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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 25/11/1958 - PARTE XVIII

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

TRAÍDO E CAPTURADO

Volta-Seca Escapa de um Cerco de Vinte Homens – À Procura de Honorina – Refúgio na Fazenda Dos Irmãos Roxo – Traição dos Coiteiros.

EU estava numa situação bem desagradável, cercado por mais de vinte soldados dispostos a dar cabo de mim. Comandava o destacamento o tenente José Joaquim, um militar valente e cumpridor de suas obrigações, coisa rara em se tratando de polícia estadual. Eu me entrincheirei atrás de uma pedra e resisti ao tiroteio, com Maria Honorina ao meu lado, assustadíssima. A mocinha estava acostumada às refregas do bando, mas aquela situação não era nada boa, tipo de “fim de carreira” para quem anda fora da lei. Eu mesmo tinha pouca esperança de me salvar, mas não desanimei; pelo contrário, pus-me a matutar um meio de sair daquela situação. A minha sorte era os soldados serem covardes. Valentia, ali, só a do comandante, que logo a pôs à mostra. Mandou que eu me entregasse, isso a uns cinquenta metros de mim. Respondi que viesse buscar-me, e o tenente José Joaquim levantou-se, empunhando um parabélum, e gritou aos comandados: “Avança!” Mas não deu um passo, pois eu já o tinha sob a mira do meu fuzil e fiz fogo. Atingi-o no peito e ele caiu ensanguentado. Eu gritei de cá: “Levanta pra levar outro tiro, macaco!...” Mas ele não levantou, e seus comandados não quiseram imitá-lo, preferindo atirar de onde estavam.

ESCAPO

ENQUANTO as balas passavam por cima ou batiam nas pedras, fazendo um ruído irritante, eu continuava a estudar um meio de fugir. Eu me encontrava no limite das terras dos irmãos Roxo e havia uma cerca de arame farpado. Do outro lado, o mato era alto. Se conseguisse atravessar a cerca, sem que os soldados percebessem, estaria salvo. Rastejando como cobras, eu e Honorina chegamos até à cerca e, cavando rente ao último fio de arame, conseguimos passar sem que os soldados dessem pela fuga. Uma hora depois estávamos longe. Tenho a impressão de que a covardia dos soldados era tanta que eles ficaram lá, atirando de longe, o dia inteiro...

Resolvi então tomar um rumo para enganar a volante. Arranjei dois cavalos e mandei que Honorina fosse para a casa da avó e que não saísse, pois depois eu iria busca-la. Ela me obedeceu e eu rumei para o outro lado, para Salgadinho.

Nesse lugar passei vários dias, até que resolvi buscar Honorina, já supondo estar tudo mais calmo. Vim pelo mesmo caminho da ida e passei pelo ponto onde Leobino fora morto. Os soldados haviam enterrado o rapaz numa cova rasa e nem uma cruz puseram. Algumas pedras em cima, para indicar que era uma sepultura, e nada mais. Leobino era um bom menino, um futuro Volta-Seca, iniciando-se na carreira do crime. Era dócil e obediente como todos nós quando estávamos praticando para cangaceiro. Não tardaria, porém, a assimilar nossa ferocidade com a convivência que teria e, então, para o futuro, estaria à altura de ser “cabra” de Lampião. Pobre Leobino... Talvez fosse melhor morrer assim no início, pois o fim de todo cangaceiro é triste.

CILADA

PROSSEGUINDO, porém, fui para a casa da avó de Maria Honorina e não a encontrei. Informaram-me que ela se encontrava na casa de uma tia, e para lá me encaminhei, mas qual não foi minha surpresa ao me informarem que Honorina estava na casa da avó... Compreendi então que os parentes da moça queriam afastá-la de mim.

Com essas andanças, eu não me afastava das proximidades da fazenda dos irmãos Roxo. Como já disse, esses irmãos sempre acoitaram o bando de Lampião, mas, sem eu saber, após o combate que travei com o tenente José Joaquim, os irmãos foram apertados pela Polícia para dizerem onde eu estava ou, pelo menos, me delatarem, caso eu voltasse ao lugar.

Sem saber do que se passava, dirigi-me para a fazenda e fui pedir comida. A família Roxo estava reunida, justamente estudando a possibilidade de me apanhar... Quando apareci, ficaram surpreendidos, mas fizeram tudo para ocultar e eu, ingenuamente, nem desconfiei. Quem me atendeu foi Adão Roxo, com quem eu tinha muita intimidade. O cínico fingiu-se de contente:

- Então o tiroteio com a tropa do tenente José Joaquim foi forte, hein?

