Espedito
Seleiro, 74 anos, transformou as sandálias de Lampião e Maria Bonita em
acessórios queridinhos da moda brasileira.
TALITA BEDINELLI Nova
Olinda (CE) 10 MAY 2014
O artesão
Espedito Velozo de Carvalho, 74 anos, cresceu ouvindo uma história curiosa do
pai, um vaqueiro de Inhamuns, sertão cearense, conhecido pelas selas, chapéus e
gibões de couro que costurava. Certa noite, ele trabalhava sob um alpendre
iluminado por uma lamparina quando um “cabra” surgiu da escuridão e disse:
- Seu
Raimundo, o senhor faz umas selas tão bonitas. Se eu trouxer o modelo de uma
alpercata (sandália), o senhor faz?
- Rapaz, eu
não sou bom nisso não, respondeu ele, tentando fugir do pedido.
O visitante
misterioso insistiu um pouco mais. Tirou do bolso um papel todo “escangalhado”
e mostrou. Era o modelo de uma sandália de solado quadrado, do tipo que quando
a pegada fica no chão não dá pra saber para qual lado a pessoa vai. Pediu que
fosse feito no número 39 e, diante da concordância um tanto atônita de seu
Raimundo, disse que voltaria depois de 29 dias para buscar o calçado.
O pai de
Espedito começou, então, a trabalhar. No prazo marcado, o visitante chegou e,
contente com o resultado, encomendou novas mercadorias. Antes de ir embora,
perguntou se seu Raimundo sabia para quem era a sandália:
- Rapaz, é pra
você mesmo. Foi você quem me pediu.
- Pois não é
não. É para o coronel Virgulino.
A descoberta
de que a encomenda era para Lampião, o temido rei do cangaço, deixou seu
Raimundo apavorado. Tão apavorado que ele nem cobrou pelo serviço. “Meu pai foi
se tremendo todo. Ficou até com vontade de fechar as portas e correr. Naquele
tempo, todo mundo tinha medo de encontrar com Lampião”, diverte-se Espedito.
A família, unida em uma associação com quase 30 pessoas,
que formam o corpo de funcionários, produz, entre 200 e 300 pares de sandálias
por mês.
Ele tinha
apenas oito anos quando ouvia o pai contar o relato na oficina, agora na cidade
de Nova Olinda, também no Ceará, onde a família vive até hoje. Muitos anos
depois, o relato voltaria de sua lembrança, marcado pela chegada de uma mudança
radical na vida de toda a família.
O artesão é
herdeiro de uma longa linhagem de costureiros de selas de montar iniciada pelo
bisavô, que pelo trabalho ficou conhecido como Antônio Seleiro,
“sobrenome” que passaria adiante para o filho, Gonçalves Seleiro, e para o
neto, Raimundo Seleiro, pai de Espedito Seleiro.
Seu Raimundo
morreu em 1971 e, aos 31 anos, o primogênito se viu, de uma hora para outra,
responsável pelo sustento dos irmãos, todos bem mais novos, e dos próprios
filhos. Naquela época, a família só fabricava as peças para os vaqueiros e, a
cada ano, as vendas diminuíam, afetadas pelo fim da tradição da profissão.
Até que um
dia, no início da década de 1980, Alemberg Quindins, diretor da Fundação
Casagrande, uma premiada organização educativa de Nova Olinda que capacita
crianças da região, entrou na oficina com um desafio. Trazia nas mãos uma
sandália que foi usada por Lampião e estava em exposição, ao lado de outras
peças sobre o cangaço, na Fundação. Perguntou, então, se Espedito conseguia
reproduzir o modelo, mas com detalhes, um tipo de rococónordestino que ele
já fazia nos gibões e nas selas.
Detalhes dos
trabalhos feitos pelo artesão, com uma espécie de "rococó
nordestino". / TONI PIRES
O artesão se
lembrou, então, da história contada pelo pai e, mesmo nunca tendo feito
sandálias antes, topou. “Fiz uma bem mais bonita porque sou mais caprichoso”,
brinca. O solado era normal, sem o formato quadrado que dificulta o andar.
Alemberg gostou e Espedito viu a oportunidade de um novo negócio. Passou a
produzir as sandálias de Lampião. A situação financeira melhorou, mas as vendas
não decolaram porque sandálias de couro cru já existiam aos montes no mercado.
