Seguidores

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

DONA LUZIA CARMINA


Texto e foto de Ricardo Beliel

Pelos lados do Mundé vive, há quase cem anos, Dona Luzia Carmina num punhado de braças de terra, na mesma propriedade em que presenciou a morte de seu pai em 1927. Em meio à sequidão, cria cabras e cultiva uma pequena horta de subsistência na companhia do filho, Zé Caboclo. Sua mãe era prima de três cangaceiros de Lampeão, os irmãos Marinheiro, e quando o bando passava por essas terras tinham o apoio que necessitavam. As roupas esfarrapadas, depois de curtidas por longos períodos na agrura da catingueira, eram trocadas por novas, feitas por sua mãe. 

Certo dia, o primo Zé Marinheiro e outro cangaceiro, Sabiá, resolveram não acompanhar mais as andanças quilométricas e diárias do chefe Lampeão, preferindo agir em dupla nos rincões do Capim Grosso e do Mundé. Por um ano viveram amoitados nos espinhaços das caatingas para atacar e extorquir os que lá moravam. Certo dia atacaram as fazendas Panela D´Água e Tapera e estupraram sem piedade Marcolina e Lucia, que também costuravam, com a mãe de Luzia, as roupas encomendadas por Lampeão. Bêbados e sabedores do mal cometido, foram buscar refúgio com a prima de Zé Marinheiro. Carmina de Garapu implorou não poder ajudá-los, mas o tempo para as palavras foi de súbito substituído pelo medo da morte. Nesse momento, doze soldados da volante de Floresta já cercavam a casa. Zé Marinheiro iniciou o confronto com um tiro certeiro na cabeça de um soldado que avançava a poucos metros. Sabiá, da janela dos fundos, liquidou outro inimigo e logo em seguida também acabou com a vida do praça Sinhozinho, que comandava o grupo. Em meio ao tiroteio, o soldado Zé Freire mal teve tempo de perceber Zé Marinheiro pulando através da porta com o fuzil engatilhado em sua direção. Sorte de um, azar do outro. A bala inimiga "bateu coco", falhou, e Zé Freire como um raio disparou um balaço explodindo o cérebro do cangaceiro. 

Sabiá, um dos cangaceiros mais perversos de então, manteve o fogo contra Zé Freire e o soldado Zé Tinteiro até cair baleado no terreiro em frente à casa. Com fratura exposta na perna e as vísceras escorrendo para fora da barriga, destroçadas por balas volantes, morreu rodopiando na terra como um pião. Grunhindo como um porco sacrificado com o fuzil nas mãos a cuspir balas em todas as direções.

Dona Luzia nos conta que seu pai, o Caboclo Garapu, pressentindo sua morte, anunciada aos berros, findo o combate, pelo soldado Zé Freire em frente à casa, se despediu da mulher e dos sete filhos, caminhou em direção à porta e enfrentou o soldado rival. Tentou um primeiro golpe com uma faca, mas em resposta levou um tiro fatal na cabeça. Luzia, com idade de sete anos, seus seis irmãos e a mãe morreram um pouco também naquele dia. Marcadas pela tragédia, continuaram na mesma casa por toda a vida, onde hoje Luzia nos recebe para compartilhar sua história. Com as feições enrugadas de uma pura índia Tuxá, confidencia com a voz afogada por um profundo desconsolo "nós fiquemos sem pai pra sofrer..."

Trecho do livro Memórias Sangradas, de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, a ser lançado em breve.

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10214185482218580&set=a.10213243561551152.1073741868.1459931398&type=3&theater&ifg=1

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário