Por A Tarde, Rio de Janeiro, 27 jan. 1938
Há dias surgiu
por aí um telegrama a anunciar que o meu vizinho Virgulino Ferreira Lampião
tinha encerrado a sua carreira, gasto pela tuberculose, deitado numa cama, no
interior de Sergipe. Mas a notícia não se confirmou — e a polícia do Nordeste
continuará a perseguir o bandido, provavelmente o agarrará de surpresa e
mostrará nos jornais a cabeça dele separada do corpo. Seria de fato bem triste
que a punição dum indivíduo tão nocivo fosse realizada por uma doença. Ficam,
pois, sem efeito os ligeiros comentários inoportunos e apressados, que
ilustraram o canard.
Não é a
primeira vez que Lampião tem morrido. E sempre que isto se dá as notas com que
se estira o acontecimento deturpam a figura do bruto e manifestam a ingênua
certeza de que tudo vai melhorar no sertão. O zarolho se romantiza, enfeita-se
com algumas qualidades que se atribuíam aos cangaceiros antigos, torna-se
generoso, desmancha injustiças, castiga ou recompensa, enfim aparece
inteiramente modificado.
Esperamos e
desejamos longos anos essa morte — e ao termos conhecimento dela soltamos um
suspiro de alívio a que se junta uma espécie de gratidão. Teria sido melhor,
sem dúvida, que o malfeitor houvesse acabado nas unhas da polícia. Não acabou
assim, desgraçadamente, mas de qualquer forma o Nordeste se livrou dum
pesadelo.
Repousamos
algum tempo nesse engano, até que Lampião ressurge e prossegue nas suas
façanhas. Inútil agredi-lo ou emprestar-lhe virtudes que ele não entende,
ajudá-lo, fazê-lo combater os grandes, proteger os pequenos, casar donzelas
comprometidas. Lampião não se corrigirá por isso: permanecerá mau de todo,
insensível às balas, ao clamor público e aos elogios, uma das raras coisas
completas que existem neste país.
Tudo aqui é
meio-termo, pouco mais ou menos, somos uma gente de transigências, avanços e
recuos. Hoje aqui, amanhã ali — depois de amanhã nem sabemos onde haveremos de
ficar, como haveremos de estar. Abastardamo-nos tanto que já nem compreendemos
esse patife de caráter e inadvertidamente lhe penduramos na alma sentimentos
cavalheirescos que foram utilizados como atributos de outros malfeitores.
Deixemos isso,
apresentemos o bandoleiro nordestino como é realmente, uma besta-fera. Há pouco
mais de um ano, em condições bem desagradáveis, travei conhecimento com um
discípulo dele, um sujeito imensamente forte, alourado, vermelhaço, de olho
mau. Esse personagem me declarou que todas as vezes que praticava um homicídio
abria a carótida da vítima e bebia um pouco de sangue. Anda por aí espalhada a
longa série das barbaridades cometidas pelo terrível salteador, mas essa
confissão voluntária dum companheiro dele surpreendeu-me.
Isso prejudica
bastante o velho culto do herói, do homem que lisonjeamos para que ele não nos
faça mal.
Lampião se
conservará ruim. E não morrerá tão cedo. A vida no Nordeste se tornou demasiado
áspera, em vão esperaremos o desaparecimento das monstruosidades resumidas
nele.
Finaram-se os
patriarcas sertanejos que vestiam algodão e couro cru, moravam em casas negras
sem reboco, tinham necessidades reduzidas e soletravam mal. No pátio da fazenda
uns cangaceiros bonachões preguiçavam. E nos arredores grupos esquivos
rondavam, escondendo-se dos volantes. De longe em longe um emissário chegava à
propriedade e recebia do senhor uma contribuição módica.
Tudo agora
mudou. O sertão povoou-se e continua pobre, o trabalho é precário e rudimentar,
as secas fazem estragos imensos. Os bandos de criminosos, que no princípio do
século se compunham de oito ou dez pessoas, cresceram e multiplicaram-se, já
alguns chegaram a ter duzentos homens. A luta se agravou, as relações entre
fazendeiros e bandidos não poderiam ser hoje fáceis e amáveis como eram.
Jesuíno
Brilhante é uma figura lendária e remota, o próprio Antônio Silvino envelheceu
muito.
Resta-nos
Lampião, que viverá longos anos e provavelmente vai ficar pior. De quando em
quando noticia-se a morte dele com espalhafato. Como se se noticiasse a morte
da seca e da miséria. Ingenuidade.
A Tarde, Rio
de Janeiro, 27 jan. 1938
IN: RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.151-154.
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