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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

“O GLOBO” – 07/11/1958 - PARTE IV

Acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

ASSIM FALOU VOLTA SECA... - COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

O AMOR DE LAMPIÃO

Quando as Mulheres Invadem o Bando – Maria Bonita Era Uma Mulher Destemida – Orgulho Dos Pais Quando a Filha Abandonou o Marido Para Seguir Lampião – Todos, no Bando, Tinham Motivos Para Ingressar no Cangaço.

QUANDO ingressei no bando de Lampião, ele era composto de oito homens. Todavia, pouco depois, ficou reduzido a sete, pois Mergulhão foi morto em Abóbora, no interior da Bahia. O bando estava bem reduzido, diferente dos primeiros anos (que não alcancei), quando, segundo o próprio Lampião, chegou a ter um efetivo de duzentos homens. Foi nessa época que tentaram tomar conta de Mossoró, cidade grande demais para as ambições do Capitão Virgulino. O resultado é que o povo todo veio para a rua e rechaçou a bala os cangaceiros, numa luta terrível que, durante muito tempo, foi comentada pelos “cabras”. Depois que ingressei no bando, porém, nunca mais Lampião conseguiu reunir tanta gente, pois, na melhor fase, atingimos ao máximo de 95 “cabras”.

E assim mesmo esse grupo foi reunido em andanças pela Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia, este último o Estado por onde mais andei com o bando. Andei muito, mesmo. Nossa vida era dura, fugindo das estradas e de certas fazendas, mas procurando sempre ficar próximo dos “caldeirões”, pois aí havia água para nos abastecermos. Dormíamos em barracas e sempre vestidos, equipados da cabeça aos pés, pois nunca se sabia como seria o despertar, se com a luz do sol ou com o pipocar das balas da volante.

O equipamento era o que havia de mais útil para nós. Todos usávamos roupa mescla, com alpercata ferrada, chapéu de couro, cinturões de balas cruzados, punhal, facão, cantil do exército, cabaça para guardar água, parabélum ou revólver e mosquetão 1908. No cantil nunca levávamos água, pois as cabaças conservavam melhor o líquido, e, numa temperatura agradável de beber. No cantil levávamos conhaque, que, na falta de água, alivia a sede. No bornal, a maioria levava cachaça, carne de sol, farinha etc. Quase todos bebiam bem, inclusive Lampião, que não recusava “trago”.

MULHERES NO BANDO

O bando era disciplinado, e Lampião, um chefe enérgico que não gostava de repetir ordens. Antes de eu ingressar no bando, nunca houve mulheres, mas depois várias andaram em nossa companhia seguindo seus homens. Lampião não se importava com isso, mas a ninguém era dado o direito de ter mais do que uma mulher. E apesar de nossa vida dura pelo solo ingrato e seco do nordeste, das caminhadas exaustivas, pelas caatingas, as mulheres nos seguiam sem desânimo, ora a cavalo, ora a pé ou em marcha forçada.

Tínhamos, também, cachorros a serviço do bando e que, como nós, adaptavam-se àquela vida de fora da lei. Eram cachorros notáveis, inteligentíssimos e não falavam porque Deus não queria. Farejavam gente a grande distância e sabiam distinguir um “macaco” de um tropeiro. Se pressentissem uma tropa da volante, rosnavam e acocoravam-se e, inquietos, chegavam a ganir. Sabiam seguir uma pista com precisão de pasmar. Eram amigos de todos nós, compreendendo-nos e estimando-nos, obedecendo ordens de todos. Só se revelavam “cangaceiros” ao verem um cachorro estranho. Aí então se transformavam e, enfurecidos, estraçalhavam o pobre animal, cuja única culpa era não os conhecer...

A mulher mais importante do bando, como não poderia deixar de ser, foi Maria Bonita, a amante de Lampião. Sua popularidade em todo o Brasil é enorme, superior à de muitos “cabras” que teriam, a meu ver, histórias mais interessantes para narrar. Mas Maria Bonita tornou-se uma figura curiosa e, sendo assim, vou contar como ela ingressou no bando, tomando de assalto o coração do nosso chefe.

Maria Bonita chamava-se Maria Deia, era filha de José Filipe e uma senhora de quem eu só me lembro se chamar Deia. Seu pai era o dono da fazenda de Malhada da Caiçara, na Bahia, e, além de Maria Bonita, tinha mais dois filhos, uma menina que conheci com quatorze anos, cujo nome era Antônia, e um menino bem mais moço, chamado José Bueno. Maria Bonita era a mais velha, e quando o bando chegou nessa fazenda, ela já era casada e morava pouco distante dali, em Santa Brígida, no município de Jeremoabo. Era casado com um homem pacato, sapateiro, conhecido por José de Neném. Como do município à fazenda a distância era pequena, seguidamente Maria Bonita vinha ver os pais.

