por José Gonçalves do Nascimento
A cidade de
Monte Santo, situada no semiárido baiano, à sombra da Serra do Piquaraçá, foi,
no passado, palco do episódio de Canudos. Tornado vila em 1837, o lugarejo
detinha uma área territorial que abarcava grande parte do sertão baiano,
incluindo Canudos, povoação fundada às margens do rio Vazabarris pelo peregrino
cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro.
Em 1888, o
coronel Durval Vieira de Aguiar, no seu livro Descrições Práticas da Província
da Bahia, informava ter visto Antônio Conselheiro em terras de Monte Santo,
mais precisamente no povoado do Cumbe, atual Euclides da Cunha (BA). Escreveu
Durval Vieira de Aguiar: “Quando por ali passamos achava-se na povoação um
célebre Conselheiro, sujeito baixo, moreno acaboclado, de barbas e cabelos
pretos e crescidos, vestido de camisolão azul, morando sozinho em uma
desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluíam os presentes, com os
quais se alimentava (...) O povo costuma fluir em massa, aos atos religiosos do
Conselheiro, cujo aceno cegamente obedece (...) Nessa ocasião havia o
Conselheiro concluído a edificação de uma elegante igreja no Mucambo, e estava
construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a par do movimento do povo,
mantinha ele admirável paz”.
Foto Flávio de Barros
Anos mais tarde, em 1892, o Conselheiro encontrava-se de novo em Monte Santo,
desta feita na sede da vila, onde, juntamente com seu numeroso séquito,
realizou alguns reparos no caminho da Santa Cruz. É o que informa o
correspondente do jornal Diário de Notícias, da Bahia, edição de 7 de junho de
1893: “fui testemunha ocular de que quando aqui esteve [o Conselheiro] ano
passado, enviou meios de fazer-se alguns reparos nas capelinhas e na estrada do
Monte, daqui, a fim de não continuar na decadência em que se achava a instituição
da irmandade dos Santos Passos do Senhor do Calvário, pedindo e aplicando o
resultado das esmolas que recebeu para esse fim.”
Segundo a tradição, os muros que ladeiam trecho considerável do caminho da
Santa Cruz, a partir da primeira capela, no início da subida, teriam sido
construídos por Antônio Conselheiro e sua gente, quando da passagem do beato
pela cidade de Frei Apolônio de Todi.
No período da guerra (1896-1897), a partir da segunda expedição, a cidade
serviu de base de operação das tropas legais em demanda de Canudos. Ali se
instalou o quartel general do ministro da guerra, marechal Carlos Machado de
Bittencourt, o qual comandou o serviço de intendência e cuja presença no palco
da luta foi determinante para o triunfo das forças expedicionárias.
Em Monte Santo, Bittencourt adotaria uma série de medidas com vistas a
aperfeiçoar a atuação das forças em operação e, consequentemente, assegurar a
vitória sobre os seguidores de Antônio Conselheiro. Uma das medidas, talvez a
mais importante, foi a reestruturação do serviço de transporte, até então
precário, garantindo o abastecimento das tropas e diminuindo a escassez de água
e alimentação. Por sua atuação no episódio, o militar foi elevado, alguns anos
após a guerra, à condição de Patrono da Intendência do Exército Brasileiro.
Para facilitar a comunicação com o restante do país, uma linha telegráfica foi
construída entre Monte Santo e Queimadas, as duas principais bases de operação
militar. Era a primeira vez, na história do Brasil, que se utilizavam os
serviços telegráficos para noticiar um conflito armado. Outros eventos
ocorridos poucos anos antes, como a Revolta da Armada e a Revolução
Federalista, não dispuseram da mesma cobertura.
Do teatro da guerra, as notícias eram despachadas para Monte Santo e dali
expedidas via telégrafo para outras cidades do país, em especial Salvador, Rio
de Janeiro e São Paulo, onde eram publicadas pelos órgãos de imprensa. Dos
jornais que se ocuparam do caso, destaca-se O Estado de São Paulo, o qual teve
como enviado especial o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões.
Aliás, dentre os cronistas que cobriram a guerra, Euclides foi o que mais
tratou de Monte Santo, levando a elegante urbe para as páginas consagradoras da
sua obra imortal. Na correspondência do dia 6 de setembro de 1897 (a primeira
ali redigida), o escritor não esconde sua fascinação diante da povoação que vê
pela primeira vez: “Ninguém pode imaginar o que é Monte Santo a três
quilômetros de distância (...) Não conheço nenhum de aspecto mais pitoresco que
o deste arraial humilde perdido no seio dos sertões. O viajante exausto,
esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo imenso ao avistá-lo,
depois de galgar a última ondulação do solo, com as suas casas brancas e
pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até à planície
vastíssima”.
Em crônica do dia 8 do mesmo mês (sempre para o citado jornal paulista), volta
Euclides a ocupar-se da antiga vila, agora exaltando a beleza natural e
arquitetônica do monte da Santa Cruz: “Com o extraordinário luar destas últimas
noites o seu aspecto é verdadeiramente fantástico, destacam-se nitidamente as
capelinhas brancas e à luz reflexa e dúbia da lua as vertentes, que se
interrompem em paredões a prumo em virtude da própria estratificação da rocha,
dão a ideia de muralhas imensas (...).
Não demorou muito, e a cidade veio a figurar também nas páginas vibrantes d’Os
sertões, a obra prima da literatura nacional: “Monte Santo é um lugar lendário
(...) Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos; tendo, noutros,
como leito, a rocha viva talhada em degraus ou rampeada, aquela estrada branca,
de quartzito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões da quaresma
e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e
audaciosa”.
Em 1973, no auge da ditadura militar, o exército foi de novo a Monte Santo,
dessa feita para treinar tropas, com vista ao combate a eventuais ações
guerrilheiras. Ali permaneceu por cerca de uma semana, realizando manobras
militares e sobrevoando a região. Na ocasião, um busto do marechal Bittencourt
foi fixado em frente ao edifício da antiga prefeitura municipal, a mesma que
outrora servira de sede ao quartel-general das forças expedicionárias.
O retorno do exército à área do conflito levou pânico e medo à população
sertaneja, a qual ainda guardava na memória as marcas da tragédia de 1897. A
presença das aeronaves, com seus voos rasantes e ensurdecedores, cobriu de
susto os moradores de Monte Santo, que, apreensivos, se questionavam sobre o
porquê de tão agitada operação. Operação que poderia ter transcorrido sem
maiores incidentes, se não fosse o histórico de violência praticada pelo
exército contra a brava gente sertaneja.
No inicio dos anos 1980, foi removido para Monte Santo, sob patrocínio de
autoridades locais, o famigerado canhão Withowort 32, conhecido pelos
sertanejos como “a matadeira”. Postado na praça central da cidade, ali divide
espaço com a estátua do Conselheiro e com o busto do marechal Bittencourt.
Na mesma década, também em Monte Santo, despontava o Movimento Histórico de
Canudos, tendo como objetivo, entre outras coisas, o resgate da memória
sertaneja e a revalorização da missão do Conselheiro.
Não há dúvida de que a localização geográfica e a condição de cidade santuário
contribuíram para que Monte Santo, desde o início, assumisse o protagonismo no
que diz respeito aos fatos de Canudos. Mas o protagonismo de Monte Santo se
deveu, acima de tudo, à presença de sua gente no arraial de Canudos, onde, ao
lado do Conselheiro, empenhou-se até o fim na luta por uma sociedade justa,
fraterna e solidária.
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