Por Juliana Pereira
Como diz o
advogado e historiador Victor Nunes Leal, sem sua obra “Coronelismo, Enxada e
Voto”, os coronéis foram senhores do bem e do mal. Não poderia ser diferente,
posto que suas patentes lhes foram conferidas em uma época em que o voto era
censitário. Em sendo assim, o sufrágio era uma prerrogativa das elites
dominantes. Patente de coronel autorizava lhes inclusive, formar tropas
provisórias em caso de conflito e esta prerrogativa foi mais um instrumento
hostilizador nas mãos daqueles que usavam o poder como forma de subjugação dos
menos favorecidos. Durante o período da república velha de 1889 a 1930 foi
criada uma política sui generis, a famosa “política dos governadores”, dando
margem à máxima do que “é dando que se recebe”.
Cangaceiro de Jô Fernandes
Este sistema
político tinha seu esteio numa relação de favores que se estendia das relações
entre o Presidente da República e os governadores e destes aos coronéis, que
por sua vez, exerciam seus poderes sobre os trabalhadores rurais. Vale
ressaltar, que estes trabalhadores rurais podiam contar com nenhuma legislação
que os defendessem, sendo a parte fraca dessa cadeia vertical de mandos e desmandos,
onde não lhes era permitido nenhum tipo de reivindicação, seja de natureza
política ou de natureza econômica. Ainda hoje perdura em nosso sistema
sociopolítico o ranço daquele coronelismo da República Velha, o mandonismo, o
nepotismo e as diversas formas de apadrinhamentos continuam como se nada
tivesse mudado ou evoluído. Em síntese, mudaram as peças, o jogo é o mesmo.
Juliana Pereira e Alcino Alves Costa
O voto ainda
funciona como moeda de troca, assim como os cargos públicos, isso em todas as
esferas. O Estado continua favorecendo alguns em detrimento de muitos,
perpetuando-se a mesmice. Não é preciso muito esforço para perceber as ações
dos novos coronéis, os que hoje habitam no meio urbano. Ora, todos nós sabemos
que a indicação para um cargo público na esfera local depende e implica no
apoio dado aos vencedores nas campanhas eleitorais, sejam prefeitos ou
vereadores, assim como o saneamento básico, instalações de energia em distritos
e as melhorias nas rodovias estaduais não acontecerá sem o aval do deputado, do
governador. Cargos federais que não necessitam de concurso é inimaginável sem a
indicação de deputados federais e ou senadores.
O ciclo do mandonismo,
favorecimentos e apadrinhamento, continua regendo de forma orquestrada sobre as
muitas vidas desfavorecidas e necessitadas nos quatro quantos do país. A
história do Brasil é repleta de fenômenos sociais de alta complexidade, com
revoltas, insurreições ou complôs locais ocorrendo em todas as regiões do país.
Na República Velha não foi diferente e no nordeste, fenômenos sociais como
Guerra de Canudos e Cangaceirismo, contemporâneos do sistema político
coronelista, são objetos de pesquisa de muitos pesquisadores e
estudiosos.
O
cangaceirismo manteve uma relação estreita com o coronelismo, principalmente no
período em que teve Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, como líder de bando
cangaceiro. Lampião, o mais imponente dos líderes do cangaço, ainda hoje
provoca muitas discussões e inquietações entre os que lhe estudam, herói para
alguns, bandido para outros. O fato é que, se nos afastarmos dos conceitos
engessados por parte da historiografia, donde o fanatismo, admiração ou mesmo
um viés mercadológico, poderemos analisá-lo tendo como premissa o contexto
social e político no qual viviam estes bandoleiros de forma mais científica e
ou imparcial. Mesmo em se tratando de uma realidade sociocultural e política
diferente da que vivemos, é possível tal analise, desde que façamos o esforço
de nos despirmos de conceitos e preconceitos.
O cangaço não
se divorcia do contexto político vigente em sua época, muito pelo contrário,
posto que estes indivíduos também se beneficiavam deste sistema político para
satisfazer seus anseios. Se para alguns pesquisadores os cangaceiros eram
justiceiros, do tipo Robin Hood, claro, guardando as devidas proporções, o
Hobin Hood histórico, buscava resgatar a cidadania e a autonomia de seu povo,
já os cangaceiros se vingavam e desmoralizavam chefes políticos, mostrando-se
subversivos ao regime imposto aos seus protegidos. Porém, esta teoria cai em
descrédito diante da selvageria e da violência, não só contra os donos do
poder, mas todo e qualquer indivíduo que se opusesse aos seus desmandos, fossem
sertanejos miseráveis ou donos de pequenas propriedades rurais.
Não era
incomum alianças destes asseclas criminosos com coronéis. O fato é que,
independia do poder ou da falta de poder por parte dos sertanejos, os
cangaceiros protegiam uns e massacravam outros. A moeda de troca era a
confiança em lhes dar coito e ou omitir informações destes para as volantes que
viviam em seu encalço. Outra teoria defendida por seus pesquisadores se acosta
ao fator vingança. Seria este o motivo pelo qual muitos entravam para o cangaço
ou permanecia naquela vida nômade e insegura, expostos aos mais diversos tipos
de adversidades climáticas e geográficas? Porém, esta teoria também apresenta suas
lacunas e falhas no que concerne às ações e atuações, nas práticas dos mais
variados crimes, de assassinatos desmotivados a estupros e demais humilhações
gratuitas aos sertanejos desprovidos de proteção.
Mesmo depois
de efetivadas tais vinganças “motivadoras de suas causas”, as represálias não
cessavam o que descredibiliza a assertiva defendida por esta teoria. As
alianças seladas na calada da noite eram alicerçadas nos interesses
particulares e em comum, todos imbuídos do desejo de satisfazer suas necessidades.
Nesta via de duas mãos, um protegia o outro. A vida nômade, o conhecimento
geográfico e a facilidade de se deslocar na caatinga lhes favorecia em relação
aos seus perseguidores. Sertanejos que moravam em fazendas ou povoados viviam
em constantes sobressaltos.
Getúlio Vargas
e o Estado Novo
As
agressividades e todas as formas de violência empregadas tanto pelos
cangaceiros quanto pelo o Estado representado pela volante, eram desmedidas,
ninguém vivia em segurança e o medo de terem suas vidas ceifadas por uma das
“facções”, reinava absoluto. Não se podia medir quem era mais violento, se os
ditos “bandidos” ou os que deveriam protegê-los oferecendo-lhes segurança e
conforto. Uma vez alcançado, o status de valentes e temidos deveria ser mantido
a todo custo, mesmo que o preço fosse o sangue das inúmeras vidas ceifadas
sertão a fora. Assim, a política do medo assolava boa parte do nordeste,
enquanto o banditismo social se impunha e se beneficiava sobre as fragilidades
de um povo sem proteção e esquecido pelos governantes.
O
cangaceirismo foi um fenômeno social tão complexo, que estudá-lo com o objetivo
de rotular seus participantes como heróis ou bandidos, será incorrer em um erro
crasso. Podemos até admitir traços de heroísmo quando estes se opunham aos
desmandos do inimigo, mesmo este sendo poderoso como o Estado, que além se
persegui-los causavam dores e sofrimentos às camadas mais miseráveis, assim
como percebemos também os traços criminosos, estes mais delineados e
acentuados, quando das práticas de assaltos, estupros, assassinatos, castrações,
humilhações e demais formas de violência que se possa praticar contra outro ser
humano.
Estigmatizá-los
ou vangloriá-los com certeza não será o caminho mais propício para uma análise
mais honesta deste fato histórico. Se o objetivo de alguns pesquisadores é
encontrar os heróis deste período, com certeza estão buscando de forma
equivocada, pois se houve heroísmo neste contexto, sem sombra de dúvidas não
foram os que causaram o sofrimento, mas as vítimas destes. Foram os homens e
mulheres perseguidos, assassinados, subjugados, vilipendiados e massacrados
pela medição de força entre Estado e Cangaceiros.
Juliana
Pereira, Manoel Severo, Cristina Amaral e Ana Lúcia no Cariri Cangaço Princesa
O fim do República
Velha e nascimento do Estado Novo, trouxe consigo mudanças nas relações
políticas onde o Estado, com o intuito de mostrar-se mais sério, eficaz e
eficiente, intensifica a perseguição aos cangaceiros, bem como aos seus
aliados, os coronéis. A elite oligárquica, representada pelos getulistas, não
aceita nenhuma forma de oposição ao poder estatal. Acostumados ao sistema
político da troca de interesses, tanto os cangaceiros quanto os coronéis foram
atingidos pelo novo sistema implantado pelo o Estado Novo.
Tanto um
quanto o outro foram enfraquecidos pela estrutura arrojada e determinada dos
novos governantes, os novos donos do poder. Tanto o apogeu quanto o declínio do
coronelismo ocorreram concomitante ao também apogeu e declínio do cangaço.
Ambos tiveram interesses em comum, assim como tiveram como causa de erradicação
o mesmo algoz, o Estado. Claro, o fim do coronelismo rural não significa o fim
das práticas coronelistas, estas perduram ao longo do tempo e podem se sentir
ainda nos dias atuais. Em síntese, não podemos omitir ao menos o fato de que
fazemos parte de um país que, mesmo tendo evoluído em algumas, áreas ainda
somos uma nação atrasada, carente de heróis, que fecha os olhos diante dos
absurdos impostos pelos governantes nas diversas esferas. Preferimos uma
posição mais cômoda, ser livres, contestadores e reivindicadores dos direitos
conferidos pela constituição é inimaginável, somos naturalmente pacíficos e
passivos, a síndrome de colonizados ainda nos persegue.
Se hoje não
existem mais os coronéis de patentes figurativas, conferidas pelo Estado, temos
nossos políticos, empresários e empregadores que ditam as regras. Se não temos
mais cangaceiros de bornal espalhados pelas caatingas, assolando os sertões com
suas ações criminosas, hoje temos traficantes e quadrilhas espalhando as mais
diversas formas de miséria e degradação humana, das drogas oferecidas nas
portas das escolas ao poder paralelo ao do Estado. Não podemos esquecer o
tráfico de influências perverso. Infelizmente esta carência de heróis naturais
nos leva a forjá-los.
" escrevi
este texto a pedido de Alcino, que uma vez me indagou sobre o que eu pensava
sobre a relação entre cangaceiros e coronéis..."
Tratamos
jogadores de futebol milionários como deuses, heróis nacionais. Endeusamos
políticos, artistas e esportistas. Enquanto isso, professores e demais
trabalhadores vivem com salários miseráveis, e são desrespeitados todos os
dias, milhares de mães e pais sofrem dores na alma ao verem seus filhos
passarem as mais diversas privações. Milhares de idosos que trabalharam a vida
toda vivem de forma miserável em todo país. Estes não são nossos heróis, são
apenas indigentes.
Juliana
Pereira, advogada, pesquisadora
Membro do
Conselho do Cariri Cangaço
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2015/06/coroneis-e-cangaceiros-porjuliana.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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