, exterminavam rebanhos de gado, estupravam as
mulheres adultas e até as meninas muito jovens; também afirmavam que, à falta
de mulheres, violentavam sexualmente os homens; e que torturavam e marcavam,
como ferro em brasa, o rosto de prostitutas e de mulheres que traíssem seus
companheiros. Nisso há muita ficção permeada por fatos reais, ou realidade
ampliada pela imaginação popular.
Sobre a participação
das mulheres no movimento do cangaço, vejamos este trecho de matéria
publicada no site da Fundação Joaquim Nabuco: "Como as
demais sertanejas nordestinas, as mulheres recebem a proteção paternalista dos
seus companheiros, mas o seu cotidiano é mesmo bem difícil. Levar a termo
as gestações, por exemplo, no desconforto da caatinga, significa muito
sofrimento para elas. Às vezes, precisavam andar várias léguas, logo após o
parto, para fugir das volantes [as tropas militares que perseguiam os
cangaceiros]. E caso não possuíssem uma resistência física incomum, não
conseguiriam sobreviver.
Em decorrência
da instabilidade e dos inúmeros problemas da vida no cangaço, os homens não
permitem a presença de crianças no bando. Assim que seus filhos nascem, são
entregues a parentes não engajados no cangaço, ou deixados com as famílias de
padres, coronéis, juízes, militares, fazendeiros" (*).
Foi por isso
que Dadá entregou Sílvio, um dos seus três filhos sobreviventes (teve sete, com
Corisco), ao Padre Bulhões, o pároco de minha Santana do Ipanema. Sílvio se
tornou economista e professor dos principais estabelecimentos de ensino da
cidade, pólo comercial do sertão alagoano. Dadá, quando enviuvou, casou-se com
um baiano da cidade de Jeremoabo (BA) e foi morar em Salvador, mas, de vez em
quando, vinha passar uns dias em Santana, na companhia do filho.
Eu sempre tive
muito mais admiração por Corisco que pelo próprio Lampião, pois este podia ser
o "rei do cangaço", contudo, na minha fantasiosa imaginação infantil,
a palavra "corisco" me soava com a conotação de
"semi-deus", um ser capaz de se transportar a uma velocidade jamais
igualada por qualquer outro ser vivo. Eu imaginava que Corisco seria capaz de
atirar em alguém, em seguida correr e ficar ao lado do seu alvo esperando a
bala chegar, somente pra lhe dizer: "Taí o presente que lhe mandei,
cabra!".
Mesmo vendo o
professor Sílvio Bulhões quase todos os dias, sempre que eu o avistava me
lembrava que aquele era o filho de Corisco, o diabo loiro, então acreditava que
ele também deveria ser possuidor de algum poder sobrenatural. Porém, quando Dadá
vinha visitar o filho, eu ficava meio encantado com a visão daquela mulher que,
mesmo sem uma das pernas e andando apoiada numa muleta, parecia mais forte que
qualquer outra mulher e mais corajosa que certos homens.
Qualquer
pessoa que conheça algumas histórias do cangaço, principalmente aqueles relatos
fantasiosos sobre a "natureza animal" dos cangaceiros, há de imaginar
que as mulheres que faziam parte dos grupos seriam praticamente escravas a
serviço dos "cabras da peste", submissas criaturas sem vontade
própria, e que alguns dos seus gestos de revolta poderiam lhes custar severos
castigos ou até mesmo a morte. Mas muita gente se surpreenderia se ouvisse Dadá
contar que certo dia repreendeu Corisco e, visto que este continuava
persistindo em se comportar contrariando sua orientação, acabou por esbofetear
o companheiro. Para essas pessoas seria surpreendente saber qual foi a reação
de Corisco: ele chamou Dadá a um canto e lhe pediu para não fazer mais aquilo
"na frente dos homens".
Agora eu vou
contar o que aconteceu no dia em que Dadá foi entregar o filho Sílvio aos
cuidados do Padre Bulhões.
