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quarta-feira, 12 de setembro de 2018

REVISTA FATOS & FOTOS, Nº 90, 20 DE OUTUBRO DE 1962

A aventura sangrenta do Cangaço - ABC de Lampião

Reportagem de Nonnato Masson
Reproduções fotográficas de Nelson Santos e Juvenil de Sousa. 
Como sabemos, algumas estórias sobre Lampião são desencontradas dos fatos reais. Nessa reportagem de Nonato Masson encontramos algumas disparidades com historiadores e pesquisadores do cangaço lampiônico. De qualquer forma, mesmo com algumas colocações diferentes, não deixa de ser literatura histórica mesmo tendo sido escrita muito depois da morte de Lampião. Aqui trago mais uma dessas matérias para os que gostam de estórias do cangaço.
 

ATÉ 1912, o cangaço era um fato normal nos sertões do Nordeste. As façanhas de Lucas da Feira, Cabeleira, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino corriam de boca em boca, com sabor de lenda, a par de histórias que falavam dos jagunços do Bom Jesus Conselheiro e do padre Cícero Romão Batista, o santo de Juazeiro. 

Foi nesse ano que o Governador Castro Pinto, da Paraíba, tomou a iniciativa de uma convenção, para combater o banditismo entre os governos dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. 

Além da ajuda mútua, foram eliminadas as fronteiras entre os estados, podendo a fôrça policial de um penetrar em outro, sem qualquer pedido de autorização. Dessa convenção participariam depois os governos da Bahia, Alagoas e Sergipe. Assim, com o Nordeste sem fronteiras, as tropas volantes, que não seguiam um plano de combate pré-estabelecido, e sem um comando único, enfrentaram-se várias vêzes na suposição de estarem lutando contra os cangaceiros. 

No ano de 1914, após uma luta feroz em Taquaretinga, Manuel Batista de Morais, conhecido por Né Batista e por Antônio Silvino, e que há cérea de 20 anos era o rei do sertão, foi baleado e entregou-se ao Alferes Teofanes Tôrres. Prêso Antônio Silvino, os cangaceiros Casemiro llonório e Né Pereira refugiaram-se na ribeira do Pajeú das Flores, de onde passaram a comandar o cangaço em toda a extensão que vai de Pernambuco à zona baiana do rio São Francisco.

BALEADO em Inhamuns, Ceará, por questões de terras, Antônio Alves Feitosa fugiu com o seu filho José Feitosa depois de ter morto um fazendeiro. Foi para Pernambuco, onde passou a viver como lavrador em Passagem, Distrito de Carqueijo. Morrendo o velho Feitosa, José, para se ,livrar definitivamente da polícia cearense, trocou o nome para José Ferreira da Silva, casou-se com Maria José Lopes e comprou uma fazenda em Ingazeira, às margens do riacho São Domingos, em Serra Vermelha, no Município de Vila Bela, hoje Serra Talhada. 

Da união de José com Maria, nasceram Antônio, Livino, Virgulino, João, Anália, Ezequiel, Virtuosa, Maria e Angélica. Virgulino Ferreira da Silva nasceu a 12 de fevereiro do ano de 1900, depois de Antônio e Livino. 

COUBE à avó de Virgulino, de nome Jocosa, mãe de Maria, criá-lo dos cinco aos doze anos de idade. Ela morava em Poço do Negro, onde, a seu pedido, o seu filho Manuel Lopes matriculou Virgulino na escola particular de Domingos Soriano e Justino Nenéu. Quando tinha doze anos e estava no terceiro ano primário, Virgulino abandonou a escola e passou a domar potros bravos, amansar animais no campo, ganhando logo a fama de ser um dos melhores vaqueiros do Pajeú. 

Aprendeu a fazer selas, gibões, arreios, perneiras, chapéus de couro, alforjes e embornais, que vendia nas feiras de Nazaré, São Francisco (atual Pajeú), Triunfo, Custódia e Salgueiro. Aprendeu com o pai a tocar sanfona de oito baixos. Tinha boa voz para cantar e muita inspiração para tirar toadas, repentes, baiões e xaxados. Uma das suas músicas, a toada "Muié Rendera", seria, tempos depois, o canto de guerra das suas guerrilhas pelos serrotes e pelas caatingas. 

DUAS famílias — a dos Pereiras e a dos Carvalhos, esta tendo os Nogueiras como aliados — travavam entre si uma luta fratricida, desde a revolução pernambucana de 1817, em torno da liderança política da região do Pajeú. O pai de Virgulino foi agregado dos Pereiras e por eles combateu. Um dia, depois de um combate com os Carvalhos, com Antônio e Livino feridos, teve de fugir de Serra Ver-melha, levando tôda a família, passando a morar perto da Vila de Nazaré, no Município de Floresta. Em Nazaré, Virgulino despontou para a aventura sangrenta do cangaço. 

Aconteceu assim: o filho do inspetor de quarteirão José Saturnino inventou que Virgulino lhe havia roubado uns chocalhos de bode. Preso por José Saturnino, de nada adiantaram os pedidos do velho José Ferreira e as declarações de inocência do acusado, que era então um menino de 16 anos. Seu pai e seus irmãos não tiveram outra alternativa: foram soltá-lo a bala. Era a lei do sertão. E dias depois, Virgulino, Antônio, Ezequiel e Livino surpreenderam o filho do inspetor e o mataram. Depois de morto, ainda foi sangrado no pescoço por Virgulino Ferreira, com uma faca pajeú. 

EM Mata Grande, para onde os Ferreiras se mudaram, alguns meses depois, unia tropa de cachimbos (nome dado aos civis contratados para perseguir criminosos) cercou, de surpresa, a casa do velho Ferreira, sob o comando do Cabo José Lucena — que era o delegado volante —, a pedido do inspetor José Saturnino, para prender Virgulino e seus irmãos. 

No ataque foi morto o velho Ferreira, quando debulhava, na cozinha, uma espiga de milho, e preso o seu filho João. Os outros escaparam porque tinham ido à feira vender bodes. [A mulher de José Ferreira, vendo-o morto, caiu fulminada por um ataque do coração.]

FEITO o sepultamento do pai e da mãe, no cemitério de Mata Grande, Virgulino reuniu os irmãos e as irmãs e foi para Vila da Pedra, onde passou a trabalhar como comboieiro para o Coronel Delmiro Gouveia. Corria o ano de 1917. O Coronel Delmiro, que havia construído a primeira usina hidrelétrica no Nordeste, com a energia da cachoeira de Paulo Afonso, e montado a primeira fábrica de linhas da América do Sul, foi misteriosamente assassinado nesse ano, sendo o crime atribuído a elementos ligados aos trustes ingleses que moviam uma guerra sem quartel ao pioneiro alagoano. 

Sentindo-se inseguro em Vila da Pedra depois da morte do Coronel Delmiro, Virgulino deixou as irmãs e João — que não era bom da cabeça — aos cuidados da família de Raimundo Peba, operário da fábrica de linhas. E retornou à Floresta, com os irmãos, à procura do bando de Sinhô Pereira e Luís Padre.

GRANDE foi a surpresa de Sinhô Pereira ao ver, já homenzinhos e afoitos, os filhos do velho José Ferreira, que lutara ao seu lado contra os Carvalhos. Virgulino era quem liderava os irmãos e, por isso, passou a merecer mais atenção de Sinhô Pereira, que lhe deu logo uma espingarda papo-amarelo, novinha. Dias depois, após um choque com uma volante comandada pelo Sargento Optato Gueiros, Virgulino, todo cheio de si, disse a Sinhô Pereira que, no tiroteio com a volante, a sua espingarda não deixou de ter clarão, tal qual um lampião. 

