Seguidores

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

OS SERTÕES: AS PRÉDICAS DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E A POESIA DE CANUDOS - PARTE III

Por Aleilton Fonseca

A poesia de Canudos, segundo Euclides da Cunha

Como narra Euclides da Cunha, uma vez tomado definitivamente o arraial de Canudos, os soldados fizeram uma devassa nas casas em ruínas, curiosos, em busca dos despojos, fazendo o "mais pobre dos saques que registra a História" (15). Ali foram encontrados, entre imagens mutiladas e rosários de cocos, o que o autor denomina de "desgraciosos versos":

Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. (16)

A visão do ensaísta acerca dos versos encontrados em Canudos registra-se através de uma avaliação que é, inicialmente, negativa. Os versos são, assim, "pobres papéis" de escrita "irregular e feia" e grafados em "ortografia bárbara" que registram "ingênuos absurdos", fotografavam o "pensamento torturado" dos sertanejos. Euclides faz uma avaliação dos versos considerando-os intrínsecos às circunstâncias de sua elaboração, ao afirmar que "resumiam a psicologia da luta". E faz uma apreciação genérica ao afirmar que os versos, documentos concretos da expressão dos canudenses, "valiam tudo porque nada valiam". Observa-se que, em sua avaliação, Euclides utiliza como premissa o fato de os versos serem registros das prédicas do Conselheiro, antes completamente desqualificadas em seu discurso. Como tal, os versos são vistos como documentos embasados na "religiosidade difusa e incongruente", em seu estádio "primitivo, atrasado", contendo "pouca significação política". Antes de citar passagens dos "desgraciosos versos", Euclides faz ainda os seguintes comentários:

Os rudes poetas rimando-lhe os desvarios em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano. (17)

Considerada ao pé da letra, a explanação de Euclides mostra-se unívoca em sua visão negativa acerca da poesia coletada em Canudos. No entanto, observando-se a formulação de seus conceitos, descontados os adjetivos e ressaltados os substantivos, pode-se perceber, nas entrelinhas, toda a ambigüidade de sua abordagem. Embora explicitamente negativos, os termos da avaliação que ele faz dos versos os legitimam, ainda que indiretamente, como objetos culturais. Como se observa, embora os considerando rudes, o ensaísta confere aos anônimos autores o epíteto de poetas e reconhece os textos enquanto forma poética, em sua estruturação em quadras, embora adjetivando-as de "incolores". Ademais, ao comparar as quadras canudenses com os improvisos sertanejos, que antes descrevera de forma positiva, o ensaísta os valoriza como congêneres, mesmo que numa relação hierárquica desfavorável. Além disso, também os valoriza como documentos cuja citação considera relevante na cadeia argumentativa do seu texto. No final de sua explanação, ele reconhece a importância histórica dos textos, embora os refute como traços de atraso cultural, uma vez que os considera uma prova da existência da "segunda Bíblia do Gênero humano". Este jogo retórico em que a poesia de Canudos é ao mesmo tempo valorizada e depreciada mostra mais uma vez a ambigüidade da posição de Euclides da Cunha. Realmente, abstraindo-se a hierarquização e a negativação formuladas pelo ensaísta, ditadas pelos pressupostos teórico-metodológicos de sua abordagem, pode-se perceber que há uma valorização intrínseca ao modo como ele documenta a manifestação cultural dos canudenses.

Em seguida, uma vez feita de antemão a análise dos versos, Euclides cita "ao acaso", segundo afirma, algumas das quadras encontradas, resumindo-lhes a idéia. Como se sabe, o autor possuía os textos integrais anotados em sua Caderneta de Campo (18), e, dada a extensão do seu ensaio, nada obstava que os citasse na inteireza. No entanto, observa-se que as citações dos trechos "ao acaso" vêm no sentido de corroborar o discurso analítico, ajudando a provar as teses defendidas pelo ensaísta.

O primeiro texto é um abecê, forma poética tradicional do cancioneiro popular, do qual Euclides cita algumas estrofes para mostrar como se resumia nesse "gaguejar do povo", a passagem da Monarquia à República. Eis a citação da terceira estrofe:

Sahiu D. Pedro segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brazil ficou atôa! (19)

Nas citações, Euclides faz um rearranjo das estrofes para conseguir o efeito pretendido dentro da lógica de sua argumentação. Assim, seguem-se a sétima, a 15° e a 13° quadras para ilustrarem a visão que os sertanejos tinham da República como sendo a "impiedade" ou a "lei do cão":

Garantidos pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Eles têm a lei do cão
Bem desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!
Casamento vão fazendo
Só para o povo illudir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!

Em seguida, o ensaísta cita a 19° estrofe do abecê, à qual junta a décima sexta e fecha com a 22°, para ilustrar a convicção dos sertanejos quanto ao fim próximo do "governo demoníaco", com o triunfo do Conselheiro e do Sebastianismo:

D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento.
O anticristo nasceu
Para o Brasil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para deles nos livrar!
Visita vem nos fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão. (20)

Assim, o empenho do ensaísta é mostrar, documentado nas quadras selecionadas a partir de suas anotações de campo, o juízo que os sertanejos faziam da República a partir da orientação religiosa conselheirista e os argumentos com que combatia a nova forma de governo do país. Dentro de sua argumentação, toma esses textos como prova de suas próprias afirmações acerca dos canudenses.

O homem culto Euclides da Cunha, munido de um instrumental analítico fundametado nas teorias científicas da época e, particularmente, defensor da República enquanto ideal e como resultante natural do progresso da civilização, não aceita as afirmações dos sertanejos como válidas sequer para debate ou reflexão política. Rotula-as, então, como sendo índices do pensamento retrógrado, que considerava ser próprio de um estádio atrasado de civilização, em que se encontrariam os sertanejos. Paradoxalmente, a constatação e a avaliação negativa do ideário canudense tornam-se, na cadeia argumentativa de Euclides, um dado favorável a Canudos no julgamento político da intervenção militar. Definitivamente, Euclides fixa a consciência de que os canudenses não representavam uma ameaça real à instituição republicana, pois não constituíam um movimento político organizado na tentativa de restaurar objetivamente a Monarquia. Assim, o ensaísta procura mostrar que as idéias contrárias à República eram resultantes do atraso civilizatório, do estado de "ignorância" em que se encontrava a população sertaneja. Então afirma: "Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta" (21). Sob essa ótica, a luta necessária não seria feita através da força militar e dos canhões, mas sim através da educação, das letras, das luzes, no processo de introdução dos sertanejos ao progresso, incorporando-os à nacionalidade. Esta constatação abre o caminho para a autocrítica e para a revisão de idéias anteriores, como a de que Canudos era "A nossa Vendéia" (22). A partir disso, Euclides interpreta a intervenção militar como um erro histórico, como um "crime da nacionalidade" contra patrícios, de que seu livro se oferece como denúncia e libelo.

CONTINUA...


Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

Nenhum comentário:

Postar um comentário