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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Reminiscências: BEM ALI MORREU LAMPIÃO

"Foto do bando feita a exatamente 86 anos atrás, na cidade de Limoeiro do Norte, Ceará, no dia 16 de junho de 1927. O original desta foto me foi presenteada pelo meu avô materno no ano de 1952. Ele, como fazendeiro e tendo vivido toda a sua existência na zona rural, era um grande estudioso de LAMPIÃO a quem conheceu pessoalmente."
Edmilson Rodrigues do Ó
BEM ALI MORREU LAMPIÃO! (por Roberto Pereira)
Não conheço ninguém que seja tão nordestino como eu.

Venho de duas vertentes visceralmente nordestinas: meu pai, sertanejo alagoano da Ribeira do Ipanema, afluente do São Francisco; minha mãe, legítima sertaneja, nativa das terras do Cariri da Paraíba, centro do polígono da seca;  dos carrascais e dos espinhos, das baraúnas, dos facheiros, da macambira, do rompe-gibão; das lindas e  frias noites de lua-cheia.

Talvez daí o interesse natural que desde cedo em mim se manifestou por essas coisas que falam de perto dos costumes, da vida, da história, principalmente da história, tão rica e sofrida história desta nossa terra e dos que a fizeram através dos tempos.

Nasci em Campina Grande, onde vivi a adolescência e em seguida fui residir no Recife, pela necessidade de ingressar no curso superior então inexistente na nossa cidade. E apesar de hoje residir em João Pessoa, jamais perdi o contato com a minha cidade e os meus velhos amigos, com quem me encontro frequentemente para boas conversas e bons whisky.

Aos 14 anos consegui ler Os Sertões, depois de cinco ou seis tentativas. E ficou para sempre carimbada em meu pensamento a narrativa dos episódios épicos maravilhosos, da coragem, da decisão, do estoicismo, da grandeza daquele bronco Mestre Conselheiro, herói tosco, pobre, mas detentor de uma força espiritual monumental, indestrutível e  amedrontadora.

Daí para as histórias do cangaço foi um passo. 

Ligado ao pessoal da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais em Recife, um dia recebo um convite do escritor Frederico Pernambucano de Melo, presidente daquela fundação, para participar de uma mesa de debates sobre o tema cangaço, com a presença de uma mulher, ex-cangaceira, chamada SILA, testemunha presencial e participante daquele episódio crucial do cangaço ao qual se denominou como “a ultima batalha” contra o bando de Lampião, em que o bandido tombou pelas balas da volante alagoana do tenente João Bezerra.

Naquela noite, até bem tarde, estivemos debatendo, conversando, perguntando, principalmente perguntando muito a essa preciosa protagonista desse episódio fundamental, todos aqueles detalhes que muitas vezes são esquecidos nas narrativas que nos chegaram às mãos até então.

E dali nasceu também uma amizade com aquela bela sertaneja simples, modelo fiel da nordestina pobre, nascida numa época de costumes primitivos e absoluta ausência de um Estado que assegurasse o  mínimo de  cidadania numa região varrida pela seca, a violência  e a miséria.

Em cerca de uma centena de obras que tenho na minha estante sobre o cangaço eu, não sei por que, sempre me detenho no episódio que narra a dificuldade da tropa de assalto para embarcar à noite e descer o Rio São Francisco, a partir da cidade ribeirinha de Piranhas, no Estado de Alagoas numa  improvisada  embarcação,  em demanda do local aonde se escondia o bando de Lampião e todo o seu estado-maior,  para a batalha final.

Todas as vezes que releio alguma  dessas narrativas, sinto  como se  me transportasse  para aquele  ambiente;  e, pondo-me no meio deles, procuro  imaginar e ao mesmo tempo  analisar o estado de espírito daqueles militares, semianalfabetos, pobres, mal nutridos, amedrontados diante da missão gigantesca e cheia de perigos a que estavam implacavelmente ligados,  até o fim das suas vidas. Que sensação apavorante, quanta expectativa, o medo estampado naquelas faces maltratadas, o frio  de uma noite invernosa, silenciosa, tétrica naquela  lenta e incerta  viagem  rio abaixo.

