*Rangel Alves da Costa
Dizem que foi assim, nas palavras de quem disse que foi assim: “Os da volante chegaro já deitando pra dentro a porta do barraco de barro e cipó. Na casinha só tava a muié e um meninote. O marido tava não. Entonce a volante gritou pru Jeremia, preguntando onde ele tava, quereno saber a todo custo onde o coiteiro tava. A muié, coitada, tremendo de medo perante aquele povo raivoso e armado inté os dente, mal abriu a boca pra dizer que não sabia. Entonce arrastaro ela pra malhada e fizero dizer onde Jeremia tava na ponta no punhal. Ouvino o grito da muié, o marido apareceu do meio do mato e foi logo seguro pela volante. ‘Diga adonde o bando de Lampião tá ou morre agorinha mermo’. Assim preguntaro já segurano o homi pro todo lugar. Jeremia era valente, decidido. Se sabia num disse. Foi colocado de cabeça pra baixo num pé de pau e apanhou até amolecer. Deixaro ele como morto. Mai morreu não. Era assim como a volante tratava aquele que achava que era coiteiro e que sabia onde tava a cangaceirama”.
Já outro contou uma história parecida, mas envolvendo outro tipo de perseguidor. “Cangaceiro num era flor que se cheirasse não. Tinha cangaceiro que era mais marvado que bicho ruim, principarmente se tivesse desgarrado de Lampião. Quano num tava sob as vista de Lampião entonce se achava o dono do mundo e se danava a fazer estripulia de cortar coração. O pior é que os inocente pagava pelos que eles achava que tinha arguma culpa. Munta gente já morreu apenas pro tá no lugar errado e na hora errada. Dizem que o mudinho não respondeu o que preguntaro entonce sangraro ele vivim. Num é coisa que se faça com homi não, mai todo mundo sabe que o finado Toinho Aroeira foi feito de jegue de quatro pé, adespois amontaro nele e ferroaro pro todo lado. No Quelemente, e isso corre de boca em boca, adeitaro a cabeça do pobe vaqueiro na portada e deram uma punhalada só. Gente correno no meio do mato com medo daquelas fera e quano era arçada era o sofrimento certo. Um maluquinho se danou a sorrir na frente do cangaceiro e acabaro cortano as parte de baixo do bichim. Certa feita, puxaro a corrente de ouro, cuma a bicha era dura, entonce num tivero nem o trabaio de pedir a dona que tirasse. Arrancaro foi o pescoço da pobrezinha. Isso num é coisa que se faça não, mai era assim que se fazia”.
Relatos assim ainda são costumeiros e todos dando conta do sofrimento do sertanejo em meio a cangaceiros e volantes. Um tempo realmente difícil demais de viver, vez que as forças perseguidoras do cangaço, ou volantes como são mais conhecidas, provocavam mais atrocidades que a cangaceirama quando chegava ou passava. Na concepção de que todo o sertanejo era coiteiro ou mancomunado com os cangaceiros, então qualquer e todo mundo se transformava em vítima da violência desenfreada.
Mesmo na assertiva de ser um forte, de ser valente e destemido, o sertanejo padeceu todas as dores e sofrimentos do mundo naqueles idos do cangaço. Naqueles de sustos a cada passo e medo a cada instante, não havia sertanejo que não se sentisse refém da guerra sangrenta travada. Nas mãos de cangaceiros e volantes, perante os bandoleiros das caatingas e das forças policiais, aquela raça humana postou-se ajoelhada e submetida aos mais cruéis rigores da violência e da brutalidade.
Não é da normalidade da vida que o ser humano tenha sua face marcada no ferro em brasa. Não é comum que um ser humano seja forçado a deitar com a cabeça num batente de porta e depois ter sua cabeça decepada a punhal. Não é costumeiro que o sujeito seja mandado caminhar e em seguida, ao virar as costas, receber um balaço mortal. Mas assim aconteceu. Não é aceitável um homem já lanhado pelo trabalho duro na terra, pelas desditas da vida e sofrimentos sem fim, ainda tenha que ficar de quatro pés para ser montado, chicoteado e humilhado.
Não é atitude comum que um homem já envelhecido seja amarrado e pendurado de cabeça pra baixo e depois disso ainda flagelado de ponta de punhal. Não é habitual nem aceitável que a pessoa seja sangrada viva apenas pelo fato de não saber dar uma informação. Não pode ser tido como normal que mocinhas sejam violadas perante os pais e os pais perderem suas vidas perante os filhos. Mas assim aconteceu.
O sertão inteiro padeceu sofrimentos indescritíveis pelas mãos de volantes e cangaceiros, e muito mais pelas atrocidades cometidas por aqueles que deveriam, além de caçar a cangaceirama, também proteger o sertanejo das ameaças e das investidas sangrentas. Mas não. Ao invés de proteger, o que a volante fazia era espalhar o terror por todo lugar. Segundo seus algozes, todo sertanejo era coiteiro, era amigo do cangaço e por isso mesmo tinha de sofrer. E maltratou, e judiou, e matou.
Assim a desvalia dessa vida empobrecida e sem valor algum perante as violências que assolaram aqueles sertões de cangaceiros e volantes.
Escritor
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