*Rangel Alves da Costa
Mesmo que no avexado instante da
retirada, Lampião tenha deixado cair, e por lá tivesse ficado, sua reza a Nossa
Senhora escrita em papel e guardada como escudo de proteção, ainda assim sua fé
e sua religiosidade logo se apegariam a outras sagradas forças. A contínua
crença que vivia abençoado pelo padre Cícero do Juazeiro, mas principalmente
pela presença de Nossa Senhora guiando seus passos e protegendo contra todo
mal. Contudo, muito menos sagrada – e até profana - era sua outra crença: que
possuía proteção de grande parte dos comandantes das forças volantes.
Em tal concepção, aquele feroz
ataque no instante da retirada não havia sido planejado para dar fim ao Capitão
e seus estados-maiores, mas tão somente para dar cumprimento, assim como uma
obrigação onde não se deseja o resultado, a uma ordem escrita em cima e rasgada
por baixo. Quer dizer, os ataques eram feitos, até com mortes e feridos, mas sem
chegar ao rei cangaceiro. E a ordem para tal vinha do próprio comando das
forças das caatingas. Segundo imaginava o próprio Lampião.
Jamais se saberá a verdade por
trás dessa crença do rei cangaceiro. Fato, contudo, é que após o fogo cerrado
na noite da retirada, o que se travou foi uma desavença danada entre o
comandante da volante e seus comandados. E dizem que foi isso o ruidosamente
ecoado:
“Todos você enlouqueceram, só
pode ser. Atacar o bando é uma coisa, e atirar sem saber em quem vai acertar é
outra coisa. Sorte de vocês que não aconteceu uma tragédia maior. Se há uma
galinha que põe ovos de ouro, até que se pode perseguir a galinha, mas não
quebrar os ovos, que são de ouro. O cangaço é a galinha dos ovos de ouro. O
nome cangaço pode ser perseguido, encurralado, tocaiado, ferido, mas jamais os
ovos de ouro, que são os próprios cangaceiros. Qual o interesse de quebrar os
ovos de ouro? Digam: é preciso matar aquilo que sustenta vocês?”.
Eis, assim, um dos escudos
imaginados pelo Capitão Virgulino: a forte proteção por todo lugar. Talvez até
tivesse razão em pensar assim, vez que não foram poucas as vezes em que “seus
poderosos inimigos” ou “seus cruéis perseguidores”, chegaram diante de si até
querendo beijar seu anel. “Não precisa se ajoelhar comandante, não precisa.
Levante e vamos tratar de assuntos mais importantes. Obrigado pelo perfume
estrangeiro trazido pra Santinha, também por essa garrafa de bebida cara. Mas
se dê o direito de tomar o primeiro gole...”. Assim juram que aconteceu com um
“seu cruel perseguidor”.
Era realmente um labirinto de
conchavos, de acertos escondidos, de trocas de favores e de ocultas proteções.
Isso Lampião fazia abertamente com poderosos, coronéis e políticos. Por
amizade, e sempre em troca de algum favor recebido, ou pela paga, a verdade é
que o rei cangaceiro todo dia costurava sua rede de proteção ou ia
desalinhavando a costura feita daqueles alçados à inimizade. Sua estratégia,
para alguém de pouco estudo, era verdadeiramente assombrosa.
Às escondidas, até mesmo porque
no jogo da guerra assim deveria ser, do mesmo modo acontecia com chefes de
volante, de forças perseguidoras. Como asseverou um de seus mais fiéis
coiteiros, “eu merma já fui entregar recado do Capitão a um comandante que eu
nunquinha ia pensar que era tão seu amigo. Quano cheguei junto dele, a primeira
coisa que feiz foi perguntar pelo seu cumpade. Quem era o cumpade? Ora,
ora...”.
Ainda sem rumo certo depois do
avexame da retirada, um dia, enquanto tomava fuga do sol debaixo de um
umbuzeiro no meio do mato, o Capitão foi surpreendido com a chegada de um
coiteiro, que rastejou até ali pela orientação recebida daquele outro coiteiro
cuja casinha ficava nos arredores do coito daquele terrível fogo em noite de
breu. Mesmo visivelmente cansado, aumentou o passo para fazer chegar às mãos do
rei cangaceira uma curta missiva, escrita em letra miúda:
“Capitão, com as saudações desse
comandante que é seu amigo e também seu comandado. Pelo mesmo portador dessa
escrita, favor dizer onde a gente pode se encontrar para jogar um carteado.
Tenho coisa boa, armamento novo e munição encaixotada. Enquanto a volante vai
no seu encalço com arma velha e caindo aos pedaços, o que for do melhor vai pra
suas mãos. Mande dizer que lá estarei. Do seu amigo de sempre, comandante...”.
Após escrever no outro lado do
papel, no mesmo instante Lampião deu ordem de partida. “Agora vamos por ali”,
anunciou. E a cangaceirama seguiu seus passos.
Escritor
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário