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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

“E O COITEIRO SOFREU, AGONIZOU, MAS SILENCIOU ATÉ MORRER”

Por Rangel Alves da Costa*

Foi lá em minha terra que ouvi essa história. Muitas eu já conhecia a respeito, mas especialmente essa me deixou quase presente diante daquela medonha realidade, e acima de tudo quando no desfecho o velho sertanejo ajuntou: “E o coiteiro sofreu, agonizou, mas silenciou até morrer”.

Histórias e estórias, causos e proseados dando conta do dia a dia do coiteiro, daquele que ajudava na estadia do bando de cangaceiros quando de passagem pela sua região, ainda são espalhadas como verdades absolutas e fantasias exageradas pelos sertões adentro. Revendo a medida e o peso, equacionando as possibilidades, o que ainda resta são páginas de honra, amizade, destemor e sofrimento.

Para ser confiado por Lampião, conhecendo o paradeiro do bando e se tornando emissário para quase tudo que dissesse respeito ao mundo exterior, além caatinga, o coiteiro precisava ser homem honrado, reconhecido pela sua postura de fidelidade. Daí também a amizade, pois os contatos precisavam ser feitos na confiança de verdadeiros amigos e confidentes. E o destemor para cumprir com as exigências do bando, adquirir e transportar o encomendado, e sem medo de ser perseguido, tocaiado ou aprisionado para dizer onde a cangaceirama estava tocaiada.

Mas foi esse destemor que tanto sofrimento causou ao sertanejo que um dia se fez coiteiro por achar justa a guerra cangaceira contra a volante e o mundo. Contra o mundo sim, pois num dado momento do cangaço já não se podia perceber quais os reais objetivos daquela guerra medonha, já não se conhecia o que Lampião desejava alcançar. Então tudo podia justificar a luta pela luta, até mesmo porque não lhe restava saída honrosa senão morrer lutando. E nem isso conseguiu.

O coiteiro foi coadjuvante importante dessa luta, principalmente do cotidiano  cangaceiro, pois conhecia as necessidades, os hábitos, os temores e até o percurso seguinte. Indicava caminhos mais seguros e alertava sobre os olhos escondidos na mataria. Não só providenciava alimento como informava sobre a presença da volante na região, não só levava linha e agulha como servia de mensageiro entre o Capitão e os coronéis e poderosos da região. Por isso mesmo que era tão importante ao bando.


Não só importante como possuidor do destino de cada um em sua boca. Bastava abrir o bico, ou dar com a língua nos dentes como costumeiramente se diz, para dizer onde era o coito naquele momento e toda a cangaceirama corria perigo. E não faltava gente querendo saber, desde alguns sertanejos que não gostavam ou temiam Lampião, ou ainda outros que logo correriam para segredar aos ouvidos da volante. Mas principalmente esta, que tudo fazia para obter qualquer pista acerca do paradeiro daqueles revoltosos das caatingas.

E a história relata casos de atrocidades descomunais cometidas pelos soldados da volante quando em busca de informações acerca do bando. Bastava colocar os pés nos arruados e queriam a todo custo que os matutos dissessem sobre o paradeiro do Capitão. E para tanto ameaçavam, prendiam, batiam, açoitavam, sangravam e até matavam. Muitos, mesmo sem nada saber, porém temendo o pior, cometiam o erro de indicar um lugar qualquer. Então eram forçados a seguir com os algozes e encontrar a morte mais adiante, vez que as informações não se confirmavam.

Contudo, acaso a polícia ao menos imaginasse que aquele ou aquele outro servia ao bando como coiteiro, então a situação se transformava num terror marcado pela lentidão do suplício. Logo começava a caçada e assim que colocasse as mãos no sertanejo começava o sofrimento. Mesmo que não tivesse qualquer certeza do conluio entre a pessoa e o bando, ainda assim o pobre homem era levado para um lugar mais afastado, até mesmo para perto de seu casebre e de sua família, e então começavam as torturas.

E foi uma dessas situações que ouvi daquele velho citado acima, relatando o episódio como se o tivesse presenciado. Eis suas palavras descrevendo a ação:

“Amigo de Lampião não merece viver, mas parece que você tem mulher e filhos dentro daquele rancho ali, não é mesmo? Então, ainda que ver sua mulher e seus filhos? Então diga, diga logo aonde é o coito daquele miserável de Lampião, diga. Só pra saber que não tamo brincando, então sinta essa ponta de punhal na sua costela. Tá sentindo dor? Pena que não tá vendo seu sangue de verme escorrer. Amole aí o facão e baixe as calça dele...”.

Mas podia estraçalhar, cortá-lo todinho em pedacinhos, que uma só palavra não sairia de sua boca. O verdadeiro coiteiro, à moda da honra kamikaze, preferia morrer a revelar qualquer coisa que pudesse ser vista como traição ao líder cangaceiro. Ao bando em si, mas principalmente a Lampião, por quem devotava alentado respeito. Mas prosseguindo:

“Você sabe muito bem como bode morre, sangrando pelo pescoço. Quer morrer assim? Fale logo seu fio da peste, diga logo onde cabrunco tá Lampião. Não vai dizer não, então toma. Acenda uma fogueira, vamo queimar ele vivo. Traga a família dele, anda. Você soldado, cuide de ir logo sangrando esse cabra, mas devagarinho pra que termine de morrer na fogueira, diante da família. Pela última vez, onde tá Lampião? Diga seu fio da peste, diga onde tá Lampião...”.

E o coiteiro sofreu, agonizou, mas silenciou até morrer. E não somente este. Muitos fizeram da honra seu pacto maior com o cangaço. E tal fato, por si só, já demonstra que tal respeito tinha por fundamento uma imensa consideração àquele mundo cangaceiro que hoje muitos não querem nem desejam compreender. Ora, mas era o seu mundo. E ele também vítima da opressão e das injustiças.
  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo21:34:00

    Pois é Pesquisador Mendes este texto do Escritor Rangel, muito me ensinou sobre a responsabilidade dos coiteiros. HAJA CONFIANÇA DE LAMPIÃO, MESMO COM TODA SUA DESCONFIANÇA!
    Antonio Oliveira - Serrinha

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