Jornalista: Joel Silveira (Livro: Tempo de Contar)
Vejamos,
abaixo, o texto na íntegra dessa famosa Entrevista, e tire suas conclusões.
PENITENCIÁRIA
DE SALVADOR, março de 1944.
Em meio à conversa, fiz a pergunta inesperada: os antigos companheiros e comandados de
Lampião se entreolharam, silenciosos. Angêlo Roque (Labareda) baixou a cabeça e
Saracura, a fisionomia carregada, pois se a olhar pela janela aberta. Segundos
depois, CAHEADO me encara com seu rosto de criança, ilumina-se num sorriso
cândido e me diz:
- A gente
matava como uns danados. - E acrescenta: - Mas a culpa não era da gente.
ÂNGELO ROQUE,
o " velho Ângelo", aprovou com a cabeça. E, Cacheado continuou:
- Se os homens
educados não auxiliassem a gente com MUNIÇÃO, a história seria outra. Não teria
se dado nada do que se deu. Pensando bem, os criminosos são eles. Uma pessoa de
bem não ajuda bandido.
É uma tarde de
quinta-feira, e estamos aqui, num dos mais amplos salões da Penitenciária da
cidade de Salvador, diante dos seis famosos ex-cangaceiros: Volta Seca, Ângelo
Roque (Labareda), Saracura, Cacheado, Deus Te Guie e Caracol.
DEUS TE GUIE é
quase um menino, mas Ângelo Roque já vai se aproximando dos cincoenta anos: tem
um rosto grave, de uma tristeza séria. O sertão deixou nele profundas marcas -
as faces cortadas por rugas como talhos e nos olhos um brilho de sol
inclemente. Antes de começar a tomar os meus apontamentos, o diretor da
penitenciária fizera um pequeno discurso aos seis antigos bandoleiros. Aquilo
seria, disse ele, uma espécie de mesa-redonda, na qual o jornalista e os prisioneiros
debateriam assuntos ligados ao cangaço.
Que cada um
contasse a sua história, as razões que o haviam levado a deixar a Lei, suas
roças e seus empregos para a tremenda aventura do banditismo sertanejo. E que
falassem, com toda a sinceridade.
ÂNGELO ROQUE
fez um aparte, numa voz rouca:
-Eu sempre falei com sinceridade.
E me conta,
dando início á conversa, que entrou para o cangaço para desafrontar a sua
honra. "Sempre fui um homem de ordem. Sempre vivi honestamente do meu
trabalho".
Sua história é
simples, e escuto do próprio "velho Ângelo", na sua linguagem seca e
típica. Ângelo Roque da Costa nasceu em Jatobá, Tacaratu, em Pernambuco. Entrou
para o banditismo em 1928, quando conheceu LAMPIÃO. Seu primeiro encontro com
VIRGULINO foi na Fazenda Arrasta-Pé, na margem baiana do São Francisco.
-Não me
esqueço da primeira impressão que LAMPIÃO me deu: a de um homem tão sujo que
dava nojo.
Pouco antes de
1928, em Jatobá, um soldado da força local DEFLOROU uma irmã de Ângelo, é o que
me diz. O caso foi para a Justiça, mas o soldado era protegido da política
"de cima" - as queixas de Ângelo de nada valeram.
- "Então
resolvi fazer justiça com as minhas próprias mãos. Fui na casa do soldado, mas
só estava lá a mulher dele. Esperei na porta até que ele chegasse. De noitinha
ele apareceu, e então eu lhe disse que ia morrer. Atirei duas vezes. O
"praça" caiu de bruços, mas não morreu. Me disseram depois que andou
muito tempo á beira da morte, mas não morreu".
O medo da
prisão jogou Ângelo Roque na caatinga: durante vários meses, andou como um sem
pouso pelos áridos caminhos do sertão. Pouco aparecia nas cidades. Trabalhou em
roças, dormia no mato. Conheceu, depois, os cangaceiros CORISCO e ARVOREDO, e
os dois lhe explicaram que a única maneira de viver tranquilo, longe da
polícia, era entrar para o cangaço. Em 1928, quando conheceu LAMPIÃO, se
decidiu. Mas demorou pouco tempo ao lado de VIRGULINO.
- Lampião não podia ficar parado num canto, e eu nunca fui homem viajeiro. Além disso, de vez em quando, a gente se encrencava. Um dia tive uma briga mais séria com ele, por causa de uma coisa sem importância. A gente estava de emboscada, na caatinga, á espera de um caminhão. Mas depois aconteceu a disgraceira.
O culpado da
"disgraceira", me explica Ângelo Roque, foi o promotor de Coité que,
em 1941, requereu na Justiça estadual a prisão do velho e dos seus
companheiros.
- Este homem
sempre me quis o mal, não sei por quê. Nunca fiz nada com ele.