Isso me impressiona até hoje. E nunca me saiu da cabeça a idéia de um dia, por minha própria conta, refazer exatamente aquele  itinerário.  Para mim aquilo chegou a ser quase uma  obsessão. Ah, eu haveria sim,  de repetir aquela saga. Descer o rio até a praia onde se deu  o desembarque. Eu queria sentir na pele ao menos a grandeza da paisagem.

A VIAGEM

Daquele encontro na Fundação Joaquim Nabuco restou uma  boa amizade com Sila, que dali por diante passou a ser  minha hóspede, nas vezes em que vinha ao Recife, geralmente convidada para eventos regionais  e  palestras, principalmente junto às prefeituras municipais e às  universidades , onde  invariavelmente os estudantes, curiosos acerca dos assuntos do cangaço,  adoravam  ouvir aquele  depoimento feito em linguagem simples e despojada,  o que inevitavelmente criava um  clima de empatia,  animado,  contagiante  e entusiasmante  acima de tudo. Os estudantes adoravam-na. E ela aproveitava para   fazer noites de autógrafos de um livro biográfico  que recentemente  ditara   para um escritor paulista.

Um dia convidei-a para conhecer a minha cidade natal, Campina Grande. E logo nessa primeira visita ela ficou  apaixonada pela  cidade. Foi mesmo amor à primeira vista.  A tal ponto que, com o meu próprio incentivo, logo mostrou o desejo de arrendar uma barraquinha na época do Maior São João do Mundo, para comercializar pratos típicos, no preparo dos quais  era uma  verdadeira mestra, como também comercializar os famosos embornais usados pelos cangaceiros,  que ela bordava como ninguém e, evidentemente,   atrair com a sua história, toda a população que certamente afluiria ao seu quiosque. Visitei  o então Secretário de Turismo de Campina Grande, Dr. Gleriston Lucena  a quem narrei o projeto. Ele mostrou-se receptivo a ideia e disse-me não haver nenhum problema. Seria até proveitoso para o turismo da cidade. 

Como a essa altura o Dr. João Dantas já estava  entusiasticamente integrado  ao projeto, ficou a seu cargo as tratativas para o caso, uma vez que eu tinha viagem marcada para o Sul.

Residindo em João Pessoa, a partir de 1996, hospedei-a  em minha casa três  ou quatro vezes;  e  através do saudoso amigo Dr. Amauri Vasconcelos,  e do Dr. João Dantas, levei-a  para palestras  em Campina Grande, junto ao meio  universitário, como também  em  João Pessoa, onde  a  acompanhei;  ela sempre fazendo muito sucesso.

Uma noite, já bem tarde, recebo um seu telefonema. Muito contente com o resultado do  lançamento de mais um livro, SILA, MEMÓRIAS DE GUERRA E PAZ, desta vez editado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco com   patrocínio da Petrobras.

“Roberto, dizia-me,  estou enviando  de cortesia uns exemplares do novo livro para você. Na página 89 cito o seu nome com muito prazer. Nunca lhe falei, mas desde o dia em que você me levou a Campina Grande, aquela sua  cidade maravilhosa, parece que as portas se abriram para mim. Várias Universidades , do Ceará, do Rio Grande do Norte, Piauí, e Maranhão começaram a me convidar para palestras e o certo é que estou com agenda cheia. Você foi o meu anjo desde aquele dia. Muito obrigada, mais uma vez”.

Mas aquela ideia de refazer o trajeto da  força alagoana continuava me perseguindo. E nada melhor pensei  eu do que agora,  na companhia de alguém que protagonizou o episódio. 

Expliquei    a Sila  o meu desejo e a minha curiosidade. Então, convidei-a para me acompanhar;   e ela, prontamente, atendeu ao meu convite.

Na verdade Sila não viveu o auge do cangaço,  é bom que se diga;  pois, jovem que era, só pelo fim da década de 30 ingressou nas lutas.  Digo mais, que apenas  por  um período de tempo relativamente curto  ela participou dos combates;  mas a sua presença junto ao casal Lampião-Maria Bonita, na sua  última noite,   lhe confere uma importância fundamental, pois que foi  vivida  na intimidade do casal, e ela como ouvinte atenta   das derradeiras palavras e lamentos da rainha dos sertões.

