Seguidores

sexta-feira, 6 de março de 2015

Trecho do livro "Volta Seca". Robério Santos.


Era mais de meia noite, finalzinho de verão (1) já começando as chuvas torrenciais recheadas a relâmpagos que mais pareciam um arrastar de mobília no céu de São Pedro (2). Um silêncio dominava a vastidão da entrada do vale do Rio Cotinguiba (3). Uma mulher de vinte e sete anos estava prestes a dar à luz. No dia anterior pela tarde alguns tropeiros indo em direção a Maruim (4) passaram pelo Saco Torto pedindo água na casa de Manuel.

- Bom dia, esta é a estrada do Riachuelo? Falou o mulato de chapéu de aba quebrada (5).

- É sim senhor, tu chega lá antes de anoitecer si num pararem na rua6.
- Queremos encher nossa cabaça (7), se não for incomodar.

- Não incomodam, aqui a casa é pobre, mas água não nos falta no pote, desamuntem e venham encher.

Eram três homens que vinham da região de Geremoabo, não se sabia ainda qual a razão deles irem até aquelas bandas. Maruim já não era como antes, a pobreza tomara conta daquele pedaço de lugar. Deus já estava esquecendo todos ali. Mas, a prosa continuava.

- Quanta criança, umas meninas bonitas. São suas?

- Sim senhor, são cinco (8): Maria, Filismina, Laura, Otília e Fausta, o sexto está para vir ao mundo esses dias. 

- Como vai se chamar?

- Se for mulher chamarei de “Arminda”, como a mãe, se for homem darei meu segundo nome, “Antônio” (9).

Enquanto enchiam suas guarnições, olhavam para uma pequena plantação (10) no quintal e pediram uma melancia que estava madura, eles pagariam por ela. Ao ver a cara que as meninas fizeram ao saber que a melancia iria ser levada pelos homens, Manuel solta.

- Sabe cumo é, a muié prenha já tá desejando esta melancia faiz tempo, vai que o menino venha ao mundo com cara redonda, não vamos arriscar (11).

Todos começaram a sorrir, inclusive Arminda, que acabara de entrar sorrateiramente acompanhada da esposa de Manuel Tenório (12), vizinha deles. Os homens retiraram os chapéus e a cumprimentaram. Viram que estava buchuda e um deles afirmou.

- Esta barriga tem cara de que é menino.

- Ôxi, ômi e cumo tu sabe?

- É pela pusição dela (13).

- Bom mermo qui seje hômi, já tem muié demais nessa casa. Já são cinco muié, si vié a sexta não vou querê que o sétimo seja homem, pois diz os mais véio que se tivé assim vem com parte cum demo, vira labisôni que corre as sete freguesia (14).

- Engraçado isso, mais é verdade. Bem, já estamos de saída, parece que chamamos atenção demais, vejam quanta gente veio nos ver. Tomem cuidado, grupos de cangaceiros de Propriá (15) estão por estas bandas e eles fazem muito mal ao povo.

- E vocês são negociantes? Falou Antônio.

- Nós somos caixeiros viajantes, nos cavalos temos alguns produtos para serem vendidos em Maruim.

- Mais, num síria mió vende em Tabaiana? É quase aqui do lado, atravesse a serra e tá quase dento.

- Não, lá no litoral temos gente certa pra nossas coisas. Já negociamos em Itabaiana, inclusive viemos por dentro dela hoje, domingo, pois a cidadela tá pacata demais (ontem foi feira), mas tem muita concorrência no nosso ramo já. Há dois anos em 1916 (16) arrumamos uma briga lá com um tar Sebrão (17) e decidimos vortá mais não para aquele lugar.

Os três homens montaram em seus cavalos, se despediram e um deles foi se aproximando do pequeno grupo de curiosos que haviam se aglomerado perto da cerca baixa do cemitério (18), Manuel já estava andando na direção dele também e este ouve.

- Como eu disse que seu filho será um homem, aceite este presente, é um pequeno boneco de madeira feito por eu mesmo com minha faca, era para meu filho, mas um dia dê ao seu, pois eu faço ôto pro meu bruguelo.

Nesta hora uma das meninas, Maria das Dores, a mais velha, chega com a dita melancia nas mãos e diz.

- Pode levar moço, nossa mãe disse que anda enjoada e não está mais desejando, vocês vão precisar mais que nóis.

- Ôxi, parece até que trocamos os produtos, só vou aceitar porque eu sei que a menina não sabia do presente. Fiquem com Deus e vou dar um galope para acompanhar meus dois irmãos. Até mais.

O boneco era o de um sertanejo de chapéu com a aba pra cima, parecia muito com eles.

As dores começaram por volta das onze horas da noite, a bolsa estourou pouco mais de meia noite e já se aproximava a primeira hora da madrugada. A parteira do povoado foi chamada às pressas. A bacia d’água, os panos, as idosas orando, o candeeiro aceso (19). Mais de uma hora se passa e as dores só aumentavam. Arminda era dura na queda, não gritava. Já havia passado outras cinco vezes em pouco mais de cinco anos, era comum no nordeste essa frota de filhos. Era quase um a cada ano. Uma mulher de nome desconhecido passava uma toalha azul na testa da gestante e segurava sua mão firme. A parteira pedia mais oração e força. Uma hora e meia se passa e nada do rebento chegar. Duas horas e meia depois e nada ainda. De todos, este foi o que mais deu trabalho para vir ao mundo externo (20), parecia gostar da barriga. Nesta altura, Manuel estava no oitavo pacaio (21) e na quinta dose de cachaça. A filha mais velha cuidando dos mais novos como era de costume (22) e do nada um silêncio toma conta do local. Nenhuma respiração se ouvia. Antônio tentou entrar na casa, mas duas irmãs dele não deixou. Uma delas entra e apenas sombras se faziam presente nas paredes. Passou apenas um minuto de silêncio, mas parecia mais de uma hora. Nisso um choro rompe naquela noite sem lua, apenas iluminada pelos pirilampos (23) na Terra e estrelas no Céu. O pai aflito tenta pela segunda vez entrar na casa e vê sua irmã chegar com a notícia.

