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sábado, 6 de maio de 2017

VESTÍGIOS DE UM CINEMA


Há 85 anos, Adhemar Albuquerque filmava o primeiro curtametragem do cinema cearense. O filme Temporada Maranhense de Foot-Ball no Ceará, que estreou em outubro de 1924, no Cinema Moderno, foi escolhido pela Associação Cearense de Cinema e Vídeo como marco do início da produção cinematográfica do Estado. – Firmino Holanda (2009).

Adhemar Albuquerque

Podemos afirmar que a produção cinematográfica do Ceará iniciou-se em 1924, com um curta-metragem dirigido por Adhemar Bezerra Albuquerque. Mas lembremos que antes dessa realização ocorreram poucas outras, como nos dão conta os esparsos registros da imprensa de Fortaleza. Tais películas foram rodadas por anônimos cinegrafistas da década anterior. Poderiam ser trabalhos de diretores visitantes, vindos de cidades mais desenvolvidas nessa prática. Talvez fossem eles “cavadores”, tão comuns naqueles tempos pioneiros, notadamente no sudeste do Brasil – ou seja, seriam profissionais que se aventuravam “cavando” algum financiamento junto às elites, de centros urbanos ou do interior, para manterem suas atividades.

O pesquisador Ary Bezerra Leite registra dois daqueles filmes cearenses predecessores da citada investida cinematográfica de Adhemar Albuquerque. “No dia 1° de abril de 1910, o Cinema Rio Branco exibia o documentário A Procissão dos Passos, com destaque na publicidade para o fato de ser este o 1° filme rodado no Ceará. Além dessa informação, não temos nenhum outro esclarecimento. Desconhecemos quem o teria feito, se algum conterrâneo ou algum cineasta visitante que aqui tenha aportado. Um segundo filme produzido em nossa terra, igualmente sem créditos de seus realizadores, foi “Ceará Jornal”, exibido no Riche, no dia 26 de fevereiro de 1919”.

Um outro título, entre as mais antigas referências a filmes potencialmente cearenses, é o media-metragem “O Ceará no Centenário da Independência“ (1922). Poderia ser esta uma produção local, mas nada nos dá tanta certeza. Talvez o nosso mais remoto filme, que fisicamente resistiu ao tempo, seja aquele conhecido pelo título Fortaleza de 1920. Também de autor anônimo, foi resgatado por Paulo Salles, que o incluiu num documentário seu sobre a capital cearense da década de 1970. Naquela velha fita se faz um passeio pela paisagem urbana, por seus pontos mais progressistas e turísticos (Passeio Público, Praça do Ferreira, comércio central etc). Trata-se de um retrato de nossa belle époque. Temos uma sucessão de travellings suaves, provavelmente colhidos por câmera posicionada dentro de um bonde. Curiosamente, nesse filme, sobre uma cidade litorânea, o mar se faz ausente. Quanto ao ano assinalado no título, é mais prudente nele reconhecer uma alusão geral à década e não precisamente àquele ano de 1920.

Mas, voltando ao tema inicial, para esse ano de 2009, a Associação Cearense de Cinema e Vídeo (ACCV) instituiu uma data comemorativa alusiva ao surgimento do cinema em nosso Estado. Ficou assim estabelecido que a exibição daquele filme realizado por Adhemar Albuquerque seria esse marco. O título desse curta-metragem, que não se preservou, era “Temporada Maranhense de Foot-Ball no Ceará”. Estreando no dia 15 de outubro de 1924, no Cinema Moderno, sala no centro de Fortaleza, tratava-se de um documentário sobre as partidas entre os times Ceará, América, Guarany e Maranhenses, ocorridas na cidade.

