Por: Fábio Costa
Durante toda a
minha infância passei as férias escolares na fazenda de meu querido e saudoso
avô materno, o Sr. Aurelino “Toquinho” Avelino de Carvalho, na divisa BA/MG.
Ouvia extasiado as estórias que ele, os amigos dele e os agregados da fazenda
contavam. Inclusive as maravilhosas estórias das noites em que “seu” Anísio (um
bisneto de escravos) ia à sede da fazenda contar. Ainda sinto o cheiro saboroso
do café fresco no fogão a lenha (acompanhado de certa dose de fumaça é claro),
ouvindo com os olhos esbugalhados de menino curioso mais uma história de
assombração (as macabras estórias sobre as “visagens da estrada”, dos defuntos
que vinham dar botijas de ouro, sobre os espectros dos pistoleiros arrependidos
ou não, e das suas vítimas chorosas ou furiosas, dos lobisomens,
mulas-sem-cabeça, caiporas & cia.) e de depois ir dormir quase se borrando
de medo, se “ribuçando” (cobrindo) da cabeça aos pés, enquanto ouvia os ruídos
da natureza e das criaturas da noite, iluminando as trevas do quarto com a luz
bruxuleante do candeeiro a querosene (objeto hoje quase em extinção)...
Estórias coloridas de tempos passados, da época que os bichos falavam, das
aventuras de Pedro Malasarte (um personagem de histórias folclóricas
populares que era um renomado e sagaz picareta, que sempre se dava bem), de
caçadas memoráveis, e é óbvio que também estórias dos tempos dos coronéis,
jagunços e pistoleiros, tanto os de Minas como os da Bahia (dos quais falarei
com mais detalhes por ser meu estado natal).
Estórias cheias de violência, de folclore e misticismo como o “corpo fechado”,
dos pactos com o demônio para obter riqueza, das vinganças cruéis, das tocaias,
dos casarões mal assombrados e cheios de projéteis incrustados nas paredes de
quase 1 m de largura feitas com tijolos de “adobão” cozido. Lembro-me de
fragmentos das histórias contadas sobre o Coronel Marcionílio Antônio de Souza,
que foi compadre de meu bisavô Teófilo Carvalho (fazendeiro na região de Maracás/Ba),
como por exemplo, as que diziam que quando Marcionílio ia visitar meu bisavô,
seus capangas ficavam na porteira da fazenda, e quando entravam na propriedade
“tinham de abaixar as carabinas” em sinal de respeito. Ou uma que é de uma
malvadeza que poderia ser imputada a qualquer um deles: o coronel recebeu um
recado na sua fazenda. Convidou o mensageiro a ficar para o almoço, e no meio
deste, notou que enquanto todos comiam (naquelas mesas antigas e maravilhosas,
feitas com imensa pranchas de madeira sem emendas de 3/4 m) o convidado não
parava de olhar pra os lados e procurar alguma coisa. A um gesto do “home”
todos pararam de comer (além da família, uma pá de jagunços estava numa sala
contígua).
- Tá lhe
faltando alguma coisa? A comida não está boa?
- Ah seu
Coronel, tá tudo muito bom mas falta o “mió"...
- “De
maneiras” que, o que seria o “mió” pro senhô?-
- Ah seu
Coronel, era bom uma pimentinha...
Coronel Marcionílio Antônio de Souza, foto : tabernadahistoriavc.com.br
O “homem”
calmamente mandou retirar a mesa inteira, e mandou trazer uma gamela de jabá
bem salgado, um litro de farinha e um de pimenta bem vermelha e
curtida!!! - Pode comer agora sua pimenta a vontade!!O Infeliz ainda
tentou abrir a boca para argumentar, mas dois jagunços se chegaram para perto
engatilhando as suas carabinas papo-amarelo 44. O camarada comeu o jabá
entupido de sal, com bastante pimenta e farinha, e quando já estava revirando
os olhos, o coronel mandou parar.
- Isso é pra o
sinhô não ser mal-educado e não exigir nada na casa dos outros quando é
convidado. Suma de minha frente enquanto pode!
Diz o povo que
o camarada saiu voando ladeira abaixo, chegou ao açude no pé da ladeira,
abaixou a cabeça e bebeu como um boi. Dizem que morreu algum tempo
depois com os intestinos cortados pelo sal... Ou as histórias do Cel.
