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domingo, 19 de outubro de 2014

Família de Lampião, empreendedores no sertão e uma estória de amor puro e verdadeiro.

Por Raul Meneleu Mascarenhas

“Junto com meus irmãos
Lutamos como heróis.
E a luta que travamos
Destemerosa, honramos
O sangue dos nossos avós” 

Quando verificamos em diversos trabalhos de historiadores a respeito da vida de Lampião, o Rei dos Cangaceiros, onde liderança e capacidade intelectual era imperativo para se sair juntamente com seus bando de situações críticas, vemos que seu aprendizado se deu quando menino em que desenvolvia tarefas estipuladas por seus pais que eram pessoas empreendedoras. 

Os relatos são muitos e mesmo já no cangaço, nunca deixou de ser empreendedor, pois em sociedades com alguns sertanejos, possuía bens de raiz, tais como investimentos em fazendas, chegando até mesmo a comprar e vender, para lucros imediatos. Emprestava dinheiro a coronéis que honravam o pagamento e com raras exceções, como a do coronel José Pereira, de Princesa na Paraíba, seu mui amigo, que terminou tornando-se seu inimigo, por não honrar o pagamento do dinheiro que Lampião lhe emprestara. 


Quando menino, Virgulino desenvolvia um trabalho básico para sua família, carregando água para uso em sua casa, da forma como vi muito no interior do Ceará e Rio Grande do Norte, onde com um pau atravessado nos ombros, era pendurado latas de óleo ou outro produto, pendurados com cordas, onde o precioso líquido era transportado. 

Ao crescer mais um pouco começou a receber mais tarefas em que segundo os historiadores, eram feitos com precisão e perfeição, pois tudo que fazia, o fazia organizadamente. Com certeza isso fez que tivesse condições de liderança para tratar com sertanejos tão valentes como ele, que também largaram tudo para viver do cangaço. 

Cuidava da criação de bodes, e aos porcos e galinhas, fornecia ração de milho pilada por ele mesmo fazendo o famoso xerém e outras tarefas de acordo com a sua idade. Tudo isso supervisionado por seus pais, que tinham um cuidado enorme pela família, onde todos tinham tarefas. 

Quando foi ficando mais entroncado e alto, passou, a cuidar também da roça de algodão, milho, feijão, jerimum e melancias, atocaiando as poucas chuvas do sertão que caiam sobre as terras de seus pais. Ficava olhando pro céu no mês de março, assim como fazia todo sertanejo, aguardando que chovesse no dia de São José para dizer se o inverno seria bom ou se não chovesse seria ruim. Nesse ínterim também cuidava do pouco gado vacum que a família possuía. 

O velho José Ferreira e Dona Maria Lopes tiveram ano a ano sua família aumentando e o cabeça da família, homem trabalhador e dinâmico, procurou expandir seu empreendedorismo para sustentar melhor a meninada sua e adquiriu bons burros de carga para fazer transporte de mercadorias, o que na época era chamado de almocrevia. 

Assim feito e José Ferreira aparelhou os seis pares de mulas com arreios próprios e cangalhas. Como homem organizado que era, passou esse exemplo para o jovem Virgulino, que passou a desenvolver o trabalho de almocreves e quando no cangaço, fez essa poesia simples:

“Cresci na casa paterna
Quis ser homem de bem
Viver de meus trabalhos
Sem ser pesado a ninguém.
Fui almocreve na estrada...” 

Os filho de José Ferreira, assim como seus pais, eram trabalhadores e tinham como testemunhas, a boa querença que os seus vizinhos tinham por eles, menos um, o José Saturnino. Antônio, Livino e Virgulino participavam com alegria das tarefas. Sebastião Pereira (Sinhô) dizia de Virgulino e seus irmãos que estes eram independentes e muito trabalhadores. Quanto ao vizinho que não gostava dele, José Saturnino, estudiosos como o Padre Maciel, dizem que ele era uma pessoa vingativa,  inimigo de Lampião e que a história conforme diz Rodrigo de Carvalho, citado por  'Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro' de Élise Grunspan-Jasmin na página 60, dizendo que Saturnino era  cruel, ciumento e obstinado.

Pois bem, voltando à nova lida de Virgulino Ferreira, a almocrevia, costumava ajuntar-se ele com almocreves amigos e seguiam ajudando-se uns aos outros, embrenhados pelo sertão seco e caatingoso, onde o futuro Lampião o Rei do Cangaço, deve ter aprendido as rotas e esconderijos que os livraria das volantes sedentas de seu sangue.

A mercadoria era bastante variada e desde fardos de charque, fazendas, tonéis de bacalhau, bolachas e outros itens, até louças finas para as mesas das famílias mais abastardas. Tudo embalado com esmero nos caçuás encarapitados nos burros, que trabalhavam carregados de peso, mas à noitinha aliviados da carga, com sofreguidão comiam de tudo e por isso preferidos pelos almocreves, mas de uma coisa todos sabiam, burro gosta de ar puro e só bebe água limpinha, se não tiver água limpa, prefere ficar com sede até encontrar. E isso os almocreves não podiam vacilar; traziam as moringas do líquido precioso, com todo cuidado e esmero, era o combustível aditivado dos muares, aditivado com a pureza.
  