Adhemar Albuquerque (1892-1975), que em 1934 registraria sua empresa Aba Film (de cinema e fotografia), é reconhecido como pioneiro das realizações cinematográficas no Ceará. Aqueles remotos e imprecisos registros jornalísticos das primeiras imagens filmadas no Estado não revelam a existência de produtoras do ramo instaladas em seu território. Daí, a celebração dos 85 anos de produção cinematográfica cearense não ocorre unicamente em função do registro de um primeiro filme aqui realizado. Está valendo também o propósito empresarial e a continuidade de sua investida nesse setor. Adhemar Albuquerque, um funcionário da agência do Bank of London, em Fortaleza, desde 1924 fazia filmes. Eram curtos registros documentais, rodados conforme as solicitações do pequeno mercado local. Seu maior cliente, a partir dos anos 1930, seria a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), instituição para a qual sua empresa documentava suas atividades de açudagem, irrigação etc.

Um dos filhos de Adhemar, o futuramente renomado fotógrafo retratista e publicitário Chico Albuquerque, tornou-se seu operador de câmera mais constante. Antônio, outro filho de Adhemar, também era fotógrafo e se recorda dessa pioneira empresa do pai, que pelo visto tinha um caráter bem familiar. “A primeira câmera que ele comprou foi uma Debrie, fabricada na França. Depois ele comprou uma Bell & Howell. Eu era garoto naquele tempo e ajudava ele a processar os filmes. Copiava e fazia editagem dos filmes, também em casa. Os filmes eram mudos. Depois fez alguns filmes que foram sonorizados com descrição, narração”.

A Aba Film captava momentos da vida de Fortaleza ainda muito provinciana (as visitas do ator Raul Roulien ou dos Presidentes da República Getúlio Vargas e Washington Luís; os bailes e desfiles cívicos) e também aspectos de cidades do interior do Estado. No último caso, destacam-se imagens de Juazeiro do Norte e de Padre Cícero Romão. Mas, na história de empresa, que em cinema atuou até o início dos anos 1940, o grande momento, com polêmica repercussão nacional, foi o da produção das únicas imagens de Lampião junto a seu bando de cangaceiros.

Em 1925, Adhemar Albuquerque lançou o curta “O Juazeiro do Padre Cícero e Aspectos do Ceará”. Nessa década, Padre Cícero e sua cidade foram vistos em alguns pequenos documentários. É provável que um desses filmes tenha sido o da Comissão Rondon, infelizmente perdido, intitulado “Inspeção no Nordeste” (ou “Inspeção das Obras Contra as Secas”), de 1922. Em 1925, foi lançado “O Nordeste Brasileiro”, produzido pela IFOCS, onde Padre Cícero é visto em cena. Como a Aba Film fez registros para tal órgão federal, não seria improvável ser esta uma realização sua.

Nas cenas preservadas e mais famosas do taumaturgo de Juazeiro do Norte, ele é visto inaugurando sua própria estátua numa praça daquele município. O fato se deu a 11 de janeiro de 1925. Seu parceiro político, o deputado federal Floro Bartolomeu, arquitetou a homenagem. No momento, crescia em Juazeiro a oposição dos “filhos da terra” contra os adventícios que cercavam o padre (e prefeito) daquela cidade. Vindo da Bahia, o médico Floro, eleito deputado sob as asas desse líder religioso, seria um desses forasteiros indesejados por certos grupos locais. Portanto, exaltar a figura de Padre Cícero, com discursos, desfile de cadetes da Escola de Aprendizes de Marinheiros de Fortaleza, banda de música etc., fazia parte da estratégia daquele deputado. E isso merecia ser visto em película, na tela grande.

Em setembro de 1925, quando se acirrava a oposição municipal, os correligionários do Partido Conservador, ao qual pertenciam Floro e o Padre Cícero, armaram a visita do Presidente Estadual, dr. Moreira da Rocha, a Juazeiro do Norte. Foi a apoteose, contando com todo o secretariado do governo, deputados aliados etc. Entre jornalistas e fotógrafos, distinguia-se também um cinegrafista. Seu trabalho resultou num documentário produzido pela Aba Film, mais tarde exibido sob o título O Juazeiro do Padre Cícero e Aspectos do Ceará. Suas cenas posteriormente foram reunidas a outras, em nova montagem, onde se via a citada inauguração da estátua, compondo-se um documentário sonorizado feito após a morte do chefe religioso,ocorrida em 1934. No filme exalta-se o progresso da cidade. Essa compilação, Padre Cícero, o Patriarca de Juazeiro, foi assinada por Alexandre Wulfes, cineasta de outro estado, que adquirira material fílmico produzido pela empresa de Adhemar Albuquerque.

