*Rangel Alves da Costa
Ao meu lado, bem em cima da mesa onde escrevo agora, há um pequeno cacto, um filtro de aguardente e um carro-de-bois de enfeite. Todos esses objetos de feição sertaneja, e que servem tanto de adoração como inspiração, agora foram acrescidos de um pequeno barco.
O barco chegou-me ontem às mãos. Foi feito artesanalmente por um conhecido. Possui pouco menos de um metro de cumprimento e de largura estreita, afinando nas pontas, ou na proa e na popa, como dizem os ribeirinhos canoeiros. Os mastros são de madeira fina e os panos de um tecido grosso e parecendo envelhecido
Geralmente os barcos, mesmo os artesanais e de enfeite, possuem nomes nas laterais da madeira: Beiradeiro, São-Franciscano, Rei das Águas, Carranca, Moxotó, Vaporzinho. Mas esse não. Nas laterais pintadas nas cores azul e dourado não há nenhuma identificação. Talvez eu mesmo encontre um nome ajustado ao que o meu olhar avista: Porto Solidão.
Sim, pois Porto Solidão, mesmo sendo um nome um tanto melancólico, creio ser um nome bonito a uma embarcação, principalmente sendo um barco que doravante permanecerá solitário num porto entre quatro paredes, numa estrutura de ferro logo adiante da mesa onde escrevo agora.
Agora mesmo o meu olhar avista o Porto Solidão. Quieto, silencioso, impávido. Não se balança nas águas do cais, não se embalança pelas ondas do porto, não dança no festim das águas que chegam e que voltam. Seus panos também não tremulam, não são soprados por qualquer vento ou ventania. Tudo o que se tem é uma calmaria sem gaivotas.
Também um Porto Solidão que homenageia a grande música de Jessé: Se um veleiro repousasse na palma da minha mão, eu sopraria com sentimento e deixaria seguir sempre rumo ao meu coração. Meu coração a calma de um mar que guarda tamanhos segredos de versos naufragados e sem tempo. Rimas, de ventos e velas, vida que vem e que vai, a solidão que fica e entra me arremessando contra o cais...
Um barco que é veleiro, que é nau, que é escuna, que é canoa. Ele está perante o meu olhar, em cima de ferro ao invés de águas, então o transformo na embarcação que quiser. Igualmente imagine em qualquer rio, em qualquer mar, em qualquer leito d’água. Ele está ali, imóvel, parado, mas de repente eu posso subir nele e seguir ao porto que desejar.
As coisas da vida são assim. Não será sempre necessário que estejamos na materialidade das situações para que façamos do sonho ou da imaginação o que desejamos. Aqui ao lado um pequeno carro-de-bois que posso imaginar estar ouvindo o seu rangido, avistando a poeira da estrada, sentindo o mugido e o cansaço dos bois. Assim também com o meu Porto Solidão.
É um barco apenas de enfeite, mas é um barco que posso viajar no instante que desejar. Ora, se ao olhá-lo me vejo subindo no seu leito, se ao olhá-lo posso me avistar singrando as águas, se ao olhá-lo posso me sentir nas distâncias do porto, então é um barco que não está somente aqui, ali, perante o meu olhar, mas também nas águas de minha imaginação.
Talvez eu viaje mesmo. Fico imaginando uma distância azul e sem norte. Apenas seguindo e seguindo, rumando pelo destino das águas até um porto qualquer. Mas talvez jamais queira encontrar um porto, um cais, um pedaço de chão. Como seria viver tendo como norte os horizontes, sentido a presença das gaivotas, adormecendo e acordando na valsa das ondas, no bailado das calmarias.
Apenas um sonho. Não rio nem mar adiante. Apenas um barco. Ele está tão solitário quanto eu. Ele é um Porto Solidão. E eu sou eu na solidão. Por hoje não viajaremos, não seguiremos a lugar algum. Talvez amanhã ou quando seus panos soprarem a felicidade.
Escritor
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