Os cabras acharam muita graça e Luís Padre disse que não seria mais à falta de lampião, para iluminar os caminhos, que eles cairiam na tocaia das volantes. Desde esse dia Virgulino Ferreira da Silva passou a ser chamado de Lampião. E, da bôca da sua espingarda, trocada, anos depois, por um fuzil do Exército, que lhe foi oferecido por autoridades federais, jorrou um clarão, cuja luz, lívida e sinistra, iluminou por mais IS anos os sertões do Nordeste. 

HOUVE, porém, o seguinte: Sinhô Pereira e Luís Padre foram a Juazeiro do Norte, no Ceará, pagar uma promessa a padre Cícero Romão Batista e ali o velho taumaturgo os convenceu a abandonar o cangaço. Eles atenderam e seguiram, com recomendações do padre, para o interior de Goiás, deixando Virgulino e seus irmãos.

INDO a uma festa em Juazeiro, Lampião foi avisado por um beato do padre Cícero que o Deputado Floro Bartolomeu havia prometido ao governador de Pernambuco que o entregaria à policia. Disse-lhe o devoto não acreditar que o padre Cícero concordasse com a prisão, porque quem chegasse Juazeiro ficava garantido com a santidade mas que era bom tomar cuidado, porque "doutor Floro é homem capaz de tudo". 

JUNTANDO seus teréns, Lampião deixou Juazeiro, atravessou Pernambuco e chegou Alagoas, onde encontrou o bando dos irmãos Porcino, Antônio e Manuel, juntando--se a eles. Ficou com os Porcino, até junho de 1922. Nesse ano, os Porcinos decidiram abandonar o cangaço e, dos seus trinta cabras, vinte e um debandaram e nove ficaram com Lampião, que passou a chefia-los. Começou assim Lampião a sua carreira de chefe de bando, comandando doze cabras, inclusive seus três irmãos Antônio, Livino e Ezequiel. 

"LAMPIÃO é rapaz moço, pode ter vinte e dois ano. Tem cartucheira de prata e um rife americano."

MATINHA de Agua Branca, em Alagoas, foi a primeira cidade que Lampião saqueou como chefe de bando. A frente de cinqüenta cabras e com cerca de oitocentos soldados da polícia de três estados no seu rastro, entrou em Matinha de Água Branca sem dar um tiro. Distribuiu seus homens pelos pontos estratégicos da cidade e mandou Cravo Roxo intimar o delegado a fazer uma coleta de dinheiro entre o povo. A seguir, entrou numa igreja e foi rezar para o padre Cícero. 

Depois da reza, seguido pelas crianças que viam nele um herói, foi ao palacete da viúva Joana Vieira da Siqueira Tôrres, Baronesa de Água Branca, de onde levou todas as jóias que ela guardava em três grandes baús de cedro. Não molestou ninguém e saiu de Matinha de Agua Branca debaixo dos gritos das crianças: "Viva Lampião, Viva Lampião." Isso a 22 de junho de 1922. 

NO dia 6 de julho do mesmo ano, Lampião assaltou em Olhos d'Agua a fazenda do Coronel José Rodrigues, levando cinco contos de réis para deixá-lo vivo. Invadiu, a seguir, a Vila do Espírito Santo, e, após essas três investidas, foi-se acoitar numa grota em Tacaratu, onde passou cerca de seis meses sem dar sinal de vida.

"Ô muié rendá. ô muié rendá. Chorô por mim não fica, soluçô vai no borná. O Ceará tá de luto, Pernambuco de sentimento, Alagoa de porta aberta, Lampião xaxando dento." 


PARA fugir à ação das volantes, que passaram a não lhe dar trégua, Lampião permanecia durante meses num esconderijo, onde eram promovidos bailes em que a cachaça corria à solta. Ele mesmo animava os forrós, tocando sua sanfona de oito baixos e tirando toadas que se transformavam em cantos de guerra, como essa "Muié Rendera". Nos bailes, à falta de mulheres, os cabras dançavam uns com os outros, dias e noites seguidos. Lampião fumava pouco e bebia menos. Não gostava muito de cachaça: preferia vinho ou conhaque.

