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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

DIA APÓS DIA

Por Rangel Alves da Costa*

Mesmo cansado da luta do dia, ainda assim bate o pilão, sacode a peneira, despeja o pó numa cuia. Depois aproveita ainda da clareza do dia, se embrenha na mata, cata garrancho, resto de madeira carcomida, junta tudo em feixe, deita nas costas e retorna ao quintal, onde arria tudo ao lado do velho fogão. Depois de guarnecidas suas entranhas, pinga querosene por riba e acende o fósforo. Joga por cima e espera a madeira crepitar. Não demora muito e já se aproxima de abano à mão. Então a labareda vai cantando a primeira canção do já escurecido entardecer.

Sabe que é preciso ter a labareda morta e a brasa viva para assar um pedaço de preá, um naco de toucinho, uma tira de carne ou qualquer coisa mais gorda que reste salgada e estendida num canto do varal. Por cima do braseiro estende a grelha e o que for assar. Vira e revira para não tornar o alimento em carvão e assim perder a mistura do café da noite, parte inseparável da farinha seca. Acaso tenha farinha de fubá e ovos de capoeira, então a situação é diferente, também com relação à feitura do café. Primeiro apronta o cuscuz e o café e somente depois aproveita as brasas para o restante. Cuscuz de pacote, por não haver espiga de milho para ralar. Mas o café, mesmo de segunda, ainda é batido em pilão. Não são mais os grãos de antigamente, mas ainda assim o costume chama à batida de todo dia.

Bater pilão, aliás, é costume de raiz familiar, passado de geração a geração, desde as antigas mãos escravas às não menos escravizadas mãos que continuam lançando o grão ao fundo da madeira para depois o bater e bater. Noutros tempos não só o café em grão era batido em pilão como o milho e o arroz com casca. Mas também folhas medicinais secas para os chás e as pomadas caseiras. O milho para fazer xerém e servir de alimento aos bichos de criação, mas o café para o deliciamento de todo dia, prazer único do empobrecido após o cansaço do dia. Depois de batido, passado em peneira e levado à chaleira, o que se tem daí em diante é um perfume sem igual. Da boca da noite em diante ou ao alvorecer, se faz tão forte o aroma do café fervente que se imagina um encantamento pelos espaços.


As gerações deixaram ensinamentos, o passado deixou sua escrita, mas nunca se prossegue na leitura da mesma linha. Tudo vai irremediavelmente mudando. Até mesmo a manutenção dos costumes vai se tornando difícil, não só pelo novo que vai surgindo como pela dificuldade em obter aquilo que os pais e os avós tanto prezavam no prato do dia a dia. Ora, naquele tempo havia jabá e bacalhau em cima de cada balcão de mercearia ou bodega interiorana. E tudo acessível ao pobre. Era só chegar, experimentar um naco e mandar cortar um ou dois quilos. Não se comia muito, com a fartura desejada, mas muito diferente do que se passou a ter com o passar dos anos. A barriga teve de passar a se contentar com a fome, e esta com o que houvesse para comer. E assim continua.

Havia galinha gorda no quintal, havia galinha ciscando por todo lugar. As manhãs chegavam ofertando ovos de capoeira, fruta madura, grãos vingados nos serenos da noite. Havia a melancia, a abóbora, o melão coalhada, o maxixe, o feijão de corda, o quiabo, a batata, a mandioca, e tudo no pequeno roçado pelos fundos da casa. Mas num tempo de quintais e de pequena produção para a sobrevivência. Poucos são os quintais que ainda restam com algum pé de pau ou um pé de cidreira. Os poleiros sumiram, as galinhas também. As pequenas roças foram engolidas pelo progresso e ao homem só restou a pobreza crescente. E também a luta cada vez maior para sobreviver sem mais encontrar o trabalho na terra, na vaqueirama, na tiração do leite e na feitura do queijo.

É boca da noite e porteira aberta para o descanso do dia. E um dia nascido ainda na madrugada escura, antes mesmo de o galo cantar. E assim todo dia. Não ter tempo de sonhar ou fantasiar um mundo melhor, e já o relógio interior despertando para tudo se iniciar novamente. Na semiescuridão do madrugar fechado, sem amarelado nas frestas ou qualquer sinal da alvorada, logo levanta da cama de ripa e coloca os pés sob o chão batido. Ou o roló de couro cru ou descalço, não gosta de chinelo rasteiro. E tateando vai rumo à cozinha ou à porta da frente. Tanto no quintal como defronte a malhada, a primeira coisa que faz é alongar a vista em direção às cores do horizonte. Ali os sinais esperançosos ou as aflições.

Que chova ou faça sol é sempre assim, desde a hora de levantar ao sono chegar. A diferença mesmo somente nos afazeres perante cada situação. Acaso tenha chovido, a terra molhada torna a vida diferente, muito mais prazerosa e sempre com a certeza de um ganha-pão. Mas se for a estiagem que se faça adiante e por todo lugar, então a sobrevivência se torna em sofrimento. O fogo de lenha nem sempre é aceso, o bater pilão quase que silencia, até o toucinho some do varal. Mas a fé vai nutrindo o homem, e este alimentando de esperanças o seu mundo.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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