*Rangel Alves
da Costa
Não sou muito
de abrir a porta de casa e sair caminhando por aí. Sou muito recluso e afastado
de correrias. Até mesmo os compromissos de rua são cumpridos com brevidade e
dentro de limites. Mas não saio de uma esquina a outra sem tirar algum proveito
da caminhada, eis que presto atenção a cada detalhe de todo o avistado pelos
arredores. Apenas avisto e mentalmente desnudo toda a realidade.
A verdade é
que meus olhos caminham mais que meus passos e encontram situações sempre
interessantes, muitas vezes fatos ou paisagens que a outros olhares não possuem
qualquer significado. Creio que a captação do real está no poder de percepção e
não na simples presença. Tudo como um registro que vai sendo anotado pelo olhar
para depois se transformar em relato e moldura de um tempo. Sim, moldura de um
tempo que passa igual a trem e vai perguntando por dentro se ainda será
possível reencontrar o avistado.
É a crônica do
simples e do comum, daquilo que a muitos jamais teve qualquer significação, mas
que a outros possui o dom de afetar profundamente. É como passar diante uma
casa de porta e janela fechadas e não imaginar além de uma casa com janelas e
portas fechadas. Muito diferente daquele que igualmente vê a casa nesta feição,
porém começa a se perguntar o porquê de ela estar assim de porta e janela
fechadas, desde quanto tempo está assim, além de envolver considerações sobre
partidas, abandonos, tristezas.
Há, em certos
olhares, um poder que transcende aos avistados. Nunca se contenta em apenas
passar e enxergar, mas sempre em levar consigo todo um baú de coisas simples e
significativas. Vai carregando os avistados como fotografias que contarão ao
futuro ou somente à mente as existências passadas ou os cotidianos vivenciados.
É a crônica da visão, do interesse pelo simples, pelo casual. O despertar ante
a flor que embeleza o jardim, perante o solitário banco de praça, diante da
velha senhora sentada na sua cadeira de balanço. Tudo se torna muito
importante.
É, pois, a
crônica da caminhada descompromissada ao encontro dos inusitados, do proseado
ao pé do balcão ao chegar à padaria para comprar leite e pão, do olhar rondando
a praça enquanto o corpo está assentado no velho banco. Que crônica mais bela é
aquela dizendo das mãos envelhecidas que ao entardecer joga milho aos pombos,
que lentamente esfarela o pão para lançar aos passarinhos. Uma crônica de olhar
comovido ante as folhas das amendoeiras que caem aos pés envelhecidos dos
passos.
No significado
das pequenas coisas é que reside a grandeza da crônica da vida. Nenhum fato
grandioso, pomposo, solenemente formal, contém maior significação que aquele
colhido no vai e vem do dia a dia, na caminhada e no seu passo. Belo
reencontrar o velho amigo e com ele dividir cafezinho adoçado com recordações e
relembranças. Encantador ainda se avistar as roupas de braços abertos nos
varais dos arredores, as velhas senhoras alentadas ante almofadas de renda de
bilros, os velhos senhores dialogando todo o conhecimento de mundo.
Noutro dia,
num passo sem pressa, num dia de domingo de ruas vazias, de repente me vi
imaginando como seria aquele lugar há cem ou mais anos. E não somente isso,
pois me vi pensando nas pessoas com suas roupas e costumes diferentes, suas
faces espelhando o momento, tudo tão normal para o momento. E o mais
instigante: que nenhuma daquelas pessoas poderia ser encontrada, pois todas já
falecidas.
No mesmo
instante fui surpreendido pela própria mente ao imaginar que aquele instante
vivenciado, aquele exato momento, já não seria mais o mesmo após o minuto
seguinte, dali a uma semana, um ano, e assim por diante. Tudo se transformando
até que mais tarde, quando outras pessoas já estiverem no lugar dos de agora,
também talvez imaginarem como teria sido o passado. Assim, no futuro, apenas a
memória do vivenciado naquele momento, tudo acontecendo da mesma forma como eu
estava imaginando o passado. E nisto uma certeza: o novo de ontem tão velho
agora, o novo de agora tão velho amanhã, e mais adiante tudo envelhecido demais.
Por que as
coisas acontecem assim, em percursos e distâncias, em esquecimentos e
relembranças, importante se torna que a pessoa que vivencia seu presente também
se interesse pelo seu passado. Quando o provérbio diz da importância de se
conhecer a si mesmo, afirmando está que tal conhecimento deve ser também sobre
o mundo que envolve a pessoa. Daí que o conhecer a si mesmo envolve conhecer de
onde veio, através de quem, o que possibilitou ser o que é para, enfim,
refletir-se em si mesmo e reconhecer-se como ser humano.
Assim,
conhecer a si mesmo implica em se situar no passado e presente, até se lançando
como se no futuro estivesse. Pois tudo o que foi, o que é e o que será, pode
ser avistado num só homem perante o seu tempo.
Escritor
Membro da Academia
de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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