*Rangel Alves
da Costa
Seu nome:
Orêmia Flores. Um sobrenome ajustado ao jardim em pessoa. Flores viçosas de um
dia, mas que agora refletindo as agruras dos outonos da existência. Nos seus
cabelos brancos e no olhar ainda brilhoso, porém distantes, também a recordação
de um cafezal em flor. E que bela flor a do cafezal, para depois se transformar
em grão e pó.
Uma vida
simples ao longo da vida. Desconhecida de todos se alguns, por força de
parentesco ou de vizinhança, não a conhecessem. Mas bastava avistá-la uma única
vez para jamais esquecer sua feição e do seu jeito de ser. De poucas palavras -
talvez já cansada de tanto dizer -, porém com a lição certa a quem desejasse
ouvir sua sabedoria.
Viúva desde
muito, sem filhos, apenas uma velha senhora morando sozinha. Ela, sua moradia
de janela e quintal, um gato e a vida. As duas coisas que mais gostava de fazer
eram sentar numa velha cadeira de balanço rente à janela e andar de canto a
outro depois da porta do fundo. Tinha o quintal como a própria casa.
Era no quintal
que mantinha seu cantinho de plantas medicinais. Ali o manjericão, a erva
cidreira, o boldo, o mastruz. Ali também, esquecido num canto, um antigo e
carcomido pilão de raiz escrava. Nele, um dia, na sua batida distante, o café
em grão, o arroz em casca, o caroço de milho, a folhagem seca para fazer
remédio.
Gostava de
sentar num resto de tronco deitado e dali ficar observando a dança do vento no
varal. Mesmo sem roupa estendida, era como se avistasse pessoas de braços
abertos ao passar do tempo. Um pássaro pousava em cima do arame, mas apenas via
a brancura de lenços esvoaçando pela ventania. E de repente um seguia pelos
ares como folha aberta. Uma carta cheia de saudades, talvez.
Ainda no
quintal, de cuia à mão, ia respingando gota d’água na sua plantinha. De repente
avistava uma goiaba caída e se esforçava como podia para fazer o recolhimento.
Assim também com qualquer fruta que caísse. Olhava pra cima, enxergava fruta
madura, porém já não tinha força nem equilíbrio suficiente para estender uma
vara certeira.
Também
conversava sozinha, e como dialogava sozinho no seu silêncio de solidão. Mas
parecia conversar com alguém. Tiziu, um meninote acostumado a afanar fruta ali
do quintal, não duvidava que ela conversasse com alguém. Diversas vezes se
escondeu por trás da cerca para ouvir:
“Crimero, já
lhe disse e vou repetir. Não precisa mais todo dia chegar aqui me alembrando
que tenho logo de ir pra onde você tá. Já tem mais de dez anos, desde que você
morreu, que todo dia volta dizendo que tá com saudade de mim, que sente muito a
minha falta, e por isso mesmo quer que eu lhe acompanhe. O tempo é de Deus,
homem. E só Deus pode abrir a porta e dizer que o meu tempo aqui acabou. Mas
sei não. Acho que Deus anda querendo falar comigo...”.
Depois de
ouvir tais palavras, e mesmo assustado, um pouco mais tarde o menino bateu à
porta da velha Orêmia. Ela estava sentada na cadeira de balanço e disse apenas
que podia entrar que a porta estava aberta. Então Tiziu entrou devagar, meio
sem sujeito, também meio sem saber o que falar, mas se aproximou para
expressar, num entristecimento de doer coração.
“Dona Orêmia,
eu não queria que a senhora morresse não. Sem querer eu ouvi uma coisa e fiquei
preocupado. Não sei quem todo dia vem chamar a senhora, mas se me dissesse eu
lhe dizia umas duas e essa pessoa nunca mais aparecia. Eu já perguntei a Deus o
que ele queria falar com a senhora, mas ele não me respondeu ainda. Qualquer
coisa eu venho lhe dizer. Mas peça a Deus que esqueça essa coisa de tempo. E
também diga a Deus que a senhora já está muito velha pra sair sozinha pela
porta quando ele mandar...”.
Dona Orêmia
ouvia as palavras do menino com olhos marejados. Pediu para que se aproximasse
um pouco mais, passou-lhe a mão sobre a cabeça, e com a voz embargada disse.
“Deus está aqui e ele me chama. Cuide do meu gato e do meu quintal. Sinto a
porta se abrindo, sinto a luz na porta, sinto...”.
E o menino
chorou.
Escritor
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