Há um texto
irretocável do poeta, escritor, folclorista, musicólogo e ensaísta brasileiro
Mário de Andrade (1893-1945). Neste – e como se verá adiante – o nosso
antropófago faz uma análise intimista das coisas que verdadeiramente faz bem à
alma humana, a partir do instante em que se reconhece apenas um ser já mais
vivido do que com tempo a viver.
Soa como um
Sermão de humildade, compreensão e de amor às coisas verdadeiramente singelas.
Ecoa como uma homilia onde o homem é mostrado como ser frágil que não deve
ostentar honrarias por onde caminha. Sobressai-se como uma absoluta certeza:
chega um tempo onde a essencialidade humana deve ser perante os pequenos afetos
da vida e não ante os desafetos dessa mesma vida.
Por que não
dizer ser o texto de Mário de Andrade um verdadeiro capítulo do Eclesiastes?
Sim, por que nele está exposto que há um tempo pra tudo. Tempo de querer de
fartar sem medida e um tempo de apreciar com avidez o pouquinho que se tem.
Tempo de apenas viver sem se importar com as graças da alma humana e o tempo
onde tudo o que se busca é a aproximação dessa lama humana.
Ou talvez uma
canção de adeus às banalidades e necessário e urgente encontro com os grandes
significados da vida. E quais seriam tais significados: viver de modo simples,
ao lado de pessoas simples, falando a mesma voz simples do povo, sendo
simplesmente simples. Um viver onde o maior prazer encontrado deva ser a
alegria do convívio e não a mediocridade das aparências.
E ainda, o que
Mário de Andrade deixa induvidoso é que nada soma ao viver humano o
compartilhamento de sentimentos e instantes que não sejam realmente válidos. De
nenhuma valia estar rodeado de pessoas afetadas pelos prestígios e lustros, de
nenhuma valia conviver com os supérfluos que somente sugam as essencialidades
da vida. No seu viver, o homem, principalmente aquele que já se sente com menos
tempo de vida do que viveu, deve colher na simplicidade o alimento que ainda
lhe resta.
Eis, enfim, o
texto intitulado o “O valioso tempo dos maduros”:
“Contei meus
anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já
vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como
aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou
displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não
tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde
desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles
admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não
tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre
vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar
melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto
fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário
geral do coral. ‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’. Meu
tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem
pressa…
Sem muitas
cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe
rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita
antes da hora, não foge de sua mortalidade.
Caminhar
perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena. E
para mim, basta o essencial!”.
Deveras, de
encantar coração: “Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de
cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço”. “Já não tenho tempo de lidar com mediocridades”. “Meu
tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem
pressa…”.
Quantos pensam
assim, quantos agem assim? Urge que o ser humano se reconheça assim antes que
tenha, já na altura dos poucos anos que lhe resta, ter que entristecidamente
reler aqueles versos do poema “Instantes”, de Nadine Stair: “Se eu pudesse
novamente viver a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não
tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria
mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais
montanhas, nadaria mais rios...”
Ou mesmo se
afligiria tendo a canção Epitáfio, de Titãs, como espelho de seu instante:
“Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer. Devia ter
arriscado mais, até errado mais, ter feito o que eu queria fazer. Queria ter
aceitado as pessoas como elas são...”.
Os
arrependimentos acima já haviam sido pensados por Mário de Andrade. Na vida,
não vale a pena viver para depois se arrepender. Os instantes nos são dados
para que, na humildade e simplicidade, todo o encanto possa ser fruído.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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