Quando chegamos em Malhada da Caiçara, Maria Bonita esta fora, em casa, e apesar de quase todos os dias visitar os pais, levou três dias sem aparecer. O bando foi muito bem recebido por todos, e o nome de Lampião ali não era pronunciado com medo, mas, sim com respeito e admiração. Como Lampião gostava disso, tudo correu bem e passamos na fazenda como se estivéssemos em casa. Eu me dei bem com os irmãos de Maria Bonita e estava sempre com eles passeando e conversando.

A CONVERSA DE D. DEIA

Com Lampião a coisa era diferente. D. Deia, sempre amável, começou a contar certas coisas ao Capitão Virgulino, que ficou intrigado. Disse-lhe que tinha uma filha que o adorava e a todo instante falava em seu nome. Gostava de ouvir histórias do bando e vibrava com as façanhas do seu chefe. Lampião era um Deus para a menina. Casara-se com um sapateiro, é verdade, mas seu coração era de Lampião. “Ela, porém, não me conhece”, observou Lampião. E dona Deia confirmou, mas era um amor desses inexplicáveis, “coisa feita”, pois não é admissível gostar sem conhecer. E, no entanto, Maria Bonita o “adorava”. E ela é bonita mesmo? quis saber Lampião. A mãe então disse que o apelido de Maria deia estava bem justo, pois era a cabocla mais bonita da localidade. Lampião quis saber a idade de Maria Bonita e ficou sério ao saber que poderia ser seu pai.

Dona Deia parecia disposta a estragar o lar da filha e unir sua família ao “Rei do Cangaço”, pois perguntou-lhe: “Quer que eu a mande chamar para conhecê-lo?” Lampião estranhou e rápido respondeu: “Nem a chame, nem diga a ninguém que estou aqui. Deixe ela lá com o marido, que deve estar bem”. E afastou-se. Estava, porém, curioso. Tão curioso, que, quando a velha voltou à carga, não se zangou. No dia seguinte talvez estivesse ansioso, esperando que ela chegasse de repente. Mas a moça não chegou.

Só no outro dia Maria Bonita apareceu e, quando deu com o bando, ficou surpresa. Era uma morena de pequena estatura, cheinha de corpo, cabelos lisos e compridos, castanho-escuro, e uma bela dentadura. Era, de fato, uma cabocla bonita, e eu até hoje não vi um retrato dela que lhe fizesse justiça. Quando ela viu Lampião, parecia ter ficado abobalhada, como quem vê um fantasma. E ele não deve ter-se sentido lá muito bem, pois ambos se entreolharam algum tempo antes de apertarem as mãos. Lampião era alto, ela bem pequena, não alcançando seu ombro, mas tenho a impressão de que um se julgou feito para o outro naquele momento¹

NAMORO DE CABOCLOS

O amor dos dois foi uma coisa séria. O bando demorou-se mais tempo na fazenda do que estava planejado. Vários dias se passaram e Lampião e Maria Bonita, bem em frente a casa, num respeito digno dos namoros provincianos, conversavam. O que falavam, não sei, mas o que transpirou mais tarde, contado por ambos, era que, desde o primeiro momento, Maria Bonita manifestou estar entediada do marido. Mas todos os dias ela voltava para casa, à tardinha, regressando pela manhã do dia seguinte. Deve ter dado qualquer desculpa ao marido e ele, com seu temperamento bom, aceitou, pois nunca apareceu na fazenda, e creio mesmo que Lampião jamais o conheceu.

À medida que os dias corriam, mais se fortalecia o namoro. Eles andavam sempre juntos, e o bando conheceu naquela época um Lampião diferente e menos bruto. Era um Lampião a apaixonado. A mãe de Maria Bonita exultava por ver a filha namorando Lampião, e o pai não escondia um certo orgulho.

Mas tudo não passava de um idílio, passeios de mãos dadas.

O caso só se resolveu mesmo quando Lampião marcou o dia da partida. Aí Maria Bonita fez pé firme em seguir o amado a todo custo. De nada adiantava Lampião dizer com seu espírito prático: “Menina, a minha vida é de perigo e sem futuro. Vivo brigando com os “macacos” e trocando bala a toda hora, você tem um marido e isso é bem melhor do que o que eu posso oferecer. Ao meu lado você só vai encontrar o perigo ou a morte”.

Maria Bonita respondia: “Não quero mais viver com meu marido. Se tenho que morrer amanhã, morro hoje ao teu lado”. E assim Lampião resolveu leva-la, mas fez questão de que todos víssemos que ela ia por sua vontade, pois me parecia que ele receava ser tomado como “sedutor”.

