Resumo
Este artigo parte de um estudo etnográfico da devoção popular ao cangaceiro Jararaca em Mossoró, Rio Grande do Norte, morto pela polícia local em 1927. Seu objetivo é destacar os ritos que manifestam e suportam tal devoção, sobretudo em seus aspectos verbais: testemunhos, narrações hagiográficas e fatos históricos tidos como reais - principalmente os fatos que cercaram a morte do cangaceiro e suas proezas no cangaço - que dão margem à reelaboração da identidade social do morto, de modo a aproximar sua vida do modelo do Robin Hood, o bom bandido, e sua morte do modelo do martírio cristão. Assim, ele pode tornar-se um santo funerário.
Resumo
Este artigo
parte de um estudo etnográfico da devoção popular ao cangaceiro Jararaca
em Mossoró, Rio Grande do Norte, morto pela polícia local em 1927. Seu objetivo
é destacar os ritos que manifestam e suportam tal devoção, sobretudo em seus
aspectos verbais: testemunhos, narrações hagiográficas e fatos
históricos tidos como reais - principalmente os fatos que cercaram a morte do
cangaceiro e suas proezas no cangaço - que dão margem à reelaboração da
identidade social do morto, de modo a aproximar sua vida do modelo do Robin
Hood, o bom bandido, e sua morte do modelo do martírio cristão. Assim, ele pode
tornar-se um santo funerário.
Palavras-chave: religião,
ritual, narrações, cangaço.
Abstract
The article is
based on an ethnographic study of the popular devotion to Jararaca, a cangaceiro in
Mossoró, Rio Grande do Norte, murdered by the police in 1927 . My aim is to
show the rites that reveal and support such devotion by enphasizing its verbal
aspects: testimonies, hagiographic narrations and historical facts - mainly the
facts about the cangaceiro’s death and his life as a cangaceiro.
Through these ritual speeches his social identity is recreated in conformity to
a romantic Robin Hood model while his death become an exemplar of Christian
martyrdom. So he turns into a funerary saint.
Keywords:
religion, ritual, narration, cangaço.
Introdução
Em 1927 José
Leite de Santana, conhecido como Jararaca, cangaceiro do famoso bando de
Lampião[1], foi alvejado por um tiro e
deixado para trás por seus companheiros, que fugiram após mal-sucedida invasão
da cidade de Mossoró[2]. Alguns dias depois, ele viria a
ser morto de um modo considerado singularmente cruel: teria sido enterrado vivo
pela polícia que antes o aprisionara, já ferido à bala no confronto anterior.
Ou, pelo menos, é o que até hoje se acredita verdadeiro a respeito desse
episódio público, verdadeira saga sempre chamada a ilustrar a bravura dos resistentes que
impediram a invasão e saque da cidade pelos então temidos cangaceiros de
Lampião.
Setenta e um
anos depois desse acontecimento, no dia 2 de novembro de 1998, Dia de Finados[3], seu túmulo aparecia nas manchetes
dos jornais locais e da capital do Estado, Natal, anunciado como o mais
visitado pela população da cidade e por turistas, alguns oriundos de cidades
próximas, outros até de fora da região; alguns movidos por pura curiosidade,
outros pela esperança de um milagre motivada por histórias ouvidas de pessoas
que já haviam tido contato anterior com tal devoção ou pela própria publicidade
promovida pelas matérias nos jornais.
O túmulo de
Jararaca passou a receber essas visitas desde que se espalhou a notícia de seu
sepultamento naquele local. Já então, em 1927, noticiou-se a versão que até
hoje é tida como verdadeira pela maioria das pessoas com quem conversei,
adeptos ou não da devoção: a de que ele teria sido enterrado vivo pela
polícia, que o teria removido da cela na qual se encontrava preso na cadeia
municipal, no meio da madrugada, sob a alegação de levá-lo ao hospital na
capital - pois que sofria ainda os efeitos do ferimento à bala – para
conduzi-lo, todavia, na verdade, até o cemitério público. Lá, Jararaca teria
sido obrigado a cavar uma cova e, em seguida, teria sido empurrado para dentro
dela com uma pancada (alguns dizem que teria sido novamente baleado, porém
deixado vivo).
