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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

LAMPIÃO: EXPRESSÃO DO MAL, DA DOR E TAMBÉM DA ALEGRIA

Por Raul Meneleu Mascarenhas
Lampião ainda jovem

O aspecto físico de Lampião durante os vinte anos passados no cangaço evoluiu consideravelmente.


Tentarei aqui, através de fotografias, retiradas de sites da internet fazer uma reconstituição de seu aspecto físico que sofreu modificações, talvez o deixando em determinadas ocasiões de rosto desfigurado tanto pela dor quanto pelo ódio, mas não temos fotos dessas ocasiões. Apenas das alegrias. Cito Elise Grunspan-Jasmin quando diz das narrativas de "sertanejos que o conheceram e testemunharam muito mais do que as fotografias, que mais ocultam do que mostram feridas e deformidades; essas imagens o apresentam sempre em sua integridade física, no auge do poder."

Vemos através dos livros que fotografias não mostram com perfeição o que está dentro dele pois Lampião ao tirar fotografias, fazia poses e modificava sua fisionomia através de um marketing pessoal que impunha aos fotógrafos, para que só tirassem as fotos com sua permissão. O aspecto físico de Lampião podemos constatar melhor através das narrações dos sertanejos que o conheceram como se diz, cara-a-cara. 

Como contraponto a uma ornamentação cada vez mais visível, o corpo de Lampião se transforma à medida que sofre injustiças, sofrimentos e de lutos. Os jornais da época, apenas evocavam a monstruosidade de Lampião e sua insensibilidade à dor alheia, excluindo-o assim da sociedade dos homens e tornando-o um demônio que infligia sofrimentos morais e físicos aos sertanejos.

Algumas narrativas posteriores à morte de Lampião põem em relevo uma afetividade que se expressaria em e por seu corpo. A vida de Lampião é uma sucessão de lutos: seu pai é assassinado, todos os irmãos que o acompanharam no cangaço morreram um após outro, o grupo que ele constituiu e que poderia aparentar uma família é desmantelado e ele foge para a Bahia. 

As transformações do rosto de Lampião começam a surgir principalmente com a morte de seus irmãos. Logo após essas mortes que se faz referência à transformação de seu corpo, no qual se leem a tristeza e a revolta. Simbolizando o corpo familiar machucado, o corpo de Lampião faz-se metáfora da dor. O escritor sergipano Ranulfo Prata traz uma matéria em seu livro "Lampião" onde ressalta o intenso afeto de Lampião pelos seus irmãos: "Em que pese toda a sua fereza e insensibilidade, tem lá no fundo abismal do ser anômalo, como um pingo de sol num paul, sentimentos fraternais. Amou os irmãos, sendo sempre para com eles de extrema tolerância e benignidade, indo até a quebra da disciplina do bando. Quer, muita vez, castigá-los, porque eles, Antônio, Livino e Ezequiel, são impulsivos e violentos. Mas amolece, fraqueja e não lhes toca." 

Com a morte de seus irmãos e membros de seu bando mais chegados em intimidades, passa Lampião ao mesmo tempo humanizar-se em choros e sofrimentos, fica cada vez mais também mostrando o seu outro eu, feroz e impiedoso. E essa impiedade passou a se fazer notar pelos sertanejos, testemunhas dessas mudanças com a morte de seu irmão mais novo, Ezequiel. Muitos que viveram nesse tempo, conta-nos Elise Grunspan-Jasmin, acreditavam que em seu corpo os estigmas do mal e da crueldade existiam nas "marcas de uma diferença profunda, fazendo dele um ser que escapa às normas humanas." 

Ranulfo Prata ficou fascinado com as mãos de Lampião. Mãos cadavéricas, secas e finas, dotadas de uma vida própria, mãos de assassino que provocavam repulsa e pavor: "O que mais impressiona no seu físico chocante são as mãos. São terrificas, expressivas, revelando um temperamento, uma vida. Extraordinariamente longas, no dorso, sobre um leque de tendões enrijados, dançam-me arabescos escuros de veias turgidas; recobre-lhe as palmas uma crosta áspera e acinzentada como pele de batráquio; os dedos finos, ósseos, compridos, terminados em unhas córneas e pontiagudas, engraecidas como equimoses, ostentam inúmeros anéis, falsos e verdadeiros. Mãos ferozes, convulsivas, astuciosas, brutais e ávidas. Parecem sempre febris, frementes, animadas de estranha vida como se cada músculo e cada nervo estivessem a receber continuamente a excitação de uma agulha elétrica. Mãos que possuem hábitos horrendos, paixões furiosas. Se se elevam no ar, traçam gestos de punhaladas, de estrangulamentos de gorjas."

Ranulfo Prata ressalta também seu cheiro forte e sua animalidade: "Não só ele como todos os cabras têm fortes almíscar, cheiro ativo e acentuado de rancho de cigano. Por onde passam, deixam o ar impregnado por longo tempo. E uma mistura de sujeira de corpos e perfumes de variadas qualidades, com que ensopam cabelos e lenços. Sátiro, dominado sempre de super-sexualismo, denunciador do desequilíbrio somático evidente, tem uma amante famosa, que o acompanha, Maria Déa, de 20 e poucos anos, cabocla simpática de cabelos negros..."