“Eu chegava nas lojas e o povo dizia: ‘Já tenho. Só quero se for bem
baratinha’. Eu me obrigava a vender porque precisava, mas não compensava nada,
era uma mixaria. ”
Desgostoso com
o trabalho, mas sem querer desistir, ele resolveu que não venderia mais peças
iguais as dos outros. Foi dormir pensando. Levantou às 4h do dia seguinte,
começou a desenhar e decidiu que dali em diante só faria sandálias coloridas.
Costurou, então, um monte de sapatos e levou para uma “loja bonita, grande”, de
Juazeiro do Norte, cidade vizinha a Nova Olinda. Chegou e disse:
- Seu Pedro,
trouxe doze pares de sapato para você comprar.
O dono da loja
nem abriu a caixa e recusou a oferta.
- Aqui tá tudo
cheio de sapato. Não vou comprar, não.
Espedito
insistiu:
- Mas, homem,
tem um monte de sapato, mas nenhum é igual ao meu.
Seu Pedro
olhou meio por cima e, com um certo descaso, disse para ele deixar a caixa num
canto, que se vendesse alguma coisa daria o dinheiro para o seleiro. “Era um
dia de segunda-feira. Deixei a caixa de sapato lá e peguei um, que estava no
capricho mesmo, e botei na tampa. Combinei de voltar na outra segunda-feira
para ver se tinha vendido e, se não, pegar os sapatos de volta. Fui embora
desgostoso porque chegar em casa sem dinheiro é ruim, né?, lembra ele.
Durante a
semana, continuou a produção dos pares coloridos com o que restou do couro que
tinha. Até que na segunda-feira, voltou na loja.
- Pronto, seu
Pedro, vim buscar meu sapato.
- Não, rapaz,
pois eu vendi foi tudo. E quero mais 50 pares, respondeu o comerciante.
Com a pequena
oficina, ele não conseguiu atender o pedido, mas foi vendendo para seu Pedro as
que conseguia fazer. Foi nesse período que as sandálias multicoloridas de
Lampião começaram a fazer sucesso.
Alemberg também ajudou a promover o produto,
calçando os sapatos em entrevistas para a televisão. Artistas começaram a
procurar os calçados e Espedito resolveu diversificar: começou a produzir
sandálias da Maria Bonita, um modelo mais delicado em homenagem à mulher do rei
do cangaço, bolsas, carteiras, cintos, botas, cadeiras, molduras para espelhos
e até luminárias, tudo no couro colorido vivo que virou a marca registrada do
seleiro.
A família,
unida em uma associação com 22 pessoas que formam o corpo de funcionários,
produz entre 200 e 300 pares de sandálias por mês.
Em 2006, ele
foi convidado para fazer os calçados que a grife Cavalera usou no desfile de verão da São Paulo Fashion
Week e causou burburinho no mundo da moda. Virou queridinho também
entre os figurinistas de novelas e filmes, onde se tornou referência quando se
retrata o cangaço. Às vezes, um ou outro artista famoso aparece de surpresa na
oficina e a loja que ele abriu do outro lado da rua para organizar as vendas
virou parada obrigatória dos guias turísticos da região, que trazem carros
cheios, inclusive com estrangeiros.
O sucesso, no
entanto, não o deslumbra. Apesar das reiteradas propostas que recebeu para
montar uma fábrica de sapatos, ele não quer abandonar a manufatura. Muito menos
Nova Olinda. No próximo mês de outubro, Espedito inaugurará em um anexo da
oficina o Museu do Couro, que contará a história dos vaqueiros, da cultura
nordestina e das peças usadas na região, incluindo a primeira sandália feita
para Alemberg e a máquina de costura manual, que era do avó dele, onde o pai
teria feito a peça para Lampião.
“O que eu acho
bom na vida é isso aqui. É por isso que eu tenho 74 anos, mas só tenho mesmo é
18. Porque eu só faço o que eu gosto. Se der para eu ganhar 1.000 reais eu
ganho. Se não der, eu ganho 100. Eu quero ficar do jeito que eu comecei. A vida
só é boa quando você se conforma com ela.”
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/05/10/cultura/1399735027_219605.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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