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domingo, 20 de janeiro de 2019

DUAS OBRAS ILUMINAM O MITO DE LAMPIÃO E MARIA BONITA, COM OLHARES ORIGINAIS SOBRE O CANGAÇO NO NORDESTE



A Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, faltava o olho direito, e ele mancava da perna direita. O cantor Orlando Silva não tinha alguns dedos do pé esquerdo. Os músicos Ray Charles e Stevie Wonder conviveram desde cedo com a cegueira em ambos os olhos. Menino, Roberto Carlos perdeu parte da perna direita. A Luiz Inácio da Silva o Lula, falta um dedo da mão esquerda.

A mitologia da deficiência física produziu figuras públicas tão diversas quanto cruciais a seus tempos, algumas das quais voltam feito bumerangues em momentos graves. No Brasil truculento de 2019, é vez de o bando cangaceiro liderado pelo pernambucano Lampião e pela baiana Maria Bonita voltarem à baila, em parte sob o pretexto dos 80 anos da dizimação dos bandoleiros, na Grota do Angico, Sergipe, em 28 de julho de 1938.

Dois livros de peso revisitam o mito por enfoques de alguma maneira opostos. Em Apagando o Lampião ‒ Vida e Morte do Rei do Cangaço, o historiador e jurista Frederico Pernambucano de Mello reconstitui a fibra masculina da história, enquanto a jornalista paulistana Adriana Negreiros cuida de dar luz inédita à contrafação feminina, em Maria Bonita ‒ Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço.

Conterrâneo de Lampião, Frederico conta que o sertanejo Virgulino automedicou o glaucoma no olho direito, desde a infância, aplicando-lhe claras de ovo. À falta de luz para todos e todas no sertão nordestino de um século atrás, combateu a escuridão do olho, da Caatinga e da Grota do Angico com rajadas de balas e com o codinome Lampião, secundado por cangaceiros de apelidos luminares como Corisco, Labareda, Candeeiro, Elétrico e Caixa de Fósforos.

Maria Bonita, segundo Adriana, jamais foi chamada assim em vida (a invenção midiática surgiria com sua morte). Nascida Maria Gomes de Oliveira, era Maria de Déa, filha de dona Déa, ou Maria do Capitão, depois de integrada ao cangaço. Mais moça que Virgulino 13 anos e tombada morta aos 28, xingava o companheiro de “cego velho” e “canela de veado” nas horas de desavença.

Enfrentado com displicência pelo Brasil das revoluções de 1930 (na tomada do poder por Getúlio Vargas, por meio de golpe) e 1932 (na malograda reação paulista da Revolução Constitucionalista), o casal sobreviveria menos de um ano à instauração do Estado Novo, o golpe dentro do golpe de Getúlio em 1937.

Antes, Lampião ajudou a República Velha a combater a Coluna Prestes, por convocação de seu padrinho informal cearense, o igualmente mítico Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), num encontro sobrenatural (mas nem tão raro) entre política, religião, Justiça e cangaço.

Em meio às revoluções, foi disputado pela direita e pela esquerda do espectro político e encampado pela Intentona Comunista (1935) de Luiz Carlos Prestes, numa tentativa, segundo Frederico, de “canalizar” cangaceiros “para outra função, para que se pudesse com eles levar a cabo uma revolução social”, décadas antes do advento bem menos violento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

Ambas as obras avançam como que complementares. Na distribuição desigual de quase tudo entre os sexos, Pernambucano cuida da guerra e das grandes narrativas, enquanto Negreiros mergulha a fundo na crônica do cotidiano, do comportamento, das sexualidades das personagens. A cultura do estupro, vigente em 1938 como em 2019, ocupa parte importante de seu livro. Embora sem conotação explicitamente sexual, o estupro do Nordeste pelo resto do País é o mote glosado por Frederico.

Autor de livros sobre o cangaço e a Guerra de Canudos, o pesquisador dedicou grande parte da vida adulta ao estudo de Lampião. Guardava até a edição do livro de depoimentos de testemunhas oculares da história, alguns mantidos inéditos desde até 1970. As revelações históricas remontam a 1917, quando Virgulino, nascido em 1898, selou sua entrada na ilegalidade e no banditismo.

Elemento importante de Apagando o Lampião é a compreensão da instrumentalização do cangaço com fins políticos, tanto pelos coronéis nordestinos como pelos “civilizados” do Sudeste brasileiro. “Para o Brasil, o banditismo e a seca são males necessários”, ele afirma, sob a assinatura do conterrâneo Manoel Bastos Tigre, em artigo datado de agosto de 1938. “Como esses mendigos de porta de igreja, que ‘cultivam’ a chaga da perna para que não feche, assim deve o sertão cultivar a seca e alimentar discretamente o cangaço”, apunhala o Tigre de 1938.

Embora discorra com valentia sobre o racismo expressado pelo afrodescendente/indígena/cigano Virgulino, Frederico planifica o sadismo cangaceiro entre homens e a violência de bandoleiros e soldados contra mulheres, evitando descer a detalhes desses dois assuntos que são um só. A naturalização masculina da violência, dominante desde sempre e, em particular, a partir da megaexposição chocante das cabeças decepadas dos cangaceiros, encontra combate inédito na obra da escritora estreante Adriana Negreiros.

Casada com o escritor Lira Neto (autor de biografias de Padre Cícero, Getúlio Vargas e Maysa), ela complexifica o quebra-cabeças ao documentar as minúcias do sadismo vigente no Brasil sertanejo dos anos 1920 e 1930.

As mulheres, esquadrinha Adriana, chegavam ao cangaço através da violência, do sequestro e do estupro, a maioria em idades que recuavam a até 11 anos.

Estudiosos de época minimizaram os estupros coletivos como “peraltices insignificantes”, segundo registra. Ela conta dos hábitos do cangaceiro José Baiano: “Depois de esquentar o objeto (um ferro de marcar gado) no fogo em brasa, pressionava-o contra a face, a genitália, a nádega ou a panturrilha de suas vítimas, todas do sexo feminino”.

Morto o companheiro em combate, restava às cangaceiras ser tomadas por outro bandoleiro ou morrer assassinadas. Sila, esposa do cangaceiro Luiz Pedro, foi estuprada pelos soldados depois de morta. As cangaceiras, inclusive Maria Bonita, eram forçadas a dar os filhos em adoção assim que nascidos. A narrativa evidencia a tensão constante entre tradição e inovação no cangaço.

..., de branco Sila e Zé Sereno - http://josemendespereirapotiguar.blogspot.com/2016/01/a-morte-de-nenem-de-luiz-pedro_17.html

Adendo: José Mendes Pereira 
Corrigir o parágrafo acima. 

Sila era companheira do cangaceiro Zé Sereno. A companheira de Luiz Pedro era Neném do Ouro.

O cangaceiro Luiz Pedro e sua companheira Neném do Ouro

Reconhece o pioneirismo da admissão de mulheres no bando, a partir do apaixonamento de Virgulino por Maria, em 1929, mas também a conservação de costumes na Caatinga impregnada por um sadismo contemporâneo aos adventos do fascismo e do nazismo na Europa.

“O (corpo) de Maria seria abandonado com as pernas abertas e um pedaço de madeira enfiado na vagina”, escreve Adriana, que em posfácio não se furta a expressar espanto diante do descrédito lançado por estudiosos sobre a brutalidade feminicida no microcosmo do cangaço.

Tabu entre tabus, a violência sexual entre homens aparece de resvalo em Maria Bonita, quando um cangaceiro penetra um subdelegado com uma vela posteriormente acesa e queimada até o fim ‒ até aí o clarão se diz presente no sertão sem luz. A violência não sexual entre homens é documentada por Adriana, em atos como os de Corisco, que “arrancara a cabeça do homem, bem como seus braços e pernas, e cortara o tronco em postas”.

No contrafluxo, Frederico resiste a reconhecer a autoridade de Maria Bonita e atribui a Dadá a derrocada de Corisco, morto dois anos depois do chefe, segundo o autor por conta da cachaça e do “autoritarismo” da companheira Dadá, “que intervém nas questões do bando a cada passo”, qual uma Yoko Ono caso Corisco fosse John Lennon. Adriana diverge:

“A impetuosidade e a coragem que, em Corisco, inspiravam os rapazes, na esposa eram tomadas como autoritarismo e agressividade”.

Ambos os autores abordam com entusiasmo a força estética do cangaço. Na tensão-contradição entre brutalidade e ternura, Adriana aponta que Maria Bonita brincava de boneca em campo e foi tida como uma Greta Garbo da Caatinga, e ambos notam que Lampião era exímio costureiro à máquina Singer ‒ Frederico afoba-se a esclarecer que, no sertão dos 1930, isso não indicava traço de “efeminação”.

O merchandising de primeira hora é lembrado por Adriana, na narrativa das filmagens do bando pelo sírio Benjamin Abrahão, em 1936, sob patrocínio da farmacêutica Bayer (explicitado por folheto de propaganda exibido nas imagens em movimento) e da fabricante de óculos Zeiss.

O episódio seria estetizado no filme manguebit Baile Perfumado (1998). Embora citem o disco de xaxados gravado pelo ex-cangaceiro júnior Volta Seca (Cantigas de Lampeão, 1957), nenhum dos autores aponta a importância de Virgulino na gestação do mito do conterrâneo pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989), consolidado a partir de baiões como Asa Branca (1947) e a canção de passarinho cego dos olhos Assum Preto (1950).

Detalhista ao extremo, Apagando o Lampião cobiça algo da metodologia d’Os Sertões de Euclides da Cunha, e chega a exasperar quando entra no labirinto de nomes de personagens secundários. No campo das interpretações originais, expõe que, ao ser mortos imersos em crise pós-Estado Novo, Lampião e Maria Bonita preparavam uma mudança para o Sudeste, “para roubar em Minas Gerais”, segundo Virgulino.

Em comum com Maria Bonita, guarda o laço de não arriscar maiores interpretações sobre os porquês profundos da existência do bando de Lampião. O que, afinal de contas, teria permitido a explosão de violência no Brasil sertanejo dos anos 1920 e 1930?

Que vínculos teria o fenômeno do cangaço com expressões anteriores, da época pré-abolição da escravização institucional, e posteriores, da marginalização que nas metrópoles do Sudeste viria acompanhada não mais pelo xaxado, mas pelo rap, pelo funk, pelo Movimento dos Sem-Teto?

O Brasil desalumiado segue a tremular em 2019, entre a deficiência visual e os fósforos riscados de Lampião e a luz para todos e todas que nunca se consolida, do medievo à era (des)iluminada pelo WhatsApp.

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