Através dessas viagens, Virgulino ficava conhecendo mais ainda o sertão e foi o que lhe ajudou muito, pois inteligente como era, ficou registrado esses mapas da região, em seu cérebro privilegiado. Sabia cada atalhe, cada riacho, cada olho d'água e botequins de pouso nos pernoites para descanso sem risco e ao mesmo tempo conhecia suas relações de amizade que o ajudariam na vida de cangaceiro, não que estivesse premeditando isso.

A família era dinâmica e faziam feira em diversas localidades para venderem o que produziam. Mas Virgulino vendia nas feiras apenas o que produzia em seu tempo de folga da enorme labuta em que era submetido. Era exímio fabricante de artefatos de couro, com perfeição fazia gibões, coletes, perneiras, joelheiras, guarda-pé, luvas e alforges. Tudo para o vaqueiro. Fazia também sela e arreios, cartucheiras e bainha de faca.

Diz os historiadores que ele era um rapaz bastante dinâmico e reconhecido tanto na arte do fabrico de peças de couro, quanto na arte de comerciante, ao ponto de comprar mercadorias de outras pessoas para vender na feira de Vila Bela. Comprava a crédito, vendia, e nunca deixou de pagar em dia seus fornecedores.

Rapagão bonito e vistoso só podia ser invejado por José Saturnino, que foi o causador do infortúnio de uma família guerreira e empreendedora como os Ferreira. Nenhuma cabrocha sertaneja fugia de seu olhar de galã. Era másculo e belo e as meninas todas suspiravam por ele e algumas com ele tiveram casos amorosos. Tinha o cabelo bom, era alto, e vestia-se com esmero, atraindo nas festinhas dos forrós a simpatia de todos e o desejo feminino. Era um artista, poeta tocador de sanfona de oito baixos.

Seu trabalho no dia a dia exigia músculos e isso era dotado e construído nas tarefas que fazia. Tinha coragem, presteza, argúcia e para negócios então... eram seu preparo para ser cangaceiro, que até então ele não sabia o que o destino lhe reservava. Se não fosse o ódio de graça, dispersado por inimigos, aqueles três irmãos de sangue de cabra macho, teria tido famílias e filhos. 


Mas corre a lenda, que Virgulino deixou muitas donzelas apaixonadas por ele, e algumas buchudinhas esperando filho seu. Era um macho normal, que em cada lugar que ia, escolhia a mulher mais faceira e bonita para mostrar seus dotes de homem viril. Só depois de muitos anos, Lampião encontraria seu grande amor, na pessoa de Maria Bonita, a quem foi fiel até a morte. Morreram juntos nas barrancas do Rio São Francisco.

Volta Sêca, um dos cabras de Lampião, em reportagem ao jornal O Globo de 07 de novembro de 1958, sob o título 'O Amor de Lampião', conta que a mãe de Maria Bonita, conversando com ele Lampião por ocasião de sua visita à fazenda de José Felipe, falou-lhe da filha que tinha e Lampião ficou bastante interessado e intrigado.

Dona Déia, como se chamava a mãe de Maria, a mais velha de três filhos que tinha com José Felipe, dono da fazenda Malhada da Caiçara, no sertão da Bahia, contou-lhe que Maria estava casada e morava com seu esposo, que era sapateiro por profissão, em Santa Brígida, município de Jeremoabo e que sua filha o adorava e que sempre falava em seu nome. Gostava de ouvir as estórias contadas e vibrava com as façanhas de seu chefe. Que Lampião era um deus para a menina Maria Bonita. Casara era verdade, com um sapateiro, mas seu coração era dele.

Lampião observou: 'mas ela não me conhece...' e dona Déia arrematou na mesma hora, confirmando esse amor inexplicável: 'é coisa feita...', pois não é admissível ninguém gostar sem conhecer. E no entanto Maria o 'adorava'. - Lampião perguntou: 'e ela é bonita mesmo?' E a mãe respondeu-lhe que sim, era a cabocla mais bonita da localidade e o apelido de Maria Déia, estava bem justo. Lampião queria saber a idade de Maria e quando lhe foi dito, ficou sério a saber que poderia ser seu pai.

Dona Déia parece que estava querendo mesmo desfazer o casamento de sua filha e disposta a unir sua família com o Rei do Cangaço, pois segundo Volta Sêca, ela perguntou se Lampião queria que ela mandasse chamar sua filha. Lampião estranhou e rápido respondeu: 'nem a chame e nem diga a ninguém que estou aqui. Deixe ela lá com seu marido que deve está bem.' E afastou-se.

Estava porém curioso. Tão curioso que quando a velha voltou à carga, não se zangou. No dia seguinte talvez estivesse ansioso, esperando que ela chegasse de repente. Mas a moça não chegou...