Com essas transformações Lampião fornece aos jornais da época uma imagem que não foi encontrada pelo Benjamin Abrahão Botto, a de "uma besta-fera, meio homem meio animal, barbas e cabelos crescidos até quase o meio das costas, interna-se nas caatingas e ataca as fazendas, incendeia, assassina, desonra e comete as mais inconfessáveis barbaridades." -  artigo do jornal sertanejo A Voz de Pesqueira de 10 de abril de 1937 onde é mostrado claramente o tema da monstruosidade visível.

O sertanejo João Circinato, ex-fazendeiro originário de Vila Bela, que foi sequestrado por Lampião durante algumas horas, descreve-lhe o rosto "onde transparecia seu caráter demoníaco: "De cara que parecia a cara de cão; ele não era feio, mas a cara dele matava todo mundo. [...] E a gente tinha até medo de encarar para ele. Que era a cara de uma serpente, direitinho. Se ele tivesse com raiva era com raiva e se não tivesse, era a mesma cara feia." - Cangaceiros invadem Serra Talhada - Jornal da Cidade 09/11/1947.

Segundo Elise Grunspan-Jasmin, os soldados "também sempre tiveram pavor do aspecto físico de Lampião. Dizem que os autores ou os jornalistas da época insistem no medo dos soldados diante do aspecto inquietante e mesmo demoníaco de Lampião porque eles pertencem ao mundo "arcaico" do sertão, vítimas de todas as superstições. Lampião sabe muito bem quem são seus adversários e quais são as imagens e os aspectos de seu corpo e de sua personalidade que é preciso exibir para atemorizá-los. Segundo seus autores, somente a civilização do litoral, religiosa, mas não supersticiosa, "civilizada" e não "bárbara", tem os meios psicológicos de se apropriar do corpo de Lampião e destruir sua imagem." 

Ranulfo Prata nos diz textualmente que "Como todos os companheiros, traz longos cabelos sobre os ombros, compondo assim, uma máscara que atemoriza os soldados, terror que cresce nos tiroteios com os alaridos que fazem os cabras, relinchando, zurrando, latindo, praguejando, chamando Deus e pelo diabo, a agitar. Furiosos como íncubos, as cabeleiras, e a pular como símios. Os soldados crendeiros, que têm nas almas as mesmas superstições, julgam que estão diante do sobrenatural, empolgando-se de pavor, e quando não debandam contidos pela energia férrea do comandante, tiram o olhar de semelhante espetáculo, e começam a atirar a esmo, sem pontaria, com a cabeça enfiada entre os braços nervosos que empunham a arma sem firmeza. Quando voltam dos encontros confessam, á puridade, sinceramente, que na hora do fogo, os bandoleiros, como se tivessem rolado nos espojadouros das mulas-de-padre, tinham virado demônios." 

O artigo do Diário de Pernambuco de 21 de janeiro de 1932 evoca o medo que inspira a aparência selvagem de Lampião aos soldados das Forças Volantes: "Os que compõem as tropas volantes lançadas nas catingas para combater o banditismo são filhos desta zona calcada por tantas misérias e tantas provações. São homens cheios de superstições e que se apavoram ante qualquer possibilidade de castigo de Deus. Lampeão disso se aproveita. Indivíduos de cor escura, quase preta, mas de cabelos corridos, o bandido não corta os cabelos e deixa-os cair sobre os ombros. A maioria dos seus cabras imitam-no. Nos combates com as tropas, os bandidos soltam gritos terríveis e relincham." 

Realmente podemos notar tanto pelos livros quanto pela imprensa, o forte mito que Lampião e seus cangaceiros, tinham parte com o "tinhoso" e isso ajudava os que não o viram pessoalmente, a formar a imagem de uma "besta-fera" perdida nas caatingas do sertão. De tudo que está escrito, só podemos tirar mesmo o parecer de expressão do mal e da dor de Lampião, através das poucas fotografias que temos dele. 

Abaixo, o filme 14 minutos de Lampião. Esse filme não foi aceito pelas autoridades da época pois traziam imagens de Lampião e seus cangaceiros, felizes e alegres nas caatingas nordestinas, que era seu reino. Essas imagens não poderiam passar para a imprensa e nem cair às mãos do povo.

14 minutos de filme de Lampião

Os jornais da época, em suas matérias tendenciosas, aumentavam e muito as façanhas de Lampião, para torna-lo um pária da sociedade, assim como é feito até hoje com qualquer um que se atreva a ser contra a elite brasileira. As fotos abaixo são do filme 14 minutos de Lampião. Não, o governo de Getúlio não poderia aceitar essas imagens de alegria, de pessoas trajadas com o fardamento limpo e inconfundível do cangaço e Lampião, seu comandante ditando ordens e organizando sua tropa de homens corajosos.

Clique no primeiro link para ver uma boa parte das fotos de Lampião

http://meneleu.blogspot.com.br/2015/08/lampiao-expressao-do-mal-da-dor-e.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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