ELISE JASMIN - tradução ANDRÉ TELLES
RESUMO O
trecho nesta página faz parte do artigo "A guerra das imagens: Lampião
descobre a fotografia", que integra o livro "Conflitos: Fotografia e
Violência Política no Brasil 1889-1964", com organização de Heloisa Espada
e Angela
Alonso, a ser lançado em dezembro pelo Instituto Moreira Salles.
*
Perseguidos
sem trégua durante aproximadamente 20 anos pelas forças da ordem, Lampião e seu
bando de cangaceiros atravessaram, devastaram e saquearam o sertão do Nordeste.
Desafiaram não só as autoridades policiais e políticas da região, como também o
poder central do Brasil.
Guerreiros
valentes para uns, brutos sanguinários para outros, os cangaceiros sob o
comando de Lampião atuaram de 1922 a 1938, data em que as forças da ordem
puseram fim a seu reinado de terror.
Surpreendidos
numa emboscada, Lampião, sua mulher e nove de seus companheiros encontraram a
morte em 28 de julho de 1938, na grota do Angico, no Estado de Sergipe. Foram
todos decapitados.
Suas cabeças
foram levadas de cidade em cidade e expostas em praças públicas com uma
mise-en-scène estudada. Em seguida, foram examinadas por médicos-legistas, que
nelas tentaram detectar estigmas de monstruosidade, e depois exibidas no museu
ligado ao Instituto Nina Rodrigues, da Bahia, até 1969, quando grandes
multidões se deslocavam para vê-las. [...]
Nascido em
1898 no sertão de Pernambuco, na região do Pajeú, que foi o berço do cangaço e
de onde saíram seus ilustres predecessores —Cabeleira, Antônio Silvino, Sinhô
Pereira, Casimiro Honório—, Lampião, a princípio, é fruto de uma sociedade
marcada pela violência, na qual é forte a tradição do banditismo de honra.
Lampião, em
1922, toma a frente de um movimento que, sob muitos aspectos, ele
revolucionará. Chefe de bando, instituíra rituais, valores e um estilo de vida
bem específico no seio do grupo.
Fez do cangaço um
modo de vida, até mesmo uma profissão; percorreu, dominou e devastou um imenso
território à frente de um grupo que contou até cem homens, fragilizando o
equilíbrio político e econômico do Nordeste brasileiro e colocando em perigo a
autoridade e a legitimidade do poder de Estado no sertão.
À frente de
seu bando de cangaceiros, Lampião atacava e arrasava propriedades e vilarejos,
extorquia parte da população, introduzindo o rapto em seus métodos crapulosos e
jogando sutilmente com os antagonismos de clã entre os potentados locais.
O recurso a
uma violência
sem limites, à castração, às mutilações, à marcação com ferro em brasa
permitiu a Lampião aterrorizar os sertanejos que não o apoiavam e consolidar sua
reputação de crueldade. [...]
LAMPIÃO EM
FILME
Enquanto as
forças da ordem não conseguiam agarrar o Rei do Cangaço em seu antro, este
último teve o topete de aceitar a oferta do fotógrafo e cameraman Benjamin
Abrahão para fazer um filme sobre a atividade de seu bando. [...]
[Nas cenas],
os cangaceiros aparecem nas mais diversas atividades, dançando, rindo, Lampião
costurando, lendo um livro de Edgar Wallace, sendo penteado por Maria Bonita,
dando ordens, exibindo com orgulho o armamento do grupo e demonstrando sua
capacidade militar, acariciando dois cães, escrevendo uma carta com uma pena,
passando em revista seu estado-maior. [...]
Nessa época de
sua vida, Lampião não tem mais como única ambição ser um chefe guerreiro;
exerce também outras funções no seio do grupo: introduziu a leitura do ofício
religioso, é encarregado das relações com os potentados locais e os ricos
fazendeiros a quem recebe em audiência, como um monarca; arbitra os litígios no
âmbito do grupo, lê, para seus companheiros, poemas de cordel e artigos de
jornais, sobretudo os que lhe concernem. [...]
Lampião
insistia em ser fotografado com um livro ou uma revista na mão, lendo artigos
sobre si próprio. Para um homem com pouca instrução, mas que alcançara grande
notoriedade, emulava os notáveis e políticos importantes do sertão, conquistara
um território e falava de igual para igual com as autoridades governamentais do
Nordeste, era de extrema importância mostrar que sabia ler e escrever.
Lampião lia
muito; escrevia em média três cartas por dia, a maioria pedidos de resgate,
cartas de ameaça ou desafios aos inimigos.
A escrita de
Lampião era quase fonética e evocava o sotaque nordestino, confinando-o à sua
região e à sua classe social, o que fazia a alegria dos jornalistas e
escritores da época. Totalmente consciente do fosso existente entre sua escrita
e a dos livros ou jornais, nunca sentiu vergonha por isso e continuou a se
comunicar por escrito. [...]
Publicadas na
imprensa, as fotografias de Lampião e seus cangaceiros constituíam uma
verdadeira provocação e foram certamente percebidas pelas autoridades
policiais e governamentais como um desafio ao qual era preciso reagir.
BATALHA DE
IMAGENS
Às fotografias ilustrando
os sucessos, a riqueza e a invencibilidade de Lampião cumpria então opor
imagens eficazes, indicando nitidamente onde estavam o poder e a ordem. Ao
espetáculo de um bandido invulnerável, a despeito de perseguido durante duas
décadas, respondiam imagens traduzindo uma vontade férrea e uma autoridade
implacável.
Ao lermos os
jornais do litoral nordestino, fica claro que a fotografia desempenhou um papel
não desprezível na instalação dessa relação de forças entre Lampião e seus
adversários.
Ao mito de
Lampião irão opor um contramito: o do oficial e soldado das volantes disposto a
destruir uma das formas mais espetaculares de barbárie do sertão. Depois de
mais de 20 anos no cangaço, Lampião podia se gabar de ter se tornado um
personagem público.
No fim dos
anos 1930, não sobrevivia mais graças a seus feitos guerreiros, e sim porque
tinha conseguido tecer toda uma rede de relações de clientela e corrupção no
interior do Nordeste. Parecia quase evidente que as forças policiais
acomodavam-se a esse estado de fato.
Essa rede,
todavia, não foi capaz de resistir ao sistema autoritário imposto pelo Estado
Novo a partir de 1937. Para o regime de Getúlio
Vargas, com efeito, era inadmissível que Lampião pudesse continuar a
desafiar não só as autoridades policiais, como todo o sistema político
centralizador sobre o qual repousava a ditadura recém-instaurada.
A pretexto de
impedir qualquer manifestação de desordem no território nacional, o Estado
Novo, em 1937, incluiu Lampião e seus cangaceiros na categoria dos
"extremistas". A sentença não demorou a sair: a ordem era matá-los.
ESPETÁCULO DA
MORTE
Em 28 de julho
de 1938, Lampião e parte de sua tropa foram surpreendidos pela volante do
tenente João Bezerra, em consequência da traição de um de seus coiteiros. Uma
vez "terminado o massacre", a força volante decapitou os cadáveres e
partiu com as cabeças em direção à cidade de Piranhas (AL), onde o povo pôde
finalmente "regozijar-se" com o fim de Lampião, "a própria
encarnação da morte".
Numa espécie
de resposta à alegação de onipotência e invulnerabilidade do célebre
cangaceiro, exibiram as cabeças como troféus, a fim de mostrar aos olhos do
mundo que aquele corpo fechado, impermeável às balas e ao facão, podia ser
fragmentado.
A morte de
Lampião foi encenada, e seus adversários recorreram a todo tipo de simbólica
religiosa: transportaram as cabeças de Lampião e de seus companheiros de cidade
em cidade, de vila em vila, numa espécie de procissão macabra, misturando
tradições solenes e manifestações de júbilo popular, o sagrado e o profano.
Na cidade de
Piranhas, festas, desfiles, manifestações de um entusiasmo mais ou menos
espontâneo, fogos de artifício e banda de música acompanharam o cortejo
macabro.
Uma das
primeiras preocupações dos organizadores e jornalistas presentes foi fotografar
os diferentes momentos daquela cenografia sinistra e repassar as imagens para a
imprensa.
Uma das mais
célebres, ilustrando a tragédia final, é incontestavelmente a que mostra as
cabeças de Lampião e de seus companheiros dispostas no adro da igreja de
Sant'Ana do Ipanema: essa fotografia é produto de uma mise-en-scène bastante
elaborada.
As cabeças dos
11 cangaceiros foram dispostas num pano branco estendido sobre os degraus da
igreja. Em volta de todas essas cabeças foram distribuídos, com grande esmero
na simetria, as armas, cartucheiras, embornais e chapéus dos cangaceiros, bem
como duas máquinas de costura.
A disposição
das cabeças não foi aleatória: a de Lampião, o chefe, o instigador, o
arquiteto, o "Rei do Cangaço", foi isolada das dos outros, está no
primeiro plano, na base da composição. Os símbolos da riqueza e da força
guerreira dos cangaceiros estão ali, moldura e ao mesmo tempo cenário de uma
espécie de natureza-morta macabra.
Esses
vestígios —bordados, ornamentos, moedas de ouro— de um brilho que nos dizem
estar definitivamente perdido contrastam violentamente com as cabeças cortadas,
remetendo infalivelmente aquele que observa ao ato de decapitação e profanação
do cadáver.
Entretanto, a
despeito da vontade de perenizar a morte física e a destruição de Lampião
mediante imagens irrefutáveis, o mito da imortalidade desse herói persiste,
expandindo-se ainda nos dias de hoje: mesmo diante das cabeças dos cangaceiros
mortos, alguns sertanejos não acreditaram na morte de Lampião.
Não
acreditaram no que lhes era apresentado como uma evidência: nenhuma
imagem-prova, nenhum suporte visual, seja qual for, pode resistir à força da
crença.
ELISE JASMIN,
historiadora, é autora de "Lampião, Senhor do Sertão: Vidas e Mortes de um
Cangaceiro" (Edusp) e "Cangaceiros" (Terceiro Nome).
ANDRÉ TELLES é
tradutor.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1939639-fotos-da-guerra-do-cangaco-revelam-lado-desconhecido-de-lampiao.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=fbfolha
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