Partimos então  do Recife numa madrugada  chuvosa  e convidamos para nos acompanhar o casal Paulo Marques, então pro-reitor da Universidade Rural de Pernambuco, sociólogo e grande estudioso da saga do cangaço. Nosso destino: a margem esquerda do Rio São Francisco, precisamente a cidade de Piranhas, um romântico lugarejo, cheio de beleza e história, engastado em pleno  canyon  do médio São Francisco, onde os Estados de Alagoas e Sergipe se dividem.


A ROMÂNTICA PIRANHAS 

Rompemos  esses 450 quilômetros de percurso em cerca de 6 horas, em meu automóvel, com paradas para lanches, conversas sertanejas e, principalmente  evocações de lugares familiares  à memória da ex-cangaceira. Em Santana do Ipanema revi parentes por parte do meu pai, fomos festivamente homenageados e seguimos em frente.

Ao chegarmos finalmente na cidade ribeirinha,  saí desesperado a procura de uma embarcação para enfrentarmos a empreitada de descida do rio; e não foi fácil a tarefa pois que as rústicas “canoas” como são chamadas aquelas embarcações  à  vela,  típicas da região do médio São Francisco   inexistiam na ocasião, pelo que tive de contratar um barco de carga, movido a diesel  com tripulação de 4  homens,  o que encareceu bastante a jornada de navegação. Mas, tudo bem, tudo maravilhoso, pois o que me alegrava  era exatamente a realização daquele meu sonho antigo, acalentado durante décadas e que finalmente haveria de  se materializar e, principalmente, de uma forma especial, na companhia de uma testemunha presencial do grande assalto.


O GRANDE RIO 

Embarcamos e começamos a descida do rio. A visão é majestosa, incomum, misteriosa. A  calha por onde navegamos esmaga-se entre penhascos  monumentais ;  e  as  curvas sinuosas que faz o caudal, transformam o percurso numa aventura  diferente  e grandiosa , por entre as muralhas gigantescas  e amedrontadoras. Cada metro navegado  naquelas águas  verde-escuras  esconde algum mistério não se sabe bem de quê, nem de onde. 

Eu não cansava de contemplar  aquela paisagem  tão conhecida dos personagens do passado, e nela inseria os meus sonhos, a minha imaginação quase infantil, a minha criatividade. E me via como um soldado amedrontado  descendo o rio para a ultima batalha.

NA PROA  DA EMBARCAÇÃO 

Sila, na proa da embarcação, cabelos açoitados pelo vento, erguia o seu olhar  para aquelas muralhas gigantescas e se deixava sonhar, como se o tempo tivesse voltado. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e ela, vaidosa, com um lenço procurava dissimular a sua emoção. Tirava os óculos, enxugava as lágrimas e voltava a sonhar. Às vezes focava o seu olhar nas águas do rio, como se quisesse conversar com a natureza e mandar alguma mensagem para o fundo das águas.

Navegávamos    a baixa velocidade em virtude  de rochas que em alguns pontos daquele trecho do rio afloram  a superfície, motivo pelo qual só bons e experientes  condutores  com amplo conhecimento do trecho , se atreviam a  conduzir embarcações daquele porte.

Quase  uma hora durou a viagem;  até o momento em que os tripulantes, conhecedores de toda a região ancoraram numa praia à margem direita do grande rio. Aí aportamos,   para logo iniciarmos,   a pé,  a  subida  da grande montanha. Na frente, três   dos  experientes tripulantes  abrindo caminho à foice e  facão, rompendo a vegetação, verdadeira muralha de cactos de toda espécie, da jurema ao rompe-gibão, das  urtigas traiçoeiras aos  quipás e unhas-de-gato;   enfim, uma variadíssima  flora, boa parte ainda desconhecida para mim.  Logo atrás em fila indiana,  vínhamos nós, sempre revezando,  passando  um  à frente do outro, dependendo de quem caísse, vitima dos tropeços nas pedras do caminho  inclinadíssimo  e  tortuoso. O calor era intenso e as dificuldades  da caminhada  aumentavam a cada metro. O clima abafado e sufocante nos tirava o ar  e o   suor  ensopava os nossos corpos. Cerca de 1 hora demorou essa viagem exaustiva e desgastante montanha acima,  até que  num determinado momento os guias pararam e nos avisaram que abririam uma  clareira na mata afim de que pudéssemos ter acesso  a gruta. Assim foi feito.


AQUI O HOMEM  MORREU

De repente descortina-se diante de nós  um cenário  diferente: um mundo  feito de rochas pontiagudas dos mais variados formatos e tamanhos, sombreadas  por gigantescos e centenários  pés de Angicos, que dão ao lugar um aspecto de cenário teatral, escuro,  misterioso, solene. Parece uma tela  de pintura antiga. O silencio profundo aumentava a sensação de coisa misteriosa, mágica, esquisita.   E lá num canto,  fixada  numa das rochas, ao pé de uma cruz,  uma lápide de mármore  onde se lê  uma mensagem anônima de homenagem aos que ali tombaram, com  seus respectivos nomes.


UMA SINGELA ORAÇÃO

Sila  aproxima-se   daquele tosco monumento  lê vagarosamente a mensagem de homenagem gravada na rocha e começa a chorar. Um choro sentido, emocionado, cheio de dor. Eu a seguro pelo braço e procuro afastá-la   dali, comovido com a sua emoção. Sentamo-nos então ao abrigo de uma grande pedra, em baixo da qual  Maria Bonita, segundo Sila, foi degolada viva. Para  todos os locais onde voltávamos a vista, Sila rememorava algum fato: ora a pedra de onde ela, juntamente com Maria Bonita  enxergou  um brilho de luz  na noite escura, ora o local onde estavam  ela e o marido no interior da sua tolda, de onde, surpreendida pela fuzilaria, correu sem sequer calçar suas sandálias, o que lhe deixou os pés feridos e ensanguentados;  mais na frente um pequeno tanque natural  cavado na rocha onde o primeiro cangaceiro foi surpreendido apanhando água e sumariamente fuzilado; mais atrás o recanto onde ficou para sempre um seu irmão, o Mergulhão, tão animado, tão carinhoso  que era;  por traz dos angiqueiros a brecha por onde ela com os demais conseguiram escapar; finalmente o local exato em que Lampião armara a sua tolda e de onde  sequer conseguiu sair para responder  ao  ataque fulminante. Ali, o grande comandante, o herói dos sertões, o cavaleiro do desespero, como lhe chamaram então, fora abatido como uma ave no ninho: indefeso, frágil, exatamente da forma  como ele nunca desejara morrer. Tudo naquele lugar  lhe era familiar. Era como se ela retornasse no tempo e se   reinserisse naquele cenário. Tudo muito  emocionante, comovente  e inesquecível. Precisamente  do local onde Lampião foi baleado, apanhei três pequenas  pedras e as coloquei no bolso,  para servirem de lembrança daquele lugar. Guardo-as comigo até  hoje.


TRISTES EVOCAÇÕES

Permanecemos  ali, como se  estivéssemos hipnotizados,  por quase 1 hora, quando finalmente minha mulher propôs que  todos  se reunissem em torno do pedestal e rezássemos  em voz alta  uma oração em homenagem aos infelizes  que ali tombaram. Em seguida começamos vagarosamente  a nos afastar do local, agora com um solene e emocionante respeito. Então iniciamos  a viagem de descida da montanha. Sila, ainda compungida, chorava baixinho.  Enquanto perfazíamos todo aquele trajeto de descida, avistávamos lá embaixo, soberbo e silencioso o velho Rio São Francisco;  e nos afastávamos   devagar   daquele lugar misterioso. E eu, tal qual uma criança, não conseguia a partir daqueles momentos,  esquecer aquela aventura verdadeiramente fascinante  que ficou na minha memória para sempre.

O sol já se escondera quando embarcamos de volta. E navegamos durante quase o resto do trajeto rio-acima, em plena escuridão, contemplando  do nosso barco  aquelas luzes fraquinhas  nas margens do rio, indicativas da existência de vida.

Pernoitamos na cidade de Paulo Afonso e na madrugada seguinte rumamos para a cidade de Poço Redondo, já no Estado de Sergipe, de grande significação para mim, pois, além de ser o berço de nascimento de Sila, foi, na época do cangaço, a cidade que mais contribuiu para a formação dos contingentes cangaceiros, através de seus filhos, rapazes e moças da cidade, muitos ainda adolescentes, como foi o caso de Sila, outros casados e com suas mulheres, alguns filhos de famílias importantes da cidade, tudo  como se o cangaço fosse uma atividade, digamos, esportiva.

Explica-se: naqueles confins do mundo, onde as noticias não chegavam, reinava  absoluto,  um exército  diferente, de homens valentes, desafiadores,  ricos, fortes, vestidos de forma extravagante, chapéus de aba virada,  corajosos, ostentando joias preciosas pelo corpo e temidos por todas as populações. Tudo isso em caráter  ” oficioso” , pois que, apesar de perseguidos pelas policias de todo o Nordeste, desafiavam-nas abertamente chamando-as  para as lutas, tal qual guerreiros de um mundo  encantado, diferente,  surreal,  onde Deus  era o Padim Cicero, e esse mesmo Deus os abençoara;   e  mais, conferira-lhes patentes de oficiais do chamado Exército Patriótico, criado pelo governo federal, imagine,  para  defender a Pátria  da ameaça comunista;  e assim transformara-os  também em defensores da Pátria.

Tudo isso confundia aquela juventude sertaneja  desavisada, principalmente  as adolescentes, que facilmente se apaixonavam  por aqueles  belos legionários  e partiam com eles, em busca de emoções. Foi assim com Sila e com várias amigas suas, todas nascidas e criadas ali em Poço Redondo, às margens do São Francisco.

Ultima remanescente daqueles grupos, ela visitava vez por  outra a sua querida  cidade, onde  era recebida como uma rainha. Nessa  viagem conosco ela foi homenageada pelo prefeito da cidade, em casa de quem almoçamos. Varias pessoas foram vê-la, inclusive um seu irmão, que permaneceu na luta da agricultura por toda a vida, e nunca saiu da sua querida cidade.

Ela circulava  pela pequena cidade e revia os lugares aonde passou parte da sua juventude. Observava a pracinha, onde no passado passeava com as amigas, as casas  pobres que ainda resistiam a ação do tempo e que tiveram alguma  significação na sua vida. Olhava aquilo tudo  com um ar de tristeza e saudade. Parava, fixava o olhar para o alto e deixava as lágrimas lhe molharem   a face.

De Poço Redondo seguimos para Aracajú, onde Sila mantinha um pequeno  apartamento, e ali  encontramos  o seu filho Wilson, fotógrafo profissional  em   São Paulo. Alí pernoitamos  e no dia seguinte empreendemos a viagem de volta ao  Recife.

SILA

Sila não teve um casamento feliz. E nem podia ser: seu marido era um homem rude, primário, vítima como ela, da pobreza de uma região. E as feridas ficaram pela  vida à fora, desde o  primeiro encontro de amor com o seu violento companheiro  quando foi estuprada .Ela, como toda honrada sertaneja, sujeitava-se a minimizar as grosserias contra  si e seguia criando os 

HOMENAGEM DO PREFEITO 

seus filhos,  todos eles pessoas do bem, integradas a vida social e excelentes profissionais. Sofreu terrivelmente com a morte do seu filho mais velho, num acidente de carro em Santos, e jamais conseguiu se recuperar desse golpe.  Mas cumpriu integralmente a sua missão com a maior dignidade. Quedou-se ao lado do pai dos seus filhos até o seu respiro final.

Ela detestava a mentira, o engodo, a dubiedade. Era rudemente positiva.

Entrou no cangaço por mera imprevisão  sobre o futuro que a sua vida errante lhe podia reservar. Jamais  cometeu uma perversidade com alguém, mesmo nos tempos brabos da juventude, quando seu marido era envolvido  nas lutas do cangaço e ela teve de reprimir as ameaças de morte que rondavam sua vida, em algumas vezes usando as armas de fogo.

Um dia recebo um telefonema de uma emissora de São Paulo que preparava uma festa de homenagem a Sila; e, a seu pedido,  solicitava que eu desse um testemunho sobre a sua pessoa, para ser lido na ocasião. Meio sem jeito, mandei-lhe, entre outras, estas palavras via fax: ...“ .. Você, ao lado do seu  companheiro, caminhou pelas caatingas do Nordeste; galgou as suas serras, desbravou suas planícies, percorreu os seus  varjados, ocultou-se em seus desertos, e deixou escrita nas suas pegadas a mais autentica página da epopeia nordestina. Por isso afirmo com a mais absoluta convicção: quanto mais pobre a vida que lhe empurrou para a luta do cangaço, mais rica a História que você escreveu para o futuro”. Depois me disseram que ela mesma  leu a mensagem, chorando.


Conservou na velhice os traços de beleza  agreste da juventude, quando era cantada nos versos  dos poetas  de   cordéis e repentistas  como uma das mais formosas cangaceiras  que o sertão já viu. “De Lampião quero Maria, de Sereno eu quero Sila” versejavam os poetas populares e cantavam os violeiros nas suas  pelejas magistrais  desde a Bahia até os confins do Maranhão. E no imaginário popular falava-se na imagem de uma sereia que nas noites de luar emergia das profundezas do Rio São Francisco e encantava os pescadores. Era Sila, quase uma lenda sertaneja.

Isso constatamos quando, ao embarcarmos para a descida do rio, aproximou-se de nós um velhinho simpático, vivido e criado à beira do rio, de onde,  pescando,  tirava o seu sustento há quase 80 anos. Perguntou: “ Seu doutor, me desculpe a liberdade; mas essa mulher que está aí com o senhor não é a  Sila de Zé Sereno?” Diante da minha resposta afirmativa ele, chorando  de  emoção, afirma: “ Foi a mais linda cangaceira que o sertão já viu. Eu era rapazinho e a vi  uma vez atravessar o rio para Sergipe. Era uma santa de tanta beleza”. Aqui tinha um coronel muito rico que naquele tempo dizia pra todo mundo que daria sua fortuna para tomar a Sila do Zé Sereno”.   Eu então chamei  Sila que aproximando-se do velhinho lhe deu um  beijo carinhoso  na face. O pobre pescador tremia muito e as lágrimas corriam-lhe nas faces. Foi uma cena inesquecível.

CONVERSANDO COM O FILHO WILSON 

Sila  Interessava-se pela vida moderna e procurava sempre se atualizar acerca de todos os assuntos, desde a moda até  as noticias do mundo político. Se,  ao se expressar  algumas vezes tropeçava na busca das palavras adequadas, compensava  a carência através de uma expressão facial  limpa, convincente,  que comovia e  agradava a todos. Fumava moderadamente, tomava algumas caipirinhas  e era adorada pela juventude, principalmente os universitários. 


Não perdia uma festinha de  forró;   mas adorava mesmo aquele forrozinho  simples, singelo, com sanfona, zabumba e triangulo,  ou seja, o legítimo pé-de-serra  mesmo, como hoje se chama; e a dança era um dos divertimentos que mais a faziam feliz, oportunidade em que voltava aos tempos da  sua juventude  lá na beira do São Francisco, relembrando  seus amigos e parentes  que se foram.

Em São Paulo, onde sempre morou, trabalhou em varias atividades, desde costureira do setor de teatro  da Rede Bandeirantes de TV, até como secretária da atriz Regina Duarte.

INTEGRADA A VIDA  SOCIAL 

Conservava  os hábitos sertanejos : educou os filhos na cartilha sertaneja: tomando a benção, tratando pai e mãe de senhor e senhora.

Certa vez  visitou-me em Recife e expressou sua revolta: é que no fim da semana que passara, a convite de uma prefeitura do interior do seu estado, Sergipe,  viajara para um evento  regional e uma feira de artesanato, onde iria fazer uma palestra. Em sua companhia, no automóvel   da prefeitura  viajavam: uma cantora nordestina famosíssima e premiadíssima que também iria se apresentar  e mais uma jornalista que cobriria o evento.  Iam  todos conversando animadamente quando, ao cair da noite fez-se estranho silencio dentro do carro. Sila então, ocupando o lugar do passageiro na frente do veículo  voltou-se para  o banco de trás, quando flagrou as duas damas abraçadas  num beijo lascivo e  apaixonado. ” Tomei um enorme susto e pensei em mandar parar o carro e pô-las para fora. Mas em seguida lembrei que elas eram duas e bem poderiam me pôr para fora no meio da estrada  deserta. Assim preferi  silenciar. Ao chegarmos na cidade chamei o prefeito  e apenas lhe disse que queria voltar só. Ele me atendeu. E as duas, tal qual duas pombinhas, danaram-se por aí,” contou-me ela. “ E se Lampião visse isso, Sila”? Perguntei. “ Lá no sertão ninguém sabia nem que isso existia, Roberto. .Ele, seguramente, não admitiria isso”, respondeu-me.

