Por Rangel Alves
da Costa*
Da madeira do
navio, do navio negreiro, talvez seja o pilão. Mas trazida da mata para ser escavada
até que a fundura triture o grão, na batida da mão do pilão.
Forte como o
negro, sofrido quanto escravidão. Geme o negro, também geme o pilão. No lombo
do escravo é o chicote e o ferro que são as mãos do pilão.
A árvore
cortada no tronco rombudo é lançada ao chão. O corpo do negro, depois de
esfolado, é jogado ao desvão. Mas o pilão é de madeira e o escravo não.
Traz o tronco
da mata, madeira de lei, bem largo e macio para ser batido. E bate o facão,
bate a ponta aguda, bate até cavar profundo e surgir o fundo, fundo do pilão.
O negro
adorna, o negro alisa, o negro dá vida ao pilão. Um pilão com a feição de seu
corpo, tão forte e tão firme, mas sendo batido, sendo castigado, sendo remoído.
Largo é o
tronco, tão firme e tão forte é o pilão. O pau de pilão de pé e tem mão, geme
na batida, parece ter coração. A cada batida, num movimento repetido, irrompe
aflição.
Ali na
senzala, cheirando a queimado, cheirando a garapa, no meio do tempo está o
pilão. Pelos arredores a vida em aflição. Crianças e velhos de negra coloração,
tratados como bichos ou simplesmente pilão.
Bate escravo,
bate o pilão. Agoniza o escravo, agoniza o pilão. O sangue de um é misturado ao
grão, alimentando o engenho e o poder do patrão. Dono de negro, tido como bicho
sem alma e coração.
Bate que bate
o pilão. A senzala é grande, o engenho imensidão. Bate que bate o pilão, pois
lá vem o senhor com chibata na mão, precisa de negro para plantação. Ou o negro
vai logo ou se transforma em pilão.
Se o pilão é
raso, afunda mais o pilão. Tem de caber tudo dentro do pilão, desde o corpo à
alma, tudo feito grão, para depois ser batido e jogado ao chão. Então joga o
negro dentro do pilão, não precisa o escravo ter outra destinação.
Assim pensa o
algoz com o ferro na mão, assim pensa o senhor mostrando o pilão, que é o
tronco adiante esperando o negro em submissão. E no meio do tempo irrompe o
grito, o pilão sangrando, um brado de trovão.
Mas a vida
também se faz ao redor do pilão. A criança faminta espera o pilão, a senzala
inteira come do pilão. Dali sai o alimento ou o que sobra do grão, para ser
transformado numa sombra de pão.
O negro
cansado, o negro suado, o negro lanhado, vai bater arroz, vai bater café, vai
bater o milho. Bate negro, negro bate o pilão. Pouco lhe sobra, é tudo do
patrão, mas sua sina é esta, é bater o pilão.
O negro no
tronco e no tronco do pilão. No tronco jogado, no tronco açoitado, no tronco
lanhado, a crucificação. E depois do tronco vai pra outro tronco, o tronco do
pilão.
O dia se vai,
a noite caminha, a lua ilumina o negro no pilão. Um canto gemido, um canto de
dor, uma dolência em tudo, um lamento que ecoa do tronco do pilão.
Iá iê, akuntô,
naní na’iô, lamenta o negro, geme o pilão. Nô’anã iá iô, naná aió, oní nanã,
ecoa o negro, ressoa o pilão. É canto de negro, é lamento de pilão, no meio da
noite, em toda escuridão.
Negro
avançando na noite, o braço subindo, o braço descendo, batendo pilão. O negro
cansado vai deitar na terra, mas continua batendo sozinho o pilão. E bate
lentamente, como a dor da escravidão.
Escrava é a
vida, escravo é o homem e também o pilão. O mesmo sofrimento na desolação, o
mesmo gemido em toda aflição, como milho esmagado, o farelo do grão, assim na
existência do homem pilão.
Avisto no
quintal ainda um pilão. E por todo lugar a escravidão. Na cor, na submissão,
fingindo gostar, mas quer bater o pilão. E bate o pilão, e bate o pilão...
Poeta e
cronista
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