QUANDO pressentia ter-se afrouxado o cerco policial, mandava um dos seus cabras às feiras para assuntar o ambiente. Esses cabras eram os chamados pombeiros e muitos deles foram afastados do bando por Lampião, que lhes dava casa e sustento, mantendo-os como coiteiros, que eram os seus informantes sobre todas os movimentos da polícia. 

RECAIU sôbre os coiteiros, tempos depois, o segredo do terrível domínio de Lampião nos sertões do Nordeste. Em pouco tempo, ele conseguiu organizar e manter, do Ceará à Bahia, uma poderosa rede de espionagem, e até padres, juízes, comerciantes, coronéis de barranco, e mesmo soldados da polícia, uns por temor e a maioria por interesse, passaram a dar o serviço a Lampião. 

SOFRENDO de um glaucoma no olho direito desde que nasceu, Lampião passou a usar óculos a partir dos 22 anos. A cegueira total desse olho, que se manifestaria quatro anos depois, foi uma consequência natural do glaucoma. Segundo depoimento de seus cabras, alguns ainda vivos, ele costumava dizer que "dois óio é luxo", porque para fazer pontaria "basta só um; o outro inté atrapaia"

As ordens de Lampião eram cumpridas à risca. Não falava duas vezes, porque não era de conversa. Lampião gostava de romance de capa e espada, mas não largava o rifle, que era sua bengala.


TINHA 1 metro e 80 de altura, cabelos pretos e escorridos, dentadura perfeita, braços finos e mãos compridas, cheias de veias intumescidas. Era amulatado e magro. 

UM punhal de 73 centímetros de lâmina, atravessado na cartucheira do cinturão, duas outras cartucheiras cruzando o tórax, dois embornais, onde carregava iodo, algodão, sabonete, pasta e escova, um prato de alumínio, duas pistolas "parabellum", um rifle com a bandoleira enfeitada de libras esterlina e antigas moedas de ouro portuguesas, e enrodilhado na cintura o cofre papo-de-ema, a sua burra portátil, cheia de cédulas — esse equipamento, pesando cerca de quarenta quilos, era o de Lampião, que vestia invariavelmente paletó de brim caqui e calça de riscado,  lenço vermelho ao pescoço e calçava alpercatas de couro cru e meias de cores vistosas. 

Usava óculos de de aros de ouro, vários anéis nos dedos, sendo um deles de médico, medalhas do Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores e rezas fortes costuradas em panos bentos. Na cabeça, um grande chapéu de couro de viado, batido na frente e atrás, destacando-se, na testeira, um signo-de-salomão colorido de ilhoses. 

VENTANIA, Cobra Verde, Cravo Roxo, Azulão, Criança, Pancada, Maria, mulher de Pancada, Carrapicho, Cobra de Cipó, Asa Branca, Pinto Cego, Come Cru, Patorí, Marreco, Graúna e Mergulhão fo-
ram os cabras que formaram o primeiro bando de Lampião.

XEXÉU, Chá Preto, Besta Fera, Canjica, Jurema e Beija-Flor entraram a seguir. Era ele que os apelidava, com o objetivo de lhes esconder a verdadeira identidade, a fim de livrar a família de cada um das represálias da polícia. Ezequiel, seu irmão, apelidou de Ponto Fino, porque ele era mesmo o fino na pontaria.

ZABELE entrou para o bando de Lampião em 1923. Era um caboclo que vivia repinicando a sua viola nas feiras dos sertões de Alagoas. Um dia, tirou um repente criticando arbitrariedades do delegado de Santana de Ipanema. Foi preso, espancado a chicote de umbigo de boi e marcado a ferro em brasa, pelos soldados, como novilho em curral. 
Conseguiu fugir da prisão e foi juntar-se ao bando de Lampião. Era sempre assim. Para os injustiçados nos sertões do Nordeste, Lampião era a última instância.

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