- É hômi, Manuel, é machim!

- Bem que o môço onti dissi qui ia sê macho, inté deu um presente. Posso vê?

- Deixa lavá ele e colocá um pedaço cordão vermeio moiado na testa (24).

Alguns minutos se passaram e Raposa (25) (assim gostava também de ser chamado) entrou na casa, bem lentamente e vai se aproximando da esposa já com o mais novo membro da família nos braços.

- Nenêm, como vamos chama nosso novo filho?

- Ômi, tu já tinha iscoído, ele vai se chama Antônio, como seu segundo nome.

- Antônio Grigório (26) dos Santos, assim ele si chamará de hoje in diante.

- Vamos ter muito orgulho deste menino.

- Vamos sim.

- Espero que ele sobreviva (27).

- Vamos rezá direitinho desta veiz (28).

Um monte de cabecinhas passavam pela porta, todos curiosos para ver o que estava dentro da barriga durante oito meses e meio passados (29). As pessoas se retiraram, Manuel Antônio dos Santos terminou de secar o litro de pinga sentado no alpendre, dois foguetes foram soltos na porta da casa, era sinal que mais um habitante do Saco Torto havia chegado ao mundo e no dia seguinte, seria um dia de festa (30).

1 17 de março de 1918

2 Na crendice popular a chuva é São Pedro lavando a casa e os trovões são os móveis sendo arrastados. Numa outra versão, a chuva é São Pedro urinando.

3 A região do Saco Torto pertencia na época a Riachuelo-SE, hoje pertence a Malhador-SE.

4 Havia um porto nesta região e alguns remanescentes europeus. Era comum a passagem de Tropeiros por aquela região. 

5 Não necessariamente o chapéu de aba quebrada era de cangaceiros, na verdade na década de 10 chegava a ser moda também entre civis.

6 "Rua" era a denominação que davam para a cidade que pertencia o povoado. Volta seca sempre se referiu seu nascimento a Itabaiana, já que na época para todos aquela região era de Itabaiana Grande. A "Rua" que Antônio se refere é a de Riachuelo que eles poderiam ocasionalmente dar outra pausa.

7 Moringa

8 Volta Seca afirma que é o sexto, primeiro homem, de uma família de 13 até a morte de sua mãe.

9 Era comum dar o nome do pai ao filho, como também da mãe. Ainda hoje é comum. 

10 Volta Seca em entrevista diz "Ele negociava com o que o sítio produzia". O Globo, 4 de novembro de 1958. Entrevista de Volta Seca a Bruno Gomes. 

11 Esta superstição ainda hoje existe entre os mais velhos.

12 Manuel Tenório, segundo Volta Seca, teve 22 filhos. 

13 Esta superstição ainda hoje existe entre os mais velhos.

14 Os mais antigos acreditavam que se o casal tivesse seis filhas e o sétimo fosse um homem este seria ofertado ao demônio e que voltaria em forma de Lobisomem. 

15 "Cabras" do coronel Francisco Porfírio. Fonte: Olímpio Rabelo, Retalhos de História, Livraria Regina Editora, 1966, Aracaju, p. 41.

16 O Caxangá na Política de Itabaiana. 

17 José Sebrão de Carvalho. Chefe político do grupo dos Pebas.

18 Em entrevista, dona Ilza dos Santos, filha de Felismina dos Santos, afirma que a casa dos avós ficava ao lado do antigo cemitério local. 

19 Era uma forma muito rudimentar de se fazer um parto, muitas vezes era esta a razão de tantas mortes prematuras.

20 Palavras do próprio Volta Seca em entrevista ao O Globo de 1958.

21 Cigarro de Palha.

22 Palavras do próprio Volta Seca em entrevista ao O Globo de 1958 fala desta irmã mais velha que cuidou dele na infância.

23 Vaga-Lumes

24 Era um costume interiorano colocar um pedaço de barbante vermelho na testa da criança para espantar mau olhado. Em algumas regiões este hábito era muito comum.

25 Assim era conhecida a família de Volta Seca na região, os "Raposas".

26 Volta-Seca não tinha documentação quando fez novamente, seu nome que o acompanhou no cangaço era apenas "Antônio dos Santos", o "Gregório" foi abandonado, apenas lembrado pelas familiares.

27 Era comum mortes prematura e a existência de "Cemitérios de anjos" em várias cidades.

28 Geralmente as mortes dos "anjos" eram algumas vezes atribuídas a pouca fé e pouca oração. 

29 Nasceu prematuro de quinze dias.

30 Era comum soltar fogos e fazer um forró para comemorar a chegada de mais um filho.


Trecho do livro "Volta Seca". Robério Santos.
Inédito.
Fonte: facebook
Página: Robério Santos

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário