Por Rangel Alves
da Costa*
Eis um segredo
guardado a sete chaves, mas agora revelado para conhecimento de todos. Trata-se
da história de um menino que passou a ter uma vida normal, mas cujo nascimento
e meninice ainda continuavam envoltos em grande mistério. Por que o menino por
tanto tempo viveu como um nego d’água?
Segundo os
relatos ouvidos, principalmente dos velhos ribeirinhos do São Francisco, o
menino realmente viveu alguns anos como aquele ser lendário que faz moradia nas
águas do rio e à noite ressurge, quando pode ser avistado por alguns em cima
das pedras. Mas sempre dá um grande mergulho, ou batim para os sertanejos,
quando da aproximação de forasteiros ou pescadores.
Não há
ribeirinho, pescador ou viajante, que já não tenha avistado um nego d’água ou
ouvido falar sobre sua existência. Moreninho, miúdo, de compleição fina, porém
astuto e ligeiro, gosta de ficar no alto das pedras grandes, ora às margens ou
mesmo dentro do rio. Seu batim é conhecido, pois de repente se ouve um barulho
para em seguida ser avistado o redemoinho na água.
Traquina,
cheio de travessuras, também gosta de aparecer de repente nos barcos e em
seguida mergulhar em gritaria. Por isso mesmo que causa tanto medo aos
pescadores e viajantes noturnos das águas. Mergulha de um lado, mas no instante
seguinte já reaparece do outro lado. E assim faz até o barqueiro se perder rio
acima, ficar atabalhoado ou ancorar pelas margens desconhecidas.
Há muita gente
que jura de pé junto já ter avistado um nego d’água. Mas a grande maioria dos
ribeirinhos certamente já ouviu quando, ao redor das pedras grandes, de repente
um barulho se faz ouvir e as águas se abrirem como se algo tivesse dado um
grande mergulho. Sempre à noite, não dizem o nome por medo, mas sabem muito bem
que é o tal neguinho nas suas aparições.
Mas voltando
ao menino que viveu como nego d’água, sua história é deveras interessante,
porém muito triste. Os nomes de seus genitores foram esquecidos. Serão chamados
apenas de pais do menino, até mesmo porque não têm culpa da situação que os
levou a fixar moradia dentro das águas, em cima de uma canoa, local aonde o
filho veio ao mundo.
Era época de
seca grande, de aflição se espalhando por todo lugar. Não havia trabalho, não
havia como plantar para sobreviver, somente a piaba pescada no rio para
alimentar a família. E esta, muito empobrecida, morava numa casinha de barro e
cipó, mas tudo quase caindo. Num dia de ventania, com medo que a casa
desabasse, a família saiu em correria. De lá avistaram a casinha sendo
completamente destruída.
Com a esposa
grávida, o moço ribeirinho nem pensou duas vezes quando olhou ao redor e
avistou uma canoa ao vento. E foi daí em diante que o casal passou a morar
dentro da embarcação, sempre mais afastada das margens. Se havia dono, e talvez
reconhecendo a situação do casal, este nunca reclamou. Foi assim, por cima das
águas, que a mulher deu a luz. Mas algo muito misterioso aconteceu na noite do
nascimento.
Mergulhando
afoito por ali, um nego d’água logo se preparou para assustar aqueles viventes
do rio. Contudo, ouviu um choro de criança e mudou de ideia. De mansinho, foi
se aproximando, levantou somente a cabeça e se deparou, bem na beirada da canoa,
com os olhinhos cheios de lua do menino. Achou tão belo que teve vontade de ser
aquela criança. Mas não podia, era só um nego d’água. Então chorou tanto que
suas lágrimas respingaram sobre o menino. E daí em diante a criancinha fez
nascer dentro de si um amor profundo e incondicional pelas águas e seus
mistérios.
Os pais,
porém, um dia resolveram que ali não era moradia de gente. O menino já estava
com oito anos e eles na mesma situação, vivendo dentro de uma canoa. Assim que
decidiram refazer a vida em terra firme, o menino se negou a acompanhá-los.
Disse que o seu mundo era ali e dali não sairia. Os pais rogaram por todos os
santos, mas não houve jeito. Conversaram entre si que o filho não suportaria
viver sozinho e logo seguiria em busca dos seus. E saíram das águas.
O menino
continuou e agora com a vida que queria ter. Vivia mergulhado no rio e
entabulando conversas com seu amigo nas profundezas. Só reaparecia à noite,
quando subia nas pedras e ficava mirando a lua grande. Bastava pressentir a
aproximação de gente e logo se jogava nas águas. Mas um dia o seu amigo não
apareceu, nem no dia seguinte, desaparecendo de vez. Triste, sem encontrar
outros negos d’água por ali, resolveu partir. Quase não sabia caminhar quando
pisou em terra firme.
Perguntou por
seus pais, mas a única informação que obteve foi que haviam partido rumo à
cidade. Então seguiu no encalço. E foi um comovente reencontro. Assim o agora
rapazinho foi tentando se acostumar com a nova vida. Contudo, não esquecia um
instante sequer do rio, das águas, das pedras, dos mergulhos, da amizade
construída com o nego d’água. E ele mesmo um nego d’água no seu íntimo.
Mas a vida na
cidade lhe atormentava. Tudo seco, sem água, meses e anos sem chuva, como se o
seu corpo fosse secando, esturricando por dentro. A sua consumição interior era
tanta que um dia correu desesperado em direção ao rio distante. Descalço, não
sentiu ponta de pedra, espinho ou cansaço. Mergulhou tão contente que as águas
se abriram em flor. E dentro do rio ficou. Só reaparece nas noites, quando
namora a lua e depois mergulha para dormir e sonhar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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