*Rangel Alves da Costa
Chega dá água na boca só em pensar, disse Joaninha quando, distante de sua terra, alguém lhe falou da gostosura que é o cuscuz sertanejo. E Joaninha chegou até mesmo a entristecer de saudade do cuscuz. Ora, criada no cheiro do cuscuz ralado em quintal, crescida no cuscuz espalhado no prato de estanho, feito gente (como se diz), comendo cuscuz e mais cuscuz. E jamais enjoou. Pelo contrário, até gostava de repetir o prato ou botar mais um tiquinho.
Mas cuscuz de verdade mesmo. Por isso que o cuscuz aqui descrito não é nem nordestino, pois sertanejo mesmo, matuto de pai e mãe, tabaréu desde a raiz. E por isso mesmo o melhor cuscuz do mundo. E não é nordestino por que na região há também muitas variedades no preparo da farinha de milho. E quando digo matuto é para me referir ao cuscuz nele mesmo, sem frescura, na farinha molhada, deixada apurar e depois levada ao cuscuzeiro e ao fogo. De dar água na boca!
E daria ainda mais água na boca se o cuscuz fosse como aquele de antigamente, ou seja, ralado no quintal, com os grãos miúdos e a polpa deitados em bacia, e depois despejados em cuscuzeiro grande, com pano de prato limpo amarrado na boca. Em seguida, deixar por alguns minutos no fogão de lenha até que o cheiro bom vá tomando os ares. Por cima do pano úmido pelo calor, a névoa saborosa subindo e subindo.
Ainda nesse tempo, no tempo do cuscuz ralado e cheiroso igual a sertão, enquanto as chamas do fogão envolviam o fundo do cuscuzeiro, a senhora dona da casa já corria aos outros preparos. Cuscuz sertanejo todo mundo come e se farta até sem nenhuma mistura por cima, mas o costume é que um naco de qualquer coisa faça companhia ao prato. E o que não faltava era coisa boa para misturar. Mesmo num sertão empobrecido, a cozinha sempre teve a guarnição para as necessidades.
E o que a senhora dona da casa fazia, então? Ia depressa ao varal com uma faca amolada e passava a lâmina na carne de sol ali estendida, no pedaço de porco gordo ali depurando, na tripa, no bucho ou qualquer coisa. Sem falar nos ovos de galinha de capoeira e na banha de porco para fazer chiar gostosamente a frigideira. Mesmo sem carne, bastava cortar toucinho e misturar com os ovos. Ou então fazer o mesmo com a tripa, o bucho e outros miúdos do gado e do porco. Há mistura melhor para o cuscuz mais gostoso que tudo na vida?
Café a gosto, gordo, cheiroso, quase espumante, como aquele que Dona Lídia fazia aos entardeceres de Poço Redondo. O café de Dona Lídia era mágico, enfeitiçado, só podia ser. Antes mesmo da boca da noite e a cidade inteira era tomada pelo cheiro inebriante daquele café. Como dizia o outro, só faltava ficar com a xícara à mão e beber pelo cheiro. Eu mesmo testemunhei as proezas desse café. Já vi fila ser formada para ter ao menos um tiquinho como experimentação.
Mas voltando ao cuscuz, companheiro inseparável do café, a verdade é que ele continua sendo bom e saboroso de todo jeito. Dificilmente ainda é possível encontrar um cuscuz ralado em quintal e preparado no fogão de lenha. Tal costume somente nas distâncias interioranas e onde os mais velhos não desapartem do prazer de comer o que realmente vale a pena ser saboreado. Comida simples, barata, humilde, singela, mas que não há coisa igual. E perguntem ao do mato se ele prefere um prato de cuscuz ou uma macarronada. Podem levar o cardápio inteiro e nada substituirá o bom e velho alimento de milho.
A verdade é que o cuscuz é mesmo um prato interessante. Ele não assenta com determinadas misturas de jeito nenhum. Despejar receitas estrambólicas por cima dele de forma alguma. É como se ele dissesse que só aceita ser comido com os já conhecidos da terra. Por isso mesmo que o cuscuz sempre pede uma boa manteiga, carne de bode ou de gado, carne de porco torrada, toucinho misturado com ovos, tripa de porco e bucho. Também o queijo de coalho lhe causa encantamento. E quem tiver seu suco nem se aproxime. Cuscuz só assenta com café. E pronto.
E deu-me agora uma fome danada. Mas na mesma situação de Joaninha na sua distância. Tudo daria por um prato de cuscuz com carne de bode ou ovos de galinha de capoeira. Mas apenas entristeço.
Escritor
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