A Justiça foi
implacável para com os antigos reis do cangaço: Ângelo e seus amigos foram
condenados, cada um, a trinta anos de prisão.
Há meses
atrás, o antigo bandoleiro trabalhou numa Horta da Vitória da Legião Brasileira
de Assistência e, diariamente, sem qualquer vigilância, tomava o bonde e ia
para o bairro de Brotas, como um passageiro comum.
De todos os
seis cangaceiros presentes, o único que tentou fugir da cadeia foi
"VOLTA-SECA".
Pergunto ao
famoso cabra de LAMPIÃO, seu lugar-tenente, o que pretende fazer ao recuperar a
liberdade. VOLTA SECA - é o mais vivo, o mais alegre e o mais inteligente de
todos - me responde num sorriso:
- "VOU
CUIDAR DA MINHA VIDA".
- E depois ?
- "Me
meto num lugar bem longe, tão longe que ninguém vai ouvir falar de mim. Mudo o
nome, e vou viver tranquilo. O que passou, passou".
Sua FUGA, há
pouco mais de um ano, foi um prodígio de habilidade e sangue-frio: com uma lima
rústica, VOLTA SECA conseguiu serrar uma das grades da prisão, e seu corpo fino
e elástico, corpo de menino, deslizou pela pequena abertura e, em seguida, por
um reduzido espaço entre fios elétricos do muro da penitenciária.
- " Em
pouco mais de vinte dias, fui a pé daqui da Bahia até Santa Luzia, em Sergipe.
Não fui em menor tempo, porque um companheiro meu, que também havia conseguido
escapar, adoeceu no caminho ".
Converso com
esse rapaz de 26 anos de idade (parece ter apenas vinte), e ás vezes me esqueço
que foi ele próprio, há uns dez anos, quem comandou uma série de horrores numa
fazenda de uns parentes meus, no Sul de Sergipe. Seu bom humor é contagiante, e
é impossível deixar de rir quando VOLTA SECA nos revela, na sua maneira
dialogada, ecos de sua fuga recente:
-" Uma
tarde cheguei numa roça e pedi emprego. A dona da roça me olhou, perguntou
depois: " VOCÊ NÃO É O VOLTA SECA ?". Dei um pulo para trás, gritei: "DEUS
ME LIVRE, MINHA SENHORA ! ISSO É COISA QUE SE DIGA ! ".
Então a moça
continuou: "POIS JA VI O RETRATO DE VOLTA SECA E O SENHOR SE PARECE MUITO
COM ELE. " Respondi:
"POIS
ENTÃO, DONA, ME PAREÇO COM O DIABO ! ".
Peço a VOLTA
SECA sua opinião sobre LAMPIÃO, e ele me responde:
-LAMPIÃO
sempre foi um homem dificil de explicar.
- Mas era
valente ? Perguntei-lhe.
- "
Homem, não sei. Rodeado de amigos e bem armados e dispostos, todo mundo é
valente... Nunca vi ele brigar sozinho. LAMPIÃO só andava rodeado, e assim
qualquer trabalho fica fácil "
Aponta para
ÂNGELO ROQUE, afogado na sua gravidade:
- Valente era
aquele ali. Isto sim. Já vi várias vezes o velho Ângelo enfrentar sozinho
vários "macacos" (soldados das volantes).
Também VOLTA
SECA brigou, certa vez, com LAMPIÃO. Foi uma briga muito séria, me diz ele, e
DEUS TE GUIE conforma.
-Naquele dia,
eu tinha certeza que um dos dois ia deixar de viver: ou VOLTA SECA ou LAMPIÃO.
O
mal-entendido entre o Chefe do bando e o seu cabra mais famoso teve lugar em
1931, após um duro combate com a força policial. Um dos bandoleiros,
"BANANEIRA", havia sido ferido pelos soldados, e, ficara estendido na
estrada. VOLTA SECA procurou LAMPIÃO e pediu-lhe autorização para ir buscar o
amigo ferido. VIRGULINO achou que a empresa era perigosa e que a ida de VOLTA
poderia facilitar aos soldados a pista do bando.
Mas VOLTA SECA
não podia deixar o companheiro morrer, explica DEUS TE GUIE. Então, surgiu o
primeiro atrito entre os dois. Em companhia de CARACOL (também presente á
entrevista, com seu rosto parado), VOLTA SECA conseguiu arrastar BANANEIRA até
um lugar seguro. Mas BANANEIRA estava muito ferido e teve que ser transportado
numa rede.
-BANANEIRA
pesava como o diabo - me diz VOLTA SECA.
Quando os dois
chegaram com o companheiro ferido, LAMPIÃO e o resto do bando já haviam ido
embora. Voltaram depois, e VIRGULINO procurou VOLTA SECA:
-
"Menino, a gente tem que andar depressa. Os "macacos" estão por
perto. Solte o ferido ai, e monte no seu cavalo."
