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terça-feira, 22 de março de 2016

CANÇÕES QUE CHEIRAM A SERTÃO

Por Rangel Alves da Costa*

As canções possuem o dom da transformação. Agem tão profundamente no ser humano que este se sente em viagem na recordação. Canções que relembram momentos, que trazem saudade, que fazem chorar. Canções que fazer sorrir e entristecer, que fazem meditar e enternecer. Um noturno, uma valsa vienense, um bolero, uma música popular. Tanto faz se o que importa mesmo é a junção da melodia e pensamento, daí derivando as tantas viagens ao entardecer ou ao silêncio da noite enluarada.

Mas as canções não refletem apenas no pensamento, pois também enlaçam os sentidos do ser. Chegam com gosto na boca, com sabor de beijo, com perfume de corpo. Chegam pulsando o coração, atormentando o juízo, causando frio ou calor. E também provocando reencontros tão fortes que as sensações se tornam como de presença. Assim acontece com as canções sertanejas perante o ouvinte acostumado com a terra, com o bicho, com a natureza.

Tais canções matutas, caboclas, caipiras, nascidas na viola de pinho, chegam até a ter cheiro de mato, de chão, de boi, de chuva caindo sobre a terra. Canções que lembram porteiras rangendo, gado berrando, folhagem murmurando, riacho correndo, o pilão batendo, aboio e toada. Canções que fazem surgir a alvorada passarinheira, o velho carro de boi vencendo estradões, a ventania soprando sobre os arvoredos e o homem na sua lida singela de todo dia.

Como não sentir a presença do sertão em canção assim: “De que me adianta viver na cidade/ Se a felicidade não me acompanhar/ Adeus paulistinha do meu coração/ Lá pro meu sertão eu quero voltar/ Ver a madrugada quando a passarada/ Fazendo alvorada começa a cantar/ Com satisfação arreio o burrão/ Cortando o estradão saio a galopar/ E vou escutando o gado berrando/ O sabiá cantando o jequitibá/ Por nossa senhora, meu sertão querido/ Vivo arrependido por ter deixado/ Esta nova vida aqui na cidade/ De tanta saudade eu tenho chorado/ Aqui tem alguém, diz que me quer bem/ Mas não me convém, eu tenho pensado/ Eu digo com pena, mas esta morena/ Não sabe o sistema que eu fui criado/ Tô aqui cantando, de longe escutando/ Alguém está chorando com o rádio ligado...”. (Saudade de minha terra, de autoria de Belmonte e Goiá).


Como não se encantar ouvindo “Eu e a lua”, com Tonico e Tinoco: “Eu me desperto em arta madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom profundo lamento em meu pinho/ Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir ingrata quem deixou de amar/ Somente a lua no céu estrelado/ Está a meu lado, surgiu num clarão/ E tu querida nem abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha canção/ Tu foi aquela muié sem coração...”. Ou ainda, com a mesma dupla, “Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão singelo/ Minha bela, meu amor/ Pra você quero contar/ O meu sofrer e a minha dor/ Eu sô que nem sabiá/ Quando canta é só tristeza/ Desde o gaio onde ele está/ Nesta viola eu canto e gemo de verdade/ Cada toada representa uma saudade...”.

Como não se sentir saudoso da terra sertão ao ouvir: “Eu venho vindo de um querência distante/ Sou um boiadeiro errante que nasceu naquela serra/ O meu cavalo corre mais que um pensamento/ Ele vem num passo lento porque ninguém me espera/ Tocando a boiada, uê, uê, uê, boi/ Eu vou cortando estrada/ Uê boi/ Tocando a boiada, uê, uê, uê, boi/ Eu vou cortando estrada...” (Boiadeiro errante, composição de Teddy Vieira). E sentir o coração apertar ouvindo “Triste berrante”, de Solange Maria e Adauto Santos: “Já vai bem longe este tempo, bem sei/ Tão longe que até penso que eu sonhei/ Que lindo quando a gente ouvia distante/ O som daquele triste berrante/ E um boiadeiro a gritar, êia!/ E eu ficava ali na beira da estrada/ Vendo caminhar a boiada até o último boi passar/ Ali passava boi, passava boiada/ Tinha uma palmeira na beira da estrada/ Onde foi gravado muito coração...”.

Quem for nascido no sertão ou pelas terras matutas guarde amor e afeto, não há como não se encantar ao ouvir tais canções. É como se da viola emanasse sua raiz e da melodia um chamado ao retorno. E em tudo um cheiro gostoso de terra, de café torrado ao entardecer, de cuscuz ralado no fogo de lenha. E uma saudade danada de apertar coração e marejar os olhos distantes.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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