Por Larissa Lins - Diario de Pernambuco
A
incrível história do homem que calçou Lampião - e outras sandálias nordestinas.
O
artesão Espedito Seleiro dá continuidade à produção artesanal das alpargatas
encomendadas por cangaceiros pernambucanos ao seu pai, popularizadas em aliança
com o mundo da moda.
Espedito
Seleiro faz as sandálias de couro à mão. Os solados quadrados são feitos
somente sob encomenda. O talento é coisa de família. Foto: Vimeo/Reprodução
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“Pode me chamar de Raimundo Seleiro”, foram as palavras escolhidas pelo artesão cearense Raimundo Velozo quando, nos anos 1930, um homem desconhecido sentou-se ao alpendre do seu atelier, em Nova Olinda, na Região Metropolitana do Cariri (CE) e lhe encarou de modo intimidador. Era forasteiro, vinha de Pernambuco trazendo encomenda. “Preciso de alpargatas com o solado retangular. Daqui a um mês venho buscá-las”, determinou, entregando a Seu Raimundo um rascunho do modelo em papel. “Faço selas de couro para cavalos. Não é minha especialidade fazer alpargatas”, explicou o seleiro. Intimidado pela postura do estranho, porém, emendou: “Mas, para um amigo, dá-se um jeito…”. Ele não sabia, mas estava diante de um dos capangas de Lampião, prestes a se tornar o criador das sandálias do cangaço - hoje populares e consideradas artigo de luxo no mundo da moda.
Passadas quatro semanas, o forasteiro, de fato, regressou. Revelando sua identidade, foi recompensado com abono vantajoso: Seu Raimundo dispensou o pagamento da encomenda, temendo contrariar Lampião. O rei do cangaço lhe enviou, semanas mais tarde, um punhal de valor afetivo. “O solado retangular impedia que o bando fosse seguido. Era impossível saber, pelas pegadas, em qual direção viajavam”, explica Seu Espedito Velozo de Carvalho, o Espedito Seleiro, herdeiro de Seu Raimundo.
O modelo encomendado por Lampião era diferente do tradicional: os solados quadrados dificultavam a perseguição ao bando de cangaceiros. Foto: Vimeo/Reprodução.
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Há alguns
anos, as alpargatas de solado retangular são produzidas apenas sob encomenda.
Todas as demais têm solado tradicional. Ao longo das décadas - suficientes para
o patriarca Raimundo aceitar o novo ofício e estender sua habilidade com o
couro das selas às alpargatas, repassando a função ao filho -, os modelos
ganharam nomes inspirados no cangaço: Lampião e Maria Bonita são os mais
procurados.
“O desenho, o
formato e o recorte do couro são os mesmos da época do meu pai, mas eu
acrescentei detalhes coloridos. Cada par é único. As alpargatas são feitas à
mão, em cerca de dois dias”, conta Seu Espedito, homenageado neste mês no
desfile da estilista cearense Gisela Franck no Dragão Fashion 2016 e pelo
lançamento do livro Meu coração coroado mestre Espedito Seleiro (Editora Senac,
248 páginas). Aos 76 anos, ele coordena associação familiar de produção com 22
pessoas, entre filhos, netos, sobrinhos, noras e genros. As sandálias, que
podem ser encomendadas em todo o país, custam entre R$ 85 e R$ 120.
No cinema, Seu
Espedito calçou Marcos Palmeira em O homem que desafiou o diabo (2007), dois
anos após cruzar as passarelas pela primeira vez, em desfile da Cavalera na São
Paulo Fashion Week. Desfilou por outras grifes, cedeu peças ao teatro e à TV.
Feitas à mão, estampadas com cores produzidas artesanalmente e sem replicação,
o sucesso das alpargatas pode ser explicado pela combinação entre exclusividade
(a base da moda de luxo) e o valor afetivo da cultura regional. Seu Espedito
sintetiza: “Gostam delas por serem únicas. Quando você vir um trabalho com cara
de ter sido feito por um cabra bem sertanejo, você vai saber que esse trabalho
é meu.”
Em
Pernambuco
Vitalina
Criada há dois
anos na capital pernambucana, a marca de sandálias artesanais Vitalina
confecciona modelos andróginos - servem para homens, mulheres e crianças.
Comandada pela publicitária Carol Dreyer e pelo fotógrafo Rodrigo Cavalcanti, a
linha de produção da marca reúne 13 artesãos de Pernambuco, do Ceará e da
Paraíba. “Eles trabalham com suas famílias, nas garagens de casa”, explica
Carol. Cintos, carteiras, bolsas e bancos já foram somados ao estoque. “O mais
especial nesse tipo de sandália artesanal é a história que existe por trás
dela. Cultura, família, tradição e contemporaneidade.” Onde: Rua Olímpio
Tavares, 57 - Casa Amarela, Zona Norte do Recife.
Jailson Marcos
Potiguar radicado
em Pernambuco, o desginer de calçados Jailson Marcos recebe celebridades e
personalidades da moda em seu atelier no Recife. O músico Carlinhos Brown é um
de seus embaixadores, além da consultora e apresentadora Lilian Pacce e do
estilista Ronaldo Fraga. A primeira referência dele foram justamente as
sandálias calçadas pelo bando de Lampião, com releitura arrojada do estilo
sertanejo. Onde: Av. Herculano Bandeira, 513, Loja 06, Galeria Joana D’Arc,
Pina, Zona Sul do Recife.
Museu
Seleiro
No atelier
onde produz alpargatas, bolsas e acessórios, Seu Espedito Seleiro mantém Museu
do Couro, em Nova Olinda, no Cariri (CE). Lá, estão expostas peças icônicas da
carreira, como as primeiras sandálias feitas por ele e os pares com solados
retangulares como os do bando de Lampião. Onde: Rua Monsenhor Tavares, 190,
Nova Olinda, CE. Informações: (88) 3546-1432.
Seu Espedito Seleiro mantém as tradições e passa orientações à família, com quem divide as obrigações com o negócio. Foto: Facebook/Reprodução
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TRÊS PERGUNTAS: Espedito Seleiro, artesão
Seu pai
gostava de contar a história de como calçou Lampião? Qual o valor dessa memória
para você?
É uma história
que já contei muitas vezes, mas eu gosto demais de contar. Meu pai contava
sempre, também. Ele faleceu em 1971, guardava com cuidado o punhal que ganhou
de presente de Lampião. Minha mãe faleceu no ano passado, com 92 anos, e
continuava a guardar o punhal, que eu mesmo guardo desde então. Tem grande
valor afetivo na nossa família. Meu pai era seleiro, não sapateiro. Mas aquele
dia mudou seu trabalho, o de todos nós. Ele gostava de contar que quando o
cangaceiro voltou para buscar a encomenda, disse que se meu pai adivinhasse
quem era o dono, ganharia mais dinheiro além do preço estabelecido. Meu pai não
adivinhou, é claro. Mas terminou entregando as sandálias de graça, porque todo
mundo tinha medo de Lampião.
Na sua
opinião, que o seu trabalho com as alpargatas artesanais soma ao universo da
moda?
Nós fazemos
peças diferentes de tudo o que é feito no mercado. Digo isso porque cada modelo
tem seu formato, sua composição. Para cada uma, faço as misturas das cores e
crio tons novos, que são aplicados em cada par de modo diferente. Essa coisa de
ser algo único, isso é precioso, agrega sempre algo de novo à moda. Se você é
estilista, tem seu estilo, seu jeito de trabalhar o tecido. Eu, como seleiro,
tenho meu jeito de moldar o couro. Misturar as duas coisas, os dois estilos,
produz sempre resultados diferentes. A arte, assim como a moda, se alimenta
disso, dessas combinações.
Como se dá o
processo de produção?
Compramos a
matéria prima em Petrolina (PE), Campina Grande (PB), Juazeiro (BA) e Fortaleza
(CE). Cada lugar tem um material diferente, que combinamos em cada sandália,
dependendo do modelo. Eu já trabalhei muito, de sol a sol. Hoje fico com os
desenhos, desenvolvo os modelos, reformulo, penso nos detalhes. Cuido da
associação familiar, onde 22 pessoas trabalham. São meus filhos, netos,
sobrinhos, noras, genros… Para uma encomenda de 30 pares, por exemplo,
precisamos de 15 dias. Cada par é feito em dois dias. O solado é feito de sola
ou de borracha de pneu. O couro é todo costurado à mão.
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