- É, foi brabo mesmo, respondi.

E ele com sorriso:

- Você feriu o tenente e ele quase morreu, sabia?

- Que pena não morrer – lamentei eu, preparando-me para beber água.

- Você chegou a fazer calo na mão de tanto atirar, Volta Seca? – perguntou-me ele, querendo ver minha mão. Deixei que ele me pegasse a mão e então, segurando-a firmemente, seu semblante passou de alegre a zangado, dizendo:

- Você está preso, Volta-Seca!

Olhei para ele, intrigado, e arrisquei:

- Não brinque, Adão...

Mas ele, mais sério ainda, retornou:

- Está preso, mesmo¹

Com um sorriso de ironia eu disse: 

- Adão, pra brigar com você não preciso nem da ajuda de Deus... e, dizendo isso, dei-lhe uma rasteira e puxei o parabélum.

Mal Adão saíra, surgiram várias pessoas, que pude depois contar serem quinze. Compreendi logo a cilada, apontei a arma para Adão e dei no gatilho. Pela primeira vez um parabélum falhou na minha mão! Adão Roxo respirou aliviado, enquanto sua família me agarrava.

ENTRE A VIDA E A MORTE

NÃO foi difícil para tanta gente me dominar e em seguida me amarrar. Um deles propôs que me matassem e cobrassem o prêmio de minha captura. Os irmãos Roxo logo toparam a ideia, incentivados pela mãe, uma velhota ruim como cascavel. Essa velha, por dinheiro, fazia tudo, e, aliás, tudo que aquela família possuía era à custa dos cangaceiros, pois ser coiteiro, para eles, era uma profissão rendosa. Só me denunciaram porque, não só eu estava sem dinheiro, como pela pressão que o tenente José Joaquim fizera contra eles. Felizmente, entre tanta gente ruim, havia duas mocinhas boas que não concordaram com a ideia de me matarem, e tanto se opuseram, que seu ponto de vista prevaleceu.

Fui levado então para o arraial Duas Barras, do município de Santo Antônio da Glória, amarrado e tratado como bicho. Quando cheguei, os soldados, ao me verem, quiseram logo dar cabo de mim, e tê-lo-iam feito se não surgisse o tenente José Joaquim, o mesmo que eu baleara. Esse militar estava enfaixado e ainda enfraquecido pela perda de sangue, mas, ao me fitar, não se alterou. Com serenidade, falou: 

"Ninguém toca neste homem. Ele está preso e garantido pela lei! Quem tocar num fio de cabelo dele, terá que se ver comigo! Tratem ele bem, e o que tocar nele, ponho na cadeia. Estamos entendidos?” 

Todos entenderam, e o tenente mandou que me desamarrassem e me pusessem na cadeia. Em seguida, telegrafou ao chefe de Polícia do município, capitão Facó, que mandou me transferissem imediatamente, recomendando também que não me maltratassem.

FERA ACUADA

DAÍ por diante fui sempre transferido de local, mas sempre bem tratado. Do arraial de Duas Barras fui para Santo Antônio da Glória, levado pelo tenente Douradinho, e em seguida, sempre demorando pouco nesses locais, mandaram-me para Jeremoabo. Até aí eu fui sempre livre, mas daí por diante me levaram com as mãos amarradas. Em todo lugar aonde eu chegava era alvo de curiosidade, e todos me fitavam como se eu fosse uma fera. É possível que fosse mesmo... Lembro-me de que, desde que fui preso até um ano depois, mais ou menos, não conversei com ninguém! Só respondia por monossílabos, e queria estar sempre só. A solidão me atraia, e a presença de qualquer pessoa me irritava.

Tão zangado eu era que, quando entrava num trem, amarrado e bem guardado por soldados, estes pediam aos passageiros que não me olhassem, pois eu não gostava e ficava furioso... De fato, revoltava-me ver alguém me fitando muito. Um homem não quis respeitar essa observação e, sentado em frente a mim, não parava de me fitar. Aqueles olhares tão penetrantes me incomodaram tanto que, na impossibilidade de agredi-lo, dei-lhe uma cusparada na cara!... Isso causou um mal estar terrível no trem, e daí por diante ninguém mais olhou para mim, pelo menos que eu percebesse. Eu devia ser mesmo uma fera...

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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