Seguidores

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

AS VIDAS E AS MORTES DE JARARACA: NARRAÇÕES DE UMA DEVOÇÃO POPULAR NO NORDESTE BRASILEIRO - PARTE I

Eliane Tânia Freitas[*] [etmart@gmail.com]

Resumo

Este artigo parte de um estudo etnográfico da devoção popular ao cangaceiro Jararaca em Mossoró, Rio Grande do Norte, morto pela polícia local em 1927. Seu objetivo é destacar os ritos que manifestam e suportam tal devoção, sobretudo em seus aspectos verbais: testemunhos, narrações hagiográficas e fatos históricos tidos como reais - principalmente os fatos que cercaram a morte do cangaceiro e suas proezas no cangaço - que dão margem à reelaboração da identidade social do morto, de modo a aproximar sua vida do modelo do Robin Hood, o bom bandido, e sua morte do modelo do martírio cristão. Assim, ele pode tornar-se um santo funerário.


Resumo

Este artigo parte de um estudo etnográfico da devoção popular ao cangaceiro Jararaca em Mossoró, Rio Grande do Norte, morto pela polícia local em 1927. Seu objetivo é destacar os ritos que manifestam e suportam tal devoção, sobretudo em seus aspectos verbais: testemunhos, narrações hagiográficas e fatos históricos tidos como reais - principalmente os fatos que cercaram a morte do cangaceiro e suas proezas no cangaço - que dão margem à reelaboração da identidade social do morto, de modo a aproximar sua vida do modelo do Robin Hood, o bom bandido, e sua morte do modelo do martírio cristão. Assim, ele pode tornar-se um santo funerário.

Palavras-chave: religião, ritual, narrações, cangaço.
Abstract
The article is based on an ethnographic study of the popular devotion to Jararaca, a cangaceiro in Mossoró, Rio Grande do Norte, murdered by the police in 1927 . My aim is to show the rites that reveal and support such devotion by enphasizing its verbal aspects: testimonies, hagiographic narrations and historical facts - mainly the facts about the cangaceiro’s death and his life as a cangaceiro. Through these ritual speeches his social identity is recreated in conformity to a romantic Robin Hood model while his death become an exemplar of Christian martyrdom. So he turns into a funerary saint.
Keywords: religion, ritual, narration, cangaço.

Introdução

Em 1927 José Leite de Santana, conhecido como Jararaca, cangaceiro do famoso bando de Lampião[1], foi alvejado por um tiro e deixado para trás por seus companheiros, que fugiram após mal-sucedida invasão da cidade de Mossoró[2]. Alguns dias depois, ele viria a ser morto de um modo considerado singularmente cruel: teria sido enterrado vivo pela polícia que antes o aprisionara, já ferido à bala no confronto anterior. Ou, pelo menos, é o que até hoje se acredita verdadeiro a respeito desse episódio público, verdadeira saga sempre chamada a ilustrar a bravura dos resistentes que impediram a invasão e saque da cidade pelos então temidos cangaceiros de Lampião.

Setenta e um anos depois desse acontecimento, no dia 2 de novembro de 1998, Dia de Finados[3], seu túmulo aparecia nas manchetes dos jornais locais e da capital do Estado, Natal, anunciado como o mais visitado pela população da cidade e por turistas, alguns oriundos de cidades próximas, outros até de fora da região; alguns movidos por pura curiosidade, outros pela esperança de um milagre motivada por histórias ouvidas de pessoas que já haviam tido contato anterior com tal devoção ou pela própria publicidade promovida pelas matérias nos jornais.

O túmulo de Jararaca passou a receber essas visitas desde que se espalhou a notícia de seu sepultamento naquele local. Já então, em 1927, noticiou-se a versão que até hoje é tida como verdadeira pela maioria das pessoas com quem conversei, adeptos ou não da devoção: a de que ele teria sido enterrado vivo pela polícia, que o teria removido da cela na qual se encontrava preso na cadeia municipal, no meio da madrugada, sob a alegação de levá-lo ao hospital na capital - pois que sofria ainda os efeitos do ferimento à bala – para conduzi-lo, todavia, na verdade, até o cemitério público. Lá, Jararaca teria sido obrigado a cavar uma cova e, em seguida, teria sido empurrado para dentro dela com uma pancada (alguns dizem que teria sido novamente baleado, porém deixado vivo).