“Sila,  a pessoa  de  Lampião ainda  é um enigma. Ninguém sabe como ele  era realmente, a sua altura, o seu peso, a sua voz, o seu jeito, o seu humor, a sua forma de tratar, enfim, você tem como me informar”?  

Perguntei-lhe.

E “ela: Lampião tinha exatamente o seu tipo, Roberto”. (Naquela época os meus 1,76m  carregavam  saudosos e inesquecíveis 74 quilos). “Ele falava muito pouco. A sua voz não era grossa e grave, como a sua aparência sugeria. Meio fina e fanhosa.  Não ria com facilidade, mas era uma pessoa alegre e se comunicava bem com os que lhe eram próximos. Agora, a grande característica era o seu poder de liderar. As pessoas, ao vê-lo, parece que diminuíam de tamanho e  ele  era uma espécie de pai. Imprimia um respeito  indiscutível. Só para você ter uma ideia, Maria, sua mulher, não fumava na sua presença”. Escondia o cigarro tão logo sentia a sua aproximação, tal qual  uma criança diante do velho pai”.

“E Maria Bonita,  Sila”? Como era? Era bonita mesmo, como sugere o nome? “ Olhe Roberto, você não sabe esse tipo de sertaneja  quase baixinha, da bunda batida? Pois ela  era assim. Era apenas engraçadinha. Igual a milhares de caboclas que habitam esse sertão. Não tinha nada de fora-do-comum, como se apregoa.  Tem mais: esse nome de Maria Bonita nunca existiu. Foi um apelido dado pela policia e a imprensa, que se espalhou, mas que nunca chegou aos bandos. Ela era conhecida como Maria, simplesmente, ou Dona Maria de Lampião, como chamavam os seus comandados. Ela era uma pessoa simpática, me dava muitos  conselhos sobre as coisas da vida, e lamentava muito a vida de aperreios e perigos que vivia. Chegou a me dizer que eu não devia ter entrado para a vida do cangaço. Aqui  pra nós, vez por outra ela também fazia uma fofoquinha. Mas nada que lhe tirasse a grandeza e abalasse a amizade que passei a ter por ela. Chorei muito a sua morte violenta e covarde, pois foi degolada viva, pedindo pelo amor de Deus para não  lhe matarem.”

Já morando em João Pessoa, um dia recebo um seu telefonema informando que passava na cidade seguindo para Mossoró, onde no dia posterior  iria participar de um evento, a convite do governo do R.G. do Norte.  Convidei-a e ela terminou pernoitando em minha casa, na companhia da esposa do cineasta e jornalista pernambucano Fernando Spencer. À tarde saímos, mostrei-lhe o farol do Cabo Branco, as lindas praias  paraibanas, jantamos na praia do Poço e por fim fui cobrado por ela sobre uma festa de forró que eu lhe havia prometido há tempos atrás, na minha propriedade do Carirí  paraibano  em sua homenagem. “Sila, disse-lhe eu: Pode marcar a data para o mês de junho, quando você estiver disponível. Só quero que me ligue uma semana antes, que eu vou providenciar tudo.  Pode estar certa”.

Quando o carro que a levaria a Mossoró chegou, arrumamos a sua bagagem, nos despedimos, o carro deu partida e, cerca de 30 metros  adiante, parou. Ela abriu a porta traseira e me chamou.  Imaginei que houvera esquecido alguma coisa e parara para reaver. Na verdade ela queria apenas falar comigo para me lembrar: “Olhe Roberto, não se esqueça de fazer um forrozinho bem pé-de-serra, na sua fazenda  como você me prometeu.   Bem  pé-de-serra mesmo, viu? Do jeito  que eu gosto”. “Fique tranquila, Sila, disse-lhe.  Vou tratar disso”. 

Sila então  deu-me um aceno pela  janela do carro e sumiu na estrada.

Não a vi  mais.

Sila morreu no dia  14 de abril de 2005. 

Fonte: 
http://cgretalhos.blogspot.com.br/2013/07/reminiscencias-bem-ali-morreu-lampiao.html#.VFuIPvnF9rY 

http://blogdomendesemendes.blogspot.com   

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