VOLTA SECA
respondeu que não podia fazer aquilo. BANANEIRA iria com ele - e montou o
ferido no seu próprio cavalo. VIRGULINO, enfurecido, ordenou a VOLTA SECA que
desmontasse BANANEIRA.
- "Então, o sangue me subiu á cabeça. Disse que não desmontava. LAMPIÃO pegou a
carabina, mas fui mais ligeiro do que ele. Apontei bem no peito dele e lhe
disse: "Se o senhor bulir com as pestanas, atiro. "LAMPIÃO estava
verde de raiva. Ficamos assim um tempo grande, um olhando para o outro. Depois
os companheiros serenaram a coisa. De noite no meu rancho, fui avisado por
QUIXABEIRA e GAVIÃO que LAMPIÃO ia me matar no dia seguinte. Então dei o fora"
VOLTA SECA
tinha apenas 14 anos quando entrou para o bando de VIRGULINO. Nascera em
Itabaiana, no centro de Sergipe, fugiu de casa menino e andou sozinho pelo sertão.
Encontrou-se com LAMPIÃO, em Goroso, no município de Bom Conselho, na Bahia.
Ele me diz agora que no princípio apanhava quase que diariamente de LAMPIÃO. De
Virgulino e dos outros:
- "Todo
mundo gostava de enxugar a mão em mim. Até o velho ANGELO ROQUE.
Mas depois endureci o cangote, e o primeiro que me apareceu com ares de pai, recebi com a mão no rifle ".
VOLTA SECA me
garante que quase todas as histórias que contam a seu respeito não são
verdadeiras.
-
"Gostavam de contar, por exemplo, que eu só matava á traição. Uma calúnia.
Eu posso ser tudo, meu senhor, posso ser ruim de doer, uma coisa , no entanto,
não sou: covarde e traidor. Nunca matei ninguém pelas costas, mas sempre em
defesa própria. E sempre fui amigo dos meus amigos. Eu podia ter matado
LAMPIÃO, naquele dia da briga, matar pelas costas, friamente. Mas não matei,
porque era feio".
Pergunto a
VOLTA SECA os nomes de alguns dos coiteiros mais importantes e mais chegados ao
bando. Ele sorri e responde:
-"O QUE
PASSOU, PASSOU".
Mas, o cangaceiro
CACHEADO toma a palavra:
- "Quase
todo dono de fazenda era coiteiro. Os coiteiros sempre foram a nossa perdição.
Eles nos davam dinheiro, comida e munição. E eram sempre eles que nos entregavam
aos macacos (policiais)."
VOLTA SECA
tenta inocentar os coiteiros:
- "Eles
tinham que ajudar a gente. Senão a gente queimava as fazendas deles e matava o
gado".
O CANGACEIRO
"SARACURA", de pele esverdeada pelo impaludismo, tem o olhar
distante, perdido no mundo lá fora que a janela aberta deixa ver: o telhado
comprido da estação de Calçada, as casas equilibradas no morro ao lado, a
chaminé comprida da fábrica. É um rapaz calado que de vez em quando morde os
lábios. Suas respostas são quase monossilábicas. PERGUNTO:
- Como você
SARACURA, começou essa vida de bandoleiro? Ele responde:
- A gente
nunca sabe.
Ângelo Roque é
da mesma opinião.
- "Nunca
se sabe. Uma coisa digo ao senhor: "NINGUÉM NASCE BANDIDO". Vamos
dizer que aquele soldado casado não tivesse feito mal á minha irmã: tudo seria
diferente. Eu continuaria na minha rocinha, talvez tivesse hoje umas economias,
talvez até fosse dono do sítio. Nunca fui um homem da maldade. Depois que a
gente vai pelo caminho, é que é o diabo.
O medo da prisão transforma o indivíduo NUMA FERA".
O cangaceiro
CARACOL, tão calado, parece despertar, e começa a falar numa espécie de
explosão:
- Por ai só se
fala nas crueldades dos bandidos. Mas o senhor ande pelo sertão, converse com o
povo pobre de lá: todo mundo dirá ao senhor que muito mais barbaridades do que
nós, praticavam os soldados da força volante. E os coronéis, também. Eu poderia
citar casos e mais casos de coisas horrorosas que eles fizeram por estes
sertões. Bandidos como a gente. Por isto é que, em muitas cidades e povoados,
nós, os "cabras", éramos recebidos como salvadores. Em certos
lugares, meu senhor, o povo tinha mais confiança na gente do que nos
"macacos" das volantes.
