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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

LAMPIÃO & CIA. PERAMBULAVAM PELOS SERTÕES, QUANDO UM DOS MAIORES CRONISTAS DO BRASIL, RUBEM BRAGA, ESCREVEU ESTA PÉROLA.


Material do acervo do pesquisador do cangaço Antônio Corrêa Sobrinho

CANGAÇO
Rubem Braga

Erguerei hoje minha débil voz para louvar o Sr. Getúlio Vargas. Aprovo de coração aberto o veto que ele deu a uma lei que mandava abrir um crédito de 1.200 contos para a campanha contra o cangaceirismo.

O presidente vetou porque não há recursos, isto é, por falta de dinheiro. 

Eu vetaria por amor ao cangaço.

Lampião, que exprime o cangaço, é um herói popular do Nordeste. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. O povo não ama à toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. Há algum pensamento certo atrás dos óculos de Lampião; suas alpercatas rudes pisam algum terreno sagrado.

Bárbaro, covarde ele é. Dizem que conseguiu ser tão bárbaro e covarde como a polícia – a polícia que o persegue em todas as fronteiras. Mas é preciso lembrar que ele está sempre em guerra: e na guerra como na guerra. Retirai de seu aconchego doce qualquer de nossos ilustres e luxuosos generais; colocai-o à frente de um bando, mandai-o lutar uma luta rude, dura, de morte, através dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Ele se tornará também bárbaro e covarde.

O cangaço não é um acidente. É uma profissão. Nasce, vive e morre gente dentro dessa profissão. O tempo corre. Filhos de cangaceiros são cangaceiros, serão pais de cangaceiros. Eles não estão organizados em sindicatos nem em associações recreativas: estão organizados em bandos.

Ora, a vida do cangaço não pode ser muito suave. É uma vida cansativa e dura de roer. Quando centenas de homens vivem essa vida, é preciso desconfiar que não o fazem por esporte nem por excesso de “maus instintos”.

O cangaceiro é um homem que luta contra a propriedade, é uma força que faz tremer os grandes senhores feudais do sertão. Se alguns desses senhores se aliam aos cangaceiros, é apenas por medo, para poderem lutar contra outros senhores, para garantirem a própria situação.

Ora, para as massas pobres e miseráveis da população do Nordeste, a ação dos cangaceiros não pode ser muito antipática. E é até interessante.

As atrocidades dos cangaceiros não foram inventadas por eles, nem constituem monopólio deles. Eles aprenderam ali mesmo, e em muitos casos, aprenderam à própria custa. De resto, a acreditar no que José Jobim, um rapaz jornalista, escreveu em “Hitler e Seus Comediantes”, agora em segunda edição, os cangaceiros são anjinhos ao lado dos nazistas.

Os métodos de Lampião são pouco elegantes e nada católicos. Que fazer? Ele não tem tempo de ler os artigos do Sr. Tristão de Athayde, nem as poesias do Sr. Murilo Mendes. É estúpido, ignorante. Mas se o povo o admira é que ele se move na direção de um instinto popular. Dentro de sua miséria moral, de sua inconsciência, de sua crueldade, ele é um herói – o único herói de verdade, sempre firme. A literatura popular, que o endeusa, é cretiníssima. Mas é uma literatura que nasce de uma raiz pura, que tem a sua legítima razão social e que só por isso emociona e vale.

Vi um velho engraxate mulato, que se babava de gozo lendo façanhas de Antônio Silvino. Eu percebi aquele gozo obscuro e senti que ele tinha alguma razão. Todos os homens pobres do Brasil são lampiãozinhos recalcados: todos os que vivem mal, comem mal, amam mal. Dar 1.200 contos para combater o herói seria uma tristeza. Eu, por mim (quem está falando e suspirando aqui é o rapazinho mais pacato do perímetro urbano), confesso que as sortidas de Lampião me interessam mais que as sortidas do ser Antônio Carlos.

Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa de meu reumatismo. Mas dou àqueles bravos patrícios o meu inteiro apoio moral – ou imoral, se assim o preferis, minha ilustre senhora.

Rio, fevereiro de 1935.
"Diário de Pernambuco" - 02/02/1935

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