O que conferiu, de imediato, credibilidade a essa história foi o depoimento de um dos soldados da polícia que, em entrevista a um jornal local, contou detalhes do assassinato, do qual teria participado. O jornalista condena, na matéria, tal ação, e, nessa posição, é seguido depois por outras figuras ilustres da cidade, principalmente outros jornalistas e historiadores – inclusive, muitos deles, interessados em uma história política do cangaço[4] na região. Estes não se furtaram, em seus escritos posteriores, a qualificar como covarde tal ação, fazendo dessa afirmação, em alguns casos (ALMEIDA, 1981), tanto uma oportunidade de condenação à ação criminosa da polícia do que uma ocasião de exaltação à valentia do cangaceiro.

Nessa linha, visto como vítima do abuso de autoridade por parte de uma polícia que parecia desconhecer limites – e talvez representada como não menos violenta e ameaçadora do que os próprios bandidos que eram os cangaceiros – Jararaca termina por ganhar a simpatia popular. Não são poucos, por outro lado, principalmente entre as camadas letradas, os que duvidam de tal história e a consideram “folclórica” – no sentido pejorativo, de crendice popular, disseminada pelo oportunismo de um policial bravateiro e pela ingenuidade do povo, que gosta de histórias sensacionais...

Verdadeira ou não do ponto de vista factual, essa história tem sido capaz de gerar as mais diversas reações. Enterrado vivo tornou-se uma expressão sempre repetida quando se trata de narrar a história de Jararaca, por sua vez parte de uma saga histórica, a saber, a da invasão de Mossoró pelos cangaceiros de Lampião, segundo os historiadores, e a da resistência dos bravos de Mossoró, segundo a crônica da cidade tal como é contada por suas elites políticas. Nem sempre, aliás, essas duas linhagens narrativas se encontram separadas ou mostram-se distinguíveis uma da outra. Trata-se de uma história que na verdade são várias histórias, todas com seu tanto de romance e de crônica jornalística, suas verdades parciais e fictícias, suas lembranças bem selecionadas, devidamente filtradas pelo interesse e ponto de vista de quem as conta.

Jararaca tornou-se, assim, uma personagem lendária nessa saga. Elevado ao panteão dos mortos especiais[5] de que nos fala Peter Brown (1984), devido aos efeitos sociais, simbólicos e emocionais desencadeados por sua morte pública, representada como disruptiva e trágica, capaz de evocar a memória temas religiosos caros ao universo cristão, como o sacrifício, a via crucis, o sofrimento purificador, para destacar somente alguns dos mais presentes nas falas dos devotos.

Essas representações vêm somar-se àquelas sobre o cangaceiro, esse nômade, ora visto como o cabra impiedoso que afronta o Estado, a propriedade, as famílias, e se alia a um patrono local contra outras lideranças familiares, ora visto como avatar da honra masculina, vingador tradicional ou revoltado contra o latifúndio; ora peão das forças conservadoras, mercenário individualista, desenraizado, ora líder político que apela à força bruta, agindo em nome de uma suposta tomada de consciência da sua situação de oprimido, percebido como ameaça pelos dominantes. Muitas são as caras do cangaço.

Assim, nada há de surpreendente em que muitas sejam as histórias dentro da história de Jararaca e do episódio que fez dele um santo popular ou, pelo menos, alguém que pode ser lembrado e homenageado com oferendas no Dia de Finados, data na qual tipicamente se recorda e homenageia os entes queridos, sejam os da esfera privada - a família é a unidade por excelência dentro da qual tais prestações funerárias são obrigatórias - ou da esfera pública - artistas, esportistas, políticos, pessoas públicas em geral. Hoje, em Mossoró e região, ele é um desses mortos milagrosos ou santos que surgem nos cemitérios brasileiros, sem que para esse surgimento tenha sido necessária qualquer intervenção ou mediação da família do morto ou de qualquer outra instituição, religiosa ou não. Nenhum grupo social organiza a relação entre o morto e seus devotos ou frequentadores eventuais. Não há um oficiante, um mediador ”autorizado” – individual ou coletivo - que veicule a história verdadeira ou ensine procedimentos rituais adequados ao culto, ou defina seu tempo e lugar. No entanto, assim como surgiu espontaneamente, a devoção prossegue, para além da exibição pública em Finados, nos ritos prestados no dia-a-dia.

CONTINUA...

http://www.pucsp.br/rever/rv4_2007/t_freitas.htm
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário