Por Rangel Alves
da Costa*
As canções
possuem o dom da transformação. Agem tão profundamente no ser humano que este
se sente em viagem na recordação. Canções que relembram momentos, que trazem
saudade, que fazem chorar. Canções que fazer sorrir e entristecer, que fazem
meditar e enternecer. Um noturno, uma valsa vienense, um bolero, uma música
popular. Tanto faz se o que importa mesmo é a junção da melodia e pensamento,
daí derivando as tantas viagens ao entardecer ou ao silêncio da noite
enluarada.
Mas as canções
não refletem apenas no pensamento, pois também enlaçam os sentidos do ser.
Chegam com gosto na boca, com sabor de beijo, com perfume de corpo. Chegam
pulsando o coração, atormentando o juízo, causando frio ou calor. E também
provocando reencontros tão fortes que as sensações se tornam como de presença.
Assim acontece com as canções sertanejas perante o ouvinte acostumado com a
terra, com o bicho, com a natureza.
Tais canções
matutas, caboclas, caipiras, nascidas na viola de pinho, chegam até a ter
cheiro de mato, de chão, de boi, de chuva caindo sobre a terra. Canções que
lembram porteiras rangendo, gado berrando, folhagem murmurando, riacho
correndo, o pilão batendo, aboio e toada. Canções que fazem surgir a alvorada
passarinheira, o velho carro de boi vencendo estradões, a ventania soprando
sobre os arvoredos e o homem na sua lida singela de todo dia.
Como não
sentir a presença do sertão em canção assim: “De que me adianta viver na
cidade/ Se a felicidade não me acompanhar/ Adeus paulistinha do meu coração/ Lá
pro meu sertão eu quero voltar/ Ver a madrugada quando a passarada/ Fazendo
alvorada começa a cantar/ Com satisfação arreio o burrão/ Cortando o estradão
saio a galopar/ E vou escutando o gado berrando/ O sabiá cantando o jequitibá/
Por nossa senhora, meu sertão querido/ Vivo arrependido por ter deixado/ Esta
nova vida aqui na cidade/ De tanta saudade eu tenho chorado/ Aqui tem alguém,
diz que me quer bem/ Mas não me convém, eu tenho pensado/ Eu digo com pena, mas
esta morena/ Não sabe o sistema que eu fui criado/ Tô aqui cantando, de longe
escutando/ Alguém está chorando com o rádio ligado...”. (Saudade de minha
terra, de autoria de Belmonte e Goiá).
Como não se
encantar ouvindo “Eu e a lua”, com Tonico e Tinoco: “Eu me desperto em arta
madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom profundo lamento em meu pinho/
Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir ingrata quem deixou de amar/ Somente
a lua no céu estrelado/ Está a meu lado, surgiu num clarão/ E tu querida nem
abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha canção/ Tu foi aquela muié sem
coração...”. Ou ainda, com a mesma dupla, “Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão
singelo/ Minha bela, meu amor/ Pra você quero contar/ O meu sofrer e a minha
dor/ Eu sô que nem sabiá/ Quando canta é só tristeza/ Desde o gaio onde ele
está/ Nesta viola eu canto e gemo de verdade/ Cada toada representa uma
saudade...”.
Como não se
sentir saudoso da terra sertão ao ouvir: “Eu venho vindo de um querência
distante/ Sou um boiadeiro errante que nasceu naquela serra/ O meu cavalo corre
mais que um pensamento/ Ele vem num passo lento porque ninguém me espera/
Tocando a boiada, uê, uê, uê, boi/ Eu vou cortando estrada/ Uê boi/ Tocando a
boiada, uê, uê, uê, boi/ Eu vou cortando estrada...” (Boiadeiro errante,
composição de Teddy Vieira). E sentir o coração apertar ouvindo “Triste
berrante”, de Solange Maria e Adauto Santos: “Já vai bem longe este tempo, bem
sei/ Tão longe que até penso que eu sonhei/ Que lindo quando a gente ouvia
distante/ O som daquele triste berrante/ E um boiadeiro a gritar, êia!/ E eu
ficava ali na beira da estrada/ Vendo caminhar a boiada até o último boi
passar/ Ali passava boi, passava boiada/ Tinha uma palmeira na beira da
estrada/ Onde foi gravado muito coração...”.
Quem for
nascido no sertão ou pelas terras matutas guarde amor e afeto, não há como não
se encantar ao ouvir tais canções. É como se da viola emanasse sua raiz e da
melodia um chamado ao retorno. E em tudo um cheiro gostoso de terra, de café
torrado ao entardecer, de cuscuz ralado no fogo de lenha. E uma saudade danada
de apertar coração e marejar os olhos distantes.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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