Clemente da Vazante que tinha a seu serviço mais de 100 homens, que moravam em
casinhas espalhadas numa serra, e quando era necessário reunir toda a “tropa”
era usado um búzio marinho de grandes proporções soprado a guisa de
trompa. Eu mesmo cheguei a conhecer um Coronel, ele já estava no fim da
vida, enfermo numa cama, a barba absolutamente grisalha lhe descia até o peito,
lhe dando aparência de “santo”, prometeu a mim e ao meu irmão uma “repetição de
papo amarelo” (carabina Winchester 1873), das muitas que devia ter tido...
Embora naquela altura, das centenas de alqueires que ele possuíra, só restava
mesmo a outrora majestosa fazenda que possuía ainda as 4 casas, e uma “venda”
(armazém onde os empregados certamente se endividavam) reunidas em torno de uma
praça central. Curioso citar que uma destas casas estava vazia e diziam que era
mal-assombrada, se escutando a noite gritos, gemidos, e disparos de armas de
fogo. Ela possuía um porão aterrado (me disseram que era um arsenal, será?)
Contava o velho Cel. Horácio Machado em suas lembranças que viu nos bons tempos
os “turcos” passar com as bruacas (bolsas de couro cru para levar cargas em
lombo de burro) cheias de pedras preciosas retiradas dos garimpos das velhas
Minas Gerais.
ilustração:indiosan.com
Reminiscências
de menino a parte, historicamente o período do coronelismo se inicia no Brasil
no século XIX ainda no período do império com a criação da Guarda Nacional em
1831, prosseguindo no período da república velha (1889 – 1930), perdendo força
depois da revolução de 1930. Sua principal função seria a manutenção da ordem
pública, contando para isso com (teoricamente) frações de tropa em cada município.
O coronelismo se constituía em ricos fazendeiros, ou políticos influentes que
compravam ou recebiam o título da mão do governo (a carta-patente da Guarda
Nacional), ao qual eram dados diversos privilégios e status social, sendo que
em certa época a sociedade civil se encheu de capitães, majores e coronéis,
como no império foi cheia de marqueses, condes, e barões falidos.
Como nota meritória deve-se destacar que os batalhões da Guarda também
participaram da Guerra do Paraguai. O “Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas”
comandado por Horácio de Matos de Lençóis, ainda participou em 1926 dos
episódios da caça aos “revoltosos” da Coluna Prestes na região. Havia também os
coronéis com título sem valor militar de fato. Por fim depois da extinção da
Guarda nacional logo após a proclamação da República, “coronel” passou a ser
sinônimo de qualquer fazendeiro rico. Os coronéis rurais (e depois os
urbanos, estes geralmente capitães de indústria) são uma verdadeira lenda
social brasileira, e embora se associe imediatamente sua imagem com o nordeste
brasileiro, se espalharam de norte a sul do Brasil (é só se lembrar da política
do café com leite, dos coronéis paulistas e mineiros que dominaram a política
nacional por anos). Eram latifundiários, oligarcas, patriarcais, violentos e
arrogantes. Pode-se dizer que a sede da fazenda, o tradicional casarão com 6 a
8 janelas frontais (diziam que a quantidade de janelas indicava a riqueza do
dono) com até 2 pavimentos, sótão (por vezes com janelas para atiradores) e
porões, substituía a casa grande do engenho, pois tinha a mesma função
opressora.
Cel. Horácio de Matos
Pode-se dizer,
guardadas as devidas proporções, que continuavam com a mesma função do
donatário da capitania hereditária no período colonial: auxiliavam, substituíam
e faziam as vezes do poder central, que era fraco e vacilante, na administração
regional e na manutenção da lei e da ordem vigente em seus domínios. A riqueza
e a opulência da extensão de terras era conseguida, via de regra, pela grilagem
de mais terras ou por herança; havia coronéis que eram “ex-pobres”, mas era
raríssimo, pois era uma época de pouca mobilidade social, a maioria mesmo já
era de família rica ou tradicional As esposas dos coronéis eram outro
capítulo a parte. Ora eram submissas (a maioria), ora arrogantes, vingativas e
algumas quase tão violentas quanto os esposos, verdadeiros “coronéis de saia”.
Conheço inclusive o caso de uma delas que mandou aplicar um “clister” (lavagem
intestinal, que antigamente era feita toscamente com um chifre de boi limpo e
polido, com a ponta serrada que servia de funil) a base de pimenta malagueta
numa das raparigas (amante) do seu marido.
Algumas inclusive assumiam o lugar do Coronel como chefe do clã político quando
este falecia, mas foram poucos casos. Com o tempo a elite agrária começou
a se refinar e enviar seus filhos a Europa e aos grandes centros para estudar.
Assim quando voltavam para a casa paterna os recém formados “Doutores”,
engenheiros, médicos e advogados. Criava-se então, desde o fim do Séc. XIX, uma
sociedade que endeusava os títulos acadêmicos (herdamos isso ainda hoje), algo
compreensível numa época onde cultura era raro, fazer faculdade então era um
artigo extraterrestre de tão difícil. As grandes casas rústicas ou não, no meio
do sertão, do seringal ou do cafezal, eram repletas de boa louça, tecidos e
mobiliário fino, embora nem sempre os proprietários tivessem o necessário
refinamento para apreciá-los.
Os coronéis entraram no imaginário popular como os fazendeiros que se
constituíam na riqueza e na força política que como um rolo compressor
implacável decidia o destino das eleições e do governo do país. Soberanos em
seus currais eleitorais obrigavam os seus empregados e agregados pela coação a
fazer o infame e famoso voto de cabresto (voto forçado no candidato do patrão,
chegando os coronéis a reter os títulos dos empregados). Ainda haviam as
devidas manipulações, associações, fraudes (como a falsificação de documentos
de eleitores para permitir o voto de menores, a repetição do voto ou pessoas
votarem com nome trocado, o voto “fantasma” - onde o falecido “votava” lá do
além, a falsificação de documentos eleitorais públicos, etc.), conchavos
políticos, trocas de favores, compra de votos, ou simplesmente pela força das
amas, com sedições, golpes violentos, além dos já tradicionais homicídios dos
rivais, como diz esta anedota em que o coronel manda chamar o jagunço e diz:
- Você conhece
o fulano de tal?
- Conheço não
Coroné, mas já tá me dando uma raiva danada desse cabra.
- Deixe de
bobagem home, é só pra mandar um recado!
A sua ousadia
era tanta que mais de uma vez aconteceram embates contra o governo e seus
representantes, como no caso sedição de Juazeiro/CE em 1914, a crise foi
provocada pela intenção do interventor nomeado pelo Pres. Hermes da Fonseca,
Marcos Franco Rabelo, de destituir e prender o famoso padre Cícero Romão
Batista – que muitos consideram um “coronel sem farda” - dos cargos políticos
que ocupava.
Hermes da Fonseca
O deputado
federal Floro Bartolomeu a frente de um batalhão de jagunços auxiliados pelos
romeiros que movidos por intensa fé no “Padim Ciço”, interviram na contenda
batendo as tropas governamentais, que apesar de usar um canhão, foram
rechaçadas. Depois disso os revoltosos seguem para a capital cearense e depoem
o interventor Franco Rabelo, contando inclusive com auxílio de uma esquadra da
Marinha de Guerra do Brasil, pois Floro Bartolomeu conseguira apoio
federal. A cidade de Princesa na Paraíba rebelou-se em fevereiro de 1930,
no episódio conhecido como a “Revolta de Princesa”.
O coronel José
Pereira Lima insurgiu-se contra o governo de João Pessoa, arregimentou forças e
causou muitas baixas no meio das fileiras da polícia da Paraíba (inclusive com
um quase desconhecido massacre de uma companhia num casarão), sendo a cidade
tomada de maneira absolutamente pacata depois da revolução de 1930 por tropas
federais. Ou no caso da “Revolta Sertaneja ” (1919/20), na Bahia, onde os já
citados coronéis Marcionillo Souza, Horácio de Matos, e Anfiófilo Castelo
Branco reagiram contra a Lei Estadual n.º 1.104, de 09 de maio de 1916, que
pretendia minar seu imenso poder regional. Os tentáculos dos coronéis se
estendiam tanto no âmbito dos municípios como no âmbito estadual. Tudo dependia
do seu prestígio e favores políticos: a nomeação de funcionários públicos,
delegados de polícia, a administração da justiça, etc. Era comum darem guarida
a homicidas, sendo seus “afilhados“, capangas e jagunços de certa forma
intocáveis pela lei.
Continua...
Fábio Costa
Cortesia:
Ivanildo Silveira; Conselheiro Cariri Cangaço
Parte de
Postagem em:
http://cariricangaco.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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