Outros títulos produzidos por Adhemar em 1926 demonstram uma temática variada: “A Festa no Iracema”, sobre um baile em elegante clube de Fortaleza; “A Parada Militar de 7 de Setembro”; “A Indústria do Sal no Ceará”; e “A Visita do Dr.Washington Luís ao Ceará”. Em 1928, duas reportagens curtas da Aba Film apontam sua relação aproximada com o poder oficial do Estado, na época governado por José Carlos de Matos Peixoto: O Banquete Oferecido pela Colônia Cearense, no Rio, ao Dr.Matos Peixoto e A Visita de S. Excia. Dr. Matos Peixoto ao cais do Porto, no Rio.

Por outro lado, quando já registrada comercialmente, a empresa Aba Film também produziu o atípico documentário de Benjamim Abrahão, ex secretário de Padre Cícero, sobre o bando cangaceiro de Virgulino Ferreira, o famigerado Lampião. Considerado esse filme um atentado “contra os foros da nacionalidade”, seu copião seria apreendido pelo Departamento Nacional de Propaganda, em abril de 1937. Eram tempos inapropriados para a circulação de imagens desfavoráveis à ordem pública idealizada pelo poder central. Presidindo o País desde a chamada Revolução de 1930, logo Getúlio Vargas daria o golpe instituindo a ditadura do Estado Novo, em novembro do mesmo ano.

Quando Vargas revisitou Fortaleza (1940), a Aba Film novamente o filmou, dessa vez, em cores (embora Antônio Albuquerque nos garantisse que eles não trabalhassem com filme colorido…). A película , de 35mm, traz intertítulos com a marca dessa empresa. Na fita, vemos o ditador chegando de avião, sendo recebido por alunas da Escola Normal, desfilando em carro aberto para a multidão ordeira; ao lado do interventor estadual Menezes Pimentel; visitando o departamento de piscicultura do Dnocs; em solenidade cívica no Parque da Liberdade (Cidade da Criança), centro de Fortaleza; num banquete a black-tie, no Ideal Clube; etc.

Insistimos na descrição dessas cenas para que se perceba fundamentalmente o que vem a ser um registro do tipo ritual do poder , termo cunhado pelo estudioso Paulo Emílio Sales Gomes. Trata-se, portanto, de um registro mudo, mas eloquente ideologicamente, a partir de suas imagens. O povo, no seu devido lugar, é a massa compondo o panode- fundo para as autoridades que lhe impõem a sua ordem. No mais, predominam os salamaleques que caracterizam o “Poder & Cia.” A produção brasileira documental, no início do século XX, era um desfile infindável de governantes, embaixadores, nobres, bispos, militares, industriais. Para confirmar essa regra, a Aba Film preparou sua exceção, que foi o citado registro de Benjamim Abrahão sobre o cangaço nordestino. Quanto ao cinema de ficção, outra exceção nesse panorama documental da empresa, foi a sua participação na produção carioca “Jangada”. Dirigido por Raul Roulien, esse longa-metragem foi rodado em Fortaleza nos idos de 1947. Dois anos depois, prestes a ser concluído, esse trabalho se perdeu num incêndio no Rio de Janeiro.

Firmino Holanda é professor e pesquisador de cinema da Universidade Federal do Ceará. O texto acima escrito por Firmino baseia-se em matérias escritas suas registradas em jornais, revistas e em livro (“Ceará de Corpo e Alma”, 2002). Sobre a produção cinematográfica cearense, o autor escreveu um livro ainda inédito. A citação de Antônio Albuquerque é retirada de “Cinema Cearense: Alguma História” (1989), documentário dirigido por Firmino Holanda. A citação de Ary Bezerra Leite provém de seu “Fortaleza e a Era do Cinema, Volume I “(1995), sobre as salas de exibição da cidade, livro que contém ainda informações extras a respeito de Adhemar Albuquerque.

http://cinemacearense.com.br/nota/1288

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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