Quando saímos de Malhada da Caiçara, o bando levava um componente a mais: Maria Bonita. E nossa partida foi triste, pois os pais de Maria choravam, apesar de satisfeitos por terem ganho mais um “filho”... Só dois meses depois, talvez para que ninguém soubesse que o bando estivera por aquelas paragens, Lampião mandou uma carta, por intermédio do irmão de Maria Bonita, ao marido dela. A carte foi lida em voz alta antes de ser remetida e eu ainda me lembro de que pedia desculpas ao José de Neném por lhe ter levado a mulher, mas justificativa explicando que fora ela quem quisera...

Tenho a impressão até hoje de que, como o marido de Maria Bonita era bom, educado e conformado, deve ter compreendido o Capitão Virgulino e até lhe perdoado. Quem sabe lá...

MULHER DECIDIDA

Aquele amor foi profundo e teve a duração da vida de ambos, pois encontraram a morte no mesmo dia e por intermédio das balas da volante. Maria Bonita era uma mulher decidida e que sabia muito bem o que queria. Logo aprendeu a atirar e, embora não tivesse temperamento violento, não era covarde. Tomar atitudes de força não era para ela, porém não tremia na hora da refrega e enfrentava a situação com serenidade. Não atirava nunca, embora soubesse fazê-lo razoavelmente. Ela era o meio termo entre o gênio terrível de Lampião e os demais cangaceiros. Muitas vezes ela conseguia contornar um incidente, ainda que Lampião não fosse homem de dar ouvidos a ninguém, quando zangado. Mas pelo menos adiou certas situações, conforme veremos mais tarde. A união de Lampião com Maria Bonita produziu dois filhos que, se não me engano, ainda estão vivos. Foram o fruto de um amor de cangaço.

As duas mulheres que passaram pelo bando não eram do tipo de Maria Bonita, ainda que algumas fossem valentes, mas as demais eram apenas mulheres, nada mais... Várias cangaceiros viviam acompanhados de suas amantes e, em vários ocasiões, alguns resolveram deixar o bando para formarem um bando para formarem um bando próprio. Elas os seguiram, e várias encontram a morte junto ao amado. Uma, a mulher de José Baiano, teve fim nas mãos dele mesmo, que foi um dos homens maios violentos que eu já conheci. José Baiano era preto, e a mulher, branca e muito bonita. Por incrível que pareça, o ciúme dela era terrível e foi isso que decretou o seu fim.

A vida do bando, fora da luta, era alegre, e todos gostávamos de comer bem e cantar. Toda a ferocidade dos “cabras” acabava nalguma canção nordestina e, mesmo os mais cruéis, sempre aderiam à cantoria. José Baiano, que, como disse, era um demônio, cantava muito bem e ensinou-me inúmeras músicas. Muitas delas vim encontrar no Rio de Janeiro, assinadas por compositores de nome, que mudaram um pouquinho a letra ou a música e ganharam bom dinheiro à custa do que não produziram.

Todos cantavam, até Lampião. Havia mesmo quem cantasse nas horas bravas de tiroteio com a volante, numa prova de que a música era um complemento do cangaceiro. Eu tive oportunidade de gravar recentemente um “long-play” com oito músicas que eram bastante cantadas por nós. Infelizmente, apesar do sucesso que a gravação alcançou, chegou às minhas mãos pouco dinheiro, pois esse negócio de direito autoral, no Brasil, é muito pior do que cangaço...

TODOS TINHAM MOTIVO

Eu, como já disse anteriormente, em poucos meses já estava familiarizado com o bando. Tornei-me um cangaceiro, um bruto, um desajustado, um filho da miséria, a serviço da ignorância e do crime. Entendia muito bem aquela gente e eles também me entendiam. Com o tempo percebi que todos tinham um motivo forte para ter ingressado no cangaço e gostavam de conta-lo. Entre nós não havia um que gostasse de ser cangaceiro, levar aquela vida desagradável, sempre sem saber se veria o dia seguinte. Éramos criminosos, sim, mas lamentávamos ter chegado àquela situação. Eu, de todos, era o que não encontrava de cinturões cruzados e odiando a lei. Mas hoje em dia vejo que eu era o mais infeliz de todos e com o motivo mais justo para me ter tornado cangaceiro. Todos ali chegaram pelo ódio; eu cheguei pela inocência, pois aos onze anos o quê pode uma criança pensar? Se nessa idade é que os pais procuram orientar os filhos para a vida, eu munido do analfabetismo e da inocência, ingressei no crime.

Do próximo capítulo em diante contarei, uma por uma, a vida dos “cabras” que mais me impressionaram no bando, iniciando por Lampião. São vidas terríveis, que hão de estarrecer os leitores. E a minha? A minha é a de todos eles... Talvez eu fosse pior do que eles, ou melhor, mas, de qualquer forma, eles foram meus mestres, os professores que eu, aos onze anos, tive, quando ingressei na escola do cangaço.

CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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