*Rangel Alves
da Costa
Estou no
sertão. E o meu sertão é bem sertanejo mesmo, autêntico, matuto, caboclo,
caipira. Aqui a seca é mais seca, o sol é mais sol, a pobreza é mais pobre, a
carência é mais angustiante. Mas também tudo mais bonito: o mesmo sol da
secura, a lua maior e mais bela que possa existir, a singeleza de um povo
humilde e cordial, as paisagens cactáceas e os bucolismos em tudo.
Poço Redondo,
sertão de Sergipe, eis o nome do meu lugar, de minha terra, do meu berço de
nascimento. Acordo agora, pouco mais de quatro da manhã, no silêncio da paz,
somente interrompido com o canto passarinheiro que ao longe ouço. O mato não
está longe, a natureza vive a partir dos quintais. Meu pássaro, que é o pássaro
de todos já despertados, canta e canta, canta e canta mais. Talvez muitos
pássaros, mas a melodia sintetiza a canção.
Algumas razões
fazem com que aumente o contentamento com o canto passarinheiro. O sertão era
pujante em bichos nativos. Suas matarias eram repletas de nambus, codornas,
seriemas, tatus, pebas, preás, veados, onças, bicho grande e bicho pequeno, de
chão e de voo. A passarinhada nem se fala. Uma terra de coleirinhos, azulões,
cabeças, sabiás, curiós, canarinhos, e muito mais. Mas coisa de outros tempos,
de um passado já esmaecido na moldura.
Com a
devastação da natureza, o ambiente natural do bicho praticamente deixou de
existir. Onde não há catingueira, baraúna, angico, umburana ou qualquer pé de
pau, não há como o pássaro pousar, não há como fazer seu ninho nas altas
galhagens, nos tufos entre as folhagens. Também não há como levantar voo. Ora,
pássaro voa de canto a outro e é o lugar de seu pouso que vai demarcando seu
território. E sem o mato abundante tudo se torna difícil na sua existência. Por
isso mesmo partiu em revoada.
Passarinhos
ainda existem, mas quase uma raridade perante a pujança de antigamente. E tanto
existem que ouço o seu canto ao alvorecer. Agora mesmo sinto pertinho o seu
trinado, a sua melodia do amanhecer. Mas não será certeza de encontrá-lo no
alto de pé de pau depois da porta da casa ou pelos arredores. Hoje em dia, ante
a sua ausência no meio do mato, a mocidade opta por uma solução dolorosa:
engaiolar a vida e o seu canto. E mesmo assim ainda cantam em cativeiro.
Uma coisa é
certa, logo cedinho a rapaziada vai passando pelas ruas calmas levando gaiolas.
Assim fazem numa injustificável e desumana atitude: levar o passarinho
engaiolado para o pé de pau e lá, no meio da mataria, imaginar que está
liberto. E, na presença de outros pássaros em liberdade, não perca suas razões
de viver, o seu canto, sua melodia. O dono da gaiola vai forjando ilusão de
liberdade somente para que o pássaro não entristeça de vez ao retornar às
paredes de seu aprisionamento.
Assim acontece
por aqui. Mas o canto passarinheiro sempre ecoa ao alvorecer. E um canto de
pássaro livre, de pássaro ainda feliz, de pássaro que vem despertar e depois
retorna à sua paisagem pelos arredores e mais distante. A esta hora, ainda
cedinho, basta sair de casa e mais adiante sentir a força viva do despertar da
natureza. Ou do que ainda resta da natureza. Mas ainda o tufo de mato,
catingueiras solitárias, uma ou outra árvore ainda viva e dobrada pela idade.
Daí os sons que ainda surgem, os cantos que ainda ecoam.
O passarinho
continua cantando. Tão pertinho que parece ao lado de minha rede. Sigo em
direção à cozinha e o canto me acompanha. Acendo o fogo para um café ainda
ouvindo a melodia. Olho da janela e sinto que a manhã já se levanta. O
friozinho da madrugada vai se dissipando aos poucos. O café quentinho vai
trazendo o calor que terá presença o dia inteiro. Ainda de xícara à mão, abro a
porta e olho ao redor.
Ouço o canto.
Ainda pertinho de mim. Mas não há pássaro. Talvez seja apenas a minha memória,
a minha saudade que chama aquele amanhecer de antigamente.
Escritor
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