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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

BATE PILÃO

Por Rangel Alves da Costa*

Da madeira do navio, do navio negreiro, talvez seja o pilão. Mas trazida da mata para ser escavada até que a fundura triture o grão, na batida da mão do pilão.

Forte como o negro, sofrido quanto escravidão. Geme o negro, também geme o pilão. No lombo do escravo é o chicote e o ferro que são as mãos do pilão.

A árvore cortada no tronco rombudo é lançada ao chão. O corpo do negro, depois de esfolado, é jogado ao desvão. Mas o pilão é de madeira e o escravo não.

Traz o tronco da mata, madeira de lei, bem largo e macio para ser batido. E bate o facão, bate a ponta aguda, bate até cavar profundo e surgir o fundo, fundo do pilão.

O negro adorna, o negro alisa, o negro dá vida ao pilão. Um pilão com a feição de seu corpo, tão forte e tão firme, mas sendo batido, sendo castigado, sendo remoído.

Largo é o tronco, tão firme e tão forte é o pilão. O pau de pilão de pé e tem mão, geme na batida, parece ter coração. A cada batida, num movimento repetido, irrompe aflição.

Ali na senzala, cheirando a queimado, cheirando a garapa, no meio do tempo está o pilão. Pelos arredores a vida em aflição. Crianças e velhos de negra coloração, tratados como bichos ou simplesmente pilão.

Bate escravo, bate o pilão. Agoniza o escravo, agoniza o pilão. O sangue de um é misturado ao grão, alimentando o engenho e o poder do patrão. Dono de negro, tido como bicho sem alma e coração.


Bate que bate o pilão. A senzala é grande, o engenho imensidão. Bate que bate o pilão, pois lá vem o senhor com chibata na mão, precisa de negro para plantação. Ou o negro vai logo ou se transforma em pilão.

Se o pilão é raso, afunda mais o pilão. Tem de caber tudo dentro do pilão, desde o corpo à alma, tudo feito grão, para depois ser batido e jogado ao chão. Então joga o negro dentro do pilão, não precisa o escravo ter outra destinação.

Assim pensa o algoz com o ferro na mão, assim pensa o senhor mostrando o pilão, que é o tronco adiante esperando o negro em submissão. E no meio do tempo irrompe o grito, o pilão sangrando, um brado de trovão.

Mas a vida também se faz ao redor do pilão. A criança faminta espera o pilão, a senzala inteira come do pilão. Dali sai o alimento ou o que sobra do grão, para ser transformado numa sombra de pão.

O negro cansado, o negro suado, o negro lanhado, vai bater arroz, vai bater café, vai bater o milho. Bate negro, negro bate o pilão. Pouco lhe sobra, é tudo do patrão, mas sua sina é esta, é bater o pilão.

O negro no tronco e no tronco do pilão. No tronco jogado, no tronco açoitado, no tronco lanhado, a crucificação. E depois do tronco vai pra outro tronco, o tronco do pilão.

O dia se vai, a noite caminha, a lua ilumina o negro no pilão. Um canto gemido, um canto de dor, uma dolência em tudo, um lamento que ecoa do tronco do pilão.

Iá iê, akuntô, naní na’iô, lamenta o negro, geme o pilão. Nô’anã iá iô, naná aió, oní nanã, ecoa o negro, ressoa o pilão. É canto de negro, é lamento de pilão, no meio da noite, em toda escuridão.

Negro avançando na noite, o braço subindo, o braço descendo, batendo pilão. O negro cansado vai deitar na terra, mas continua batendo sozinho o pilão. E bate lentamente, como a dor da escravidão.

Escrava é a vida, escravo é o homem e também o pilão. O mesmo sofrimento na desolação, o mesmo gemido em toda aflição, como milho esmagado, o farelo do grão, assim na existência do homem pilão.

Avisto no quintal ainda um pilão. E por todo lugar a escravidão. Na cor, na submissão, fingindo gostar, mas quer bater o pilão. E bate o pilão, e bate o pilão...

Poeta e cronista
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