Por: Hélio Pólvora
Quando invadia cidades e povoados, Virgulino Ferreira da Silva — perdão,
capitão Virgulino, porque tinha patente, tal e qual o Vitorino Papa-Rabo de José
Lins do Rego —costumava atirar moedas aos meninos. É o que reza o testemunho
oral. Pobre remediado que tinha sido, antes de ter peças de ouro e prata na
indumentária espaventosa, prendas nos bornais, anéis valiosos em quase todos os
dedos, procurava captar as simpatias dos humildes. Perseguido pelos “macacos”,
precisava de cobertura — espias e coiteiros.
Esmerava-se em gentilezas desse tipo. Avaliado o saque, separava o necessário
à sobrevivência do bando, durante certo tempo – e distribuía o restante. Isso
lhe assegurava recepção festiva quando voltasse, com direito a buchada de bode,
vinho de jurubeba e outras iguarias.
O imaginário romântico em torno dessa figura propicia a redenção que hoje
mais a aproxima de um Robin Hood do que de um Al Capone. Diz um dos muitos
historiadores do cangaço que ele pedia desculpa pelas violências: “Não sou
industrial nem fazendeiro. Só me resta esta vida”.
Lampião costurando
Esquecia-se das artes de arrieiro, mascate e pastor de gado. Da habilidade
com que trabalhava o couro cru. Da máquina de costura em que era exímio. Dizem
que, embora cabra macho, bordava melhor do que Maria Bonita.
Do acervo do pesquisador e colecionador do cangaço Ivanildo Alves Silveira
E lhe atribuem a
criação da dança e ritmo do xaxado, muito embora talvez não passasse de
divulgador e letrista, como em “Mulher Rendeira”, grande êxito de Vanja Orico,
adaptado por Zé do Norte no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto.
Olê, mulher rendeira,
Olê, mulher rendá.
Tu m´ensina a fazer renda
Q´eu te ensino a namorá
Olê, mulher rendá.
Tu m´ensina a fazer renda
Q´eu te ensino a namorá
Tinha leituras, mostrava-se atilado. Admirador de Napoleão, a partir do
chapéu, do qual, com a contribuição de Dadá, criou a variante com estrelas e
medalhas, e chegado a igrejas e bênçãos de padres, porque na caatinga espinhenta
o misticismo era um bálsamo antes dos teólogos da libertação e dos sem-terra do
Sr. Lula da Silva; Lampião, o maior e o mais midiático dos nossos muitos bandidos
amava a visibilidade, o aparato dos ricos.
Estaria explicada, assim, a opção pelo crime. Os trajes pomposos e fidalgos,
de seda estrangeira, o ouro e a prata são a montra instalada para que os
cangaceiros fossem vistos, admirados, entronizados. Vingavam-se também por esse
lado da exclusão social no semiárido dos patriarcas e políticos esbulhadores.
Servido uma vez por uma velha de 80 anos que havia abatido uma galinha,
Lampião viu um companheiro que queria carne vermelha sair, voltar com uma cabra
morta e gritar à hospedeira:
“Prepare logo, velha”.
“Ai”, chorou a velha. “Era a minha última, a do leite dos netinhos!”
“Pague a cabra”, ordenou o chefe, de vista baixa sobre o ensopado de galinha.
Irritado, o cangaceiro atirou umas moedas sobre a mesa.
“Tome. Dou de esmola’’.
“Pague a cabra”, insistiu o chefe, ainda a comer.
“Mas já paguei, Lampião”.
“Pagou não. Esse dinheiro foi de esmola. Você mesmo disse”.
Dr. Plínio Sodré, médico baiano especializado em ultrassonografia, conta que
Lampião entrou em Piritiba com um companheiro ferido. O médico mais próximo,
Carlos Ayres, primo carnal do ministro Ayres Britto, que veio a ser presidente
do Supremo Tribunal Federal, morava no povoado de França. Havia uma senhora
gravemente enferma. Lampião mandou aviar cavalo com duas padiolas laterais e
levar os dois, com recomendações de muito cuidado com a mulher.
O rei do cangaço tinha um lado bom. Mas vê-lo à luz do puro maniqueísmo de
palor romântico é um erro. Com ele conviviam o estuprador, o saqueador, o
assassino que soltava presos, alinhava soldados e os fuzilava, tal e qual o
Guevara do paredón cubano, por quem a esquerda brasileira tanto se apaixonou. Se
Lampião adotou táticas de guerrilha, não o fez instado por atitude ideológica.
Apenas fugia das volantes que o caçaram até o ataque final na Grota do Angico.
Volante alagoana posando ao lado dos corpos dos cangaceiros mortos
Neste episódio, a tropa do tenente João Bezerra da Silva — 48 meganhas com
metralhadoras portáteis — e ele próprio portaram-se com uma selvageria em nada
inferior à que o tempo tece sobre heróis e vilões. Desentranhar a verdade do
aranzel de lendas e fatos é carregar água em cesto. De qualquer modo, o cangaço
prossegue com outro rótulo, e outras vestes, e polidos senhores proprietários de
sesmarias e mansões.
http://www.vidaslusofonas.pt/lampiao.htm
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