VOLTA SECA aparteia:
- "É isso mesmo: os crimes dos "macacos" foram iguais aos nossos. Mas nada aconteceu com eles. E com os coiteiros ? Os homens importantes e ricos do sertão, que nos ajudavam, nos davam armas, dinheiro e comida, continuam ricos e importantes."
CACHEADO volta com seu riso de menino:
- "A gente matava muito, a gente matava como uns danados. Mas a policia e os coronéis, matavam muito mais."
Ângelo Roque faz um gesto com a mão, e o silêncio volta á sala. Agora só se ouve a voz grossa do " velho Ângelo", que diz, o rosto fechado:
- "Mas não vamos falar mais nisso. O que passou, passou, já disse. O que adianta agora é que nos dêem a liberdade prometida. Sou ainda um homem moço, quero ficar livre, trabalhar e cuidar de minha vida."
VOLTA SECA se volta para mim:
- "Veja o que o senhor pode fazer por nós. Até agora ninguém nos ajudou. Chegam aqui os doutores, pedem para ver a gente e saem prometendo mundos e fundos. Mas a verdade é que continuamos aqui. Já passei um tempo medonho na prisão, mais de dez anos, quero a liberdade. Fugi, há pouco tempo, porque não aguentava mais. Se eu não fugisse ficava maluco"
O cangaceiro "DEUS TE GUIE" acrescenta:
- "Seu
Ângelo não gosta que a gente fale, mas é preciso que se diga que houve muita
injustiça por esses sertões. Por que foi que "ARVOREDO" ficou
criminoso? Por causa das barbaridades que os "macacos" fizeram com a
sua familia."
E é VOLTA SECA
quem me conta a história:
- "O pai
de ARVOREDO vivia em Santo Antônio da Glória. Numas eleições, o velho deixou de
votar no chefe politico do lugar. O chefe mandou uma volante no seu sítio e
eles fizeram horrores: estupraram as duas filhas e mataram os quatro filhos do
velho, inclusive duas criancinhas de berço. Só escapou ARVOREDO. Acabou
bandido. E o velho se tornou coiteiro. Foi preso., morrendo aqui nesta
penitenciária, há dois anos atrás, quase com oitenta anos."
O próprio
SARACURA parece, agora, sair do seu sono triste. Pede a palavra e conta:
- " Posso
falar do meu caso. Peguei na espingarda quase obrigado, para mim vingar das
misérias que fizeram com meu pai. Um dia, no Coité, uma volante invadiu o nosso
sítio. Queriam á força que meu pai desse notícia dos cangaceiros, como se ele
fosse um coiteiro. O velho não sabia de nada, e então os "macacos"
começaram a supliciar o pobre: arrancaram as barbas dele, fio a fio, arrancaram
suas unhas com alicate; se o senhor pensar que estou mentindo, vá lá no Coité e
procure André Paulo Nascimento, que mora nas redondezas. É o meu pai. Ele dirá
ao senhor se estou ou não falando a verdade. Ele mostrará ao senhor o estado em
que ficaram seus dedos. E eu próprio, antes de pegar na espingarda, fui um dia
violentamente espancado na Fazenda Curral, perto do Coité. Os
"macacos" haviam dito que eu era coiteiro, mas na verdade é que, até
então, eu nunca vira um bandido na minha vida".
SARACURA me
revela mais que é casado e tem três filhos, que de vez em quando o visitam.
A conversa
chega ao fim, e peço aos antigos companheiros de Lampião que permitam ao meu
fotógrafo uma série de instantâneos, coletivos e individuais.
Instintivamente,
"DEUS TE GUIE" abotoa a blusa e passa a mão nos cabelos lisos.
"VOLTA SECA" diz, num sorriso:
- "Só
deixo tirar meu retrato se o senhor mandar uma cópia para mim".
E quando o
violento magnésio da câmara fotográfica do meu amigo Brito rebenta na sala,
como um tiro de canhão, o ex-lugar-tenente do Capitão VIRGULINO dá um pulo da
cadeira:
-" Um
tiro desgraçado ! Parece pólvora seca".
E ao lhe pedir
uma pose especial, "VOLTA SECA" chega até a janela aberta e diz:
- "Quero
tirar um retrato olhando para fora, com a cara triste. Para mostrar aos
doutores que estou doidinho para sair daqui."
Há uma larga
distribuição de charutos e, ao se despedir, o velho "Ângelo", aperta
minha mão com força:
- "Disponha aqui de um criado ás ordens. Desminta as calúnias que dizem a nosso
respeito e veja o que o senhor pode fazer por nós..."
PENITENCIÁRIA
DE SALVADOR/BAHIA, MARÇO DE 1944.
Fonte: Volta
Seca
https://www.facebook.com/notes/itabaiana-grande/entrevista-de-cangaceiros-na-penitenci%C3%A1ria-de-salvador1944/729860460384315
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