Só no outro dia Maria Bonita apareceu e quando deu com o bando, ficou surpresa. Era uma morena de pequena estatura, cheinha de corpo, cabelos lisos e compridos, castanho-escuro e uma bela dentadura. Era de fato uma cabocla bonita, e Volta Seca arremata: 'até hoje, não vi um retrato dela que lhe fizesse justiça.'

Quando ela viu Lampião, parecia ter ficado abobalhada, como quem vê um fantasma. E ele não deve ter se sentido lá muito bem, pois ambos se entreolharam algum tempo antes de apertarem-se as mãos. Lampião era alto, e ela bem pequena, não alcançando o ombro dele, mas que um tinha nascido para o outro naquele momento.

O amor dos dois foi uma coisa muito séria. O bando demorou-se mais tempo na fazenda do que estava planejado. Vários dias se passaram e lampião e Maria Bonita, bem em frente a casa, num respeito digno dos namoros provincianos, conversavam. O que falavam, não sei, disse Volta Seca, mas o que transpirou, mais tarde contado pelos dois, era que desde o primeiro momento, Maria Bonita manifestou estar entediada do marido. Mas todos os dias ela voltava para a casa, à tardinha, regressando pela manhã do dia seguinte. À medida que o tempo corria, mais e mais se fortalecia o namoro.

Eles andavam sempre Juntos, e o bando conheceu naquela época um Lampião diferente e menos bruto. Era um Lampião apaixonado... A mãe de Marta Bonita exultava por ver a filha namorando Lampião, e o pai não escondia um certo orgulho... Mas tudo não passava de um idílio, passeios de mãos dadas. O caso só se resolveu mesmo quando Lampião marcou o dia da partida. Ai Maria Bonita fez pé firme em seguir o amado a todo custo. De nada adiantava Lampião dizer com seu espirito prático: 'Menina, a minha vida é de perigo e será sem futuro. Vivo brigando com os "macacos"' e trocando bala a toda hora, você tem um marido e isso é bem melhor do que eu posso oferecer. Ao meu lado você só vai encontrar o perigo ou a morte.' Maria Bonita respondia; 'Não ouso mais viver com meu marido. Se tenho que morrer amanhã, morro lutando ao teu lado. '

E assim Lampião resolveu levá-la, 'mas fez questão que todos nós vísse que ela ia por sua vontade, pois parecia que ele receava ser tomado como sedutor'. Quando saímos da Malhada da Caiçara, o bando levava um componente a mais: Maria Bonita. E nossa partida foi triste, - pois os pais. de Maria choravam, apesar de satisfeitos por terem ganho mais um filho'... Só dois meses depois, talvez para que 'ninguém soubesse quo o .bando estivera por aquelas paragens, Lampião mandou uma carta, por intermédio do Irmão de Maria Bonita, ao marido dela. A carta foi lida em voz alta antes de ser remetida e eu ainda me lembro que pedia desculpas ao José de Nenen por lhe ter levado a mulher. Mas justificava  explicando que fora ela quem quisera assim... Tenho a impressão até hoje que, o marido de Maria Bonita era bom, educado e conformado, e deve ter compreendido o Capitão Virgulino e até lhe perdoado, quem sabe lá... "

Maria Bonita foi uma mulher de garra e decidida. Aquele amor foi profundo e levou a duração da vida de ambos, pois encontraram a morte no mesmo dia por intermédio das balas da volante, Maria Bonita era uma mulher decidida que sabia muita bem o que queria. Logo aprendeu a atirar e, embora não tivesse temperamento violento, não era covarde e nem de tomar atitudes de força. Não tremia na hora da refrega e enfrentava a situação com serenidade. Não atirava nunca, embora soubesse fazer razoavelmente. Ela era o termômetro entre o gênio terrível de Lampião o dos demais cangaceiros. Muitas vezes ela conseguia contornar um incidente, ainda que Lampião não fosse homem de dar ouvidos a ninguém, quando zangado. Mas pelo menos adiou certas situações de conflito entre eles.

Segundo a reportagem do jornal o Globo, Lampião e Maria Bonita tiveram dois filhos, embora só conheçamos Expedita, fruto vivo do amor dos dois.

Pois bem... depois de vermos essa estória tão comovente e que pode ser constatada por todos aqueles que fazem pesquisas e livros sobre Lampião, o Rei do Cangaço, como podemos acusá-lo, tanto a ele quanto a seus familiares como sendo pessoas preguiçosas? Nunca vimos na história dessa família, desses dois troncos fortes de madeira de lei, que eram os pais de Virgulino Ferreira, sequer uma leve suspeita que tenham sido tolerantes na criação de seus filhos. Mostraram-lhes sempre o caminho da justiça e do trabalho que engrandece o homem e nunca foram amantes do alheio. Após as mortes desses dois troncos de baraúna, a família continuou sua labuta de empreendedores e apenas Virgulino e dois irmão tomaram a senda do cangaço e morreram nesse caminho, mais por revolta que por índole de salteadores. Foram bandidos sim, mas levados pela conjuntura coronelística existente na época.

http://meneleu.blogspot.com.br/2014/10/familia-de-lampiao-empreendedores-no.html

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