O que
conferiu, de imediato, credibilidade a essa história foi o depoimento de um dos soldados da
polícia que, em entrevista a um jornal local, contou detalhes do assassinato,
do qual teria participado. O jornalista condena, na matéria, tal ação, e, nessa
posição, é seguido depois por outras figuras ilustres da cidade, principalmente
outros jornalistas e historiadores – inclusive, muitos deles, interessados em
uma história política do cangaço[4] na região. Estes não se
furtaram, em seus escritos posteriores, a qualificar como covarde tal
ação, fazendo dessa afirmação, em alguns casos (ALMEIDA, 1981), tanto uma
oportunidade de condenação à ação criminosa da polícia do que uma ocasião de
exaltação à valentia do cangaceiro.
Nessa linha,
visto como vítima do abuso de autoridade por parte de uma polícia que parecia
desconhecer limites – e talvez representada como não menos violenta e
ameaçadora do que os próprios bandidos que eram os cangaceiros – Jararaca
termina por ganhar a simpatia popular. Não são poucos, por outro lado,
principalmente entre as camadas letradas, os que duvidam de tal história e a
consideram “folclórica” – no sentido pejorativo, de crendice popular,
disseminada pelo oportunismo de um policial bravateiro e pela ingenuidade do
povo, que gosta de histórias sensacionais...
Verdadeira ou
não do ponto de vista factual, essa história tem sido capaz de gerar as mais
diversas reações. Enterrado vivo tornou-se uma expressão sempre
repetida quando se trata de narrar a história de Jararaca, por sua vez parte de
uma saga histórica, a saber, a da invasão de Mossoró pelos cangaceiros de
Lampião, segundo os historiadores, e a da resistência dos bravos de
Mossoró, segundo a crônica da cidade tal como é contada por suas elites
políticas. Nem sempre, aliás, essas duas linhagens narrativas se encontram
separadas ou mostram-se distinguíveis uma da outra. Trata-se de uma história
que na verdade são várias histórias, todas com seu tanto de romance e de
crônica jornalística, suas verdades parciais e fictícias, suas lembranças bem
selecionadas, devidamente filtradas pelo interesse e ponto de vista de quem as
conta.
Jararaca
tornou-se, assim, uma personagem lendária nessa saga. Elevado ao panteão dos mortos
especiais[5] de que nos fala Peter Brown
(1984), devido aos efeitos sociais, simbólicos e emocionais desencadeados por
sua morte pública, representada como disruptiva e trágica, capaz de evocar a
memória temas religiosos caros ao universo cristão, como o sacrifício, a via
crucis, o sofrimento purificador, para destacar somente alguns dos mais
presentes nas falas dos devotos.
Essas
representações vêm somar-se àquelas sobre o cangaceiro, esse nômade, ora visto
como o cabra impiedoso que afronta o Estado, a propriedade, as
famílias, e se alia a um patrono local contra outras lideranças familiares, ora
visto como avatar da honra masculina, vingador tradicional ou revoltado contra
o latifúndio; ora peão das forças conservadoras, mercenário individualista,
desenraizado, ora líder político que apela à força bruta, agindo em nome de uma
suposta tomada de consciência da sua situação de oprimido, percebido como
ameaça pelos dominantes. Muitas são as caras do cangaço.
Assim, nada há
de surpreendente em que muitas sejam as histórias dentro da história de
Jararaca e do episódio que fez dele um santo popular ou, pelo menos, alguém que
pode ser lembrado e homenageado com oferendas no Dia de Finados, data na qual
tipicamente se recorda e homenageia os entes queridos, sejam os da esfera
privada - a família é a unidade por excelência dentro da qual tais prestações
funerárias são obrigatórias - ou da esfera pública - artistas, esportistas,
políticos, pessoas públicas em geral. Hoje, em Mossoró e região, ele é um
desses mortos milagrosos ou santos que surgem nos
cemitérios brasileiros, sem que para esse surgimento tenha sido necessária
qualquer intervenção ou mediação da família do morto ou de qualquer outra
instituição, religiosa ou não. Nenhum grupo social organiza a relação entre o
morto e seus devotos ou frequentadores eventuais. Não há um oficiante, um
mediador ”autorizado” – individual ou coletivo - que veicule a história verdadeira ou
ensine procedimentos rituais adequados ao culto, ou defina seu tempo
e lugar. No entanto, assim como surgiu espontaneamente, a devoção
prossegue, para além da exibição pública em Finados, nos ritos prestados no
dia-a-dia.
CONTINUA...
http://www.pucsp.br/rever/rv4_2007/t_freitas.htm
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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