Uma das
histórias que não contaram
(Acredite se puder)
(Acredite se puder)
Santana do
Ipanema, 1930 e uns trocados. A cidade está encravada no meio de um grupo de
serras, entre elas o Alto do Cruzeiro, onde os cangaceiros costumavam acampar,
mas não se arriscavam a entrar no centro urbano, que sediava um batalhão da
Polícia Militar, instalado exatamente com o objetivo de combater os
guerrilheiros do cangaço. Os cangaceiros chegaram pela madrugada, e, quando o
dia amanheceu, Corisco e Lampião, em cima de um lajeiro, avistaram, lá embaixo,
o Padre Bulhões acompanhando, de binóculo, a movimentação do bando.
Padre Bulhões - pai adotivo de Sílvio Bulhões - filho de Corisco e Dadá
Corisco:
- Se o Padre
Bulhões fizé isso no Rio de Janeiro, vai tomá um tiro de AR-15. Ele só espia a
gente desse jeito porque sabe que nóis é de paz!
Lampião:
- Será que num
tem nenhuma velhinha aposentada filmando nóis?
- Que nada, cumpade! Isso só vai acontecê daqui a uns setenta ano!
- Cumpade, eu tenho a maior vontade de entrar na igreja de Sant'Ana - Lampião se benze.
Maria Bonita,
que estava escutando a conversa sem ser notada, apresentou-se e falou animada:
- Aí, a gente
aproveitava e se casava, né, Vivi?
Lampião
protestou:
- Paraí, Mulé!
Tu tá querendo dizer casar, casar mesmo!, de verdade!, com as benção do Padre
Bulhões?!
- E apois!
- Tu num tá nem besta!
- Por quê?!
- Quem casa na igreja do Padre Bulhões num descasa nunca!
- E tu tá querendo casar pra depois descasar?!
- Não! Eu tou querendo não casar, que é pra depois num ter que descasar!
- Oxe! Num entendi nada!
- Além disso, tu já casou uma vez, e só vai ser permitido divorço no Brasil daqui a uns quarenta anos.
- Cumade - atalhou Corisco -, acho que entendi. O cumpade Virgulino tá querendo dizê que, enquanto se tá amigado, a mulher bajula o homi, fica toda se derretendo: é meu fio pra cá, meu fio pra lá... Essas coisa. Mas quando vê a aliança no dedo, aí a coisa muda, ela qué mandá na casa, regulá a vida do marido...
- Oxe! E eu sou lá mulher de botar cabresto em homi?!
- Tou só me prevenindo - explicou Lampião.
- Mas Vivi...
- Pare de me chamar de Vivi! Num fica bem... Os homens já tão me olhando meio atravessado... Tu sabe que meu nome é Virgulino Ferreira da Silva, mais pode me chamar de Capitão.
- É isso mermo, cumpade, num dá moleza pra mulher nããão! - alertou Corisco.
Dadá se
aproxima soltando fogo:
- Ô,
Corisco!!!
- Sim, minha fulô!
- Tu já trocou os pano de Silvio?!
- Desculpa, Dadá, desculpa, eu me esqueci!
- Então vai logo, homi, avia! A gente vai ter que entregar o menino ao Padre Bulhões ainda hoje. Avia! Avia! Aproveita e lava a louça do café.
Corisco pede
licença aos compadres e sai apressado.
Dadá fala pra
Maria Bonita:
- É assim
mesmo, comadre, a gente num pode dá moleza pra esses marmanjo não!
Maria Bonita
olha pra Lampião, segura ele pelo lenço do pescoço e diz:
- Vem cá, seu
cabra da peste! Vumbora ali pra detrás daquela capoeira!
Os dois no
maior amor por detrás da capoeira. No meio do vuco-vuco, Maria Bonita murmura:
- Viviii!
E Lampião
assente:
- Aqui pode!,
aqui pode! Mas num me chama assim na frente dos homem não, minha fulô!
Se entrega,
Corisco!!!
Eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão...
Eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão...
Hoje eu só me
entrego pra Dadá
Dona do meu coração.
Dona do